É tão estranho! Depois de
quarenta anos de democracia e de cinquenta e oito eleições, os Portugueses
continuam a ser tratados como analfabetos, mentalmente débeis, fúteis e
facilmente manipuláveis. Na véspera de uma eleição, não se pode escrever, ler,
discutir ou debater política directa ou indirectamente relacionada com a
matéria em causa. Quer isto dizer, tudo! No dia da eleição, domingo, ainda
menos se pode debater até às 20.00 horas.
Neste dia, há outra
característica curiosa: não se podem ou não se devem realizar desafios de
futebol. Todos? Todas as competições? Só as principais? E as amadoras? E o
hóquei em patins? E bilhar às três tabelas? E concertos de música? E cinema?
Este ano, por causa de um encontro entre o Sporting e o Porto, decidiu-se, a
bem do consenso, adiar o desafio para as 19.00 ou 20.00, supondo que muita
gente não iria votar porque estava ocupada a ver o futebol.
A ideia que os políticos e as
autoridades, na verdade uma boa parte das elites, fazem dos cidadãos alimenta a
sua concepção de democracia: os Portugueses, uns pobres diabos, vulneráveis,
incultos e indefesos perante as forças do mal, têm de ser protegidos pelos
esclarecidos a fim de cumprir os seus deveres cívicos.
A inibição de partidos regionais
vai no mesmo sentido. A proibição de invocar o nome de deus ou de utilizar
designações que possam aludir à religião é do mesmo calibre. A interdição de associar
uma instituição e de incluir a palavra Portugal ou de qualquer símbolo nacional
nas denominações partidárias é semelhante. A proibição de candidaturas
independentes nas legislativas é convergente, tal como os obstáculos
burocráticos aos independentes nos casos em que são permitidos. As dificuldades
em organizar referendos reforçam esta noção iluminada da política e da
democracia. A exclusão da hipótese do referendo constitucional é do mesmo
cariz. As regras que regulam a comunicação, especialmente televisiva, e que se
propõem preservar o pluralismo, quando, no essencial, servem para proteger os
partidos estabelecidos e controlar os limites da expressão, são um contributo
valioso para o colete-de-forças democrático. Mas sobretudo, acima de tudo, a
recusa dos votos uninominais e pessoais é um dos mais significativos indicadores
da concepção elitista, vanguardista, jacobina e partidocrata da nossa
democracia.
Depois destas eleições, a vida
continua. A Terra anda à volta do Sol. O maior escândalo financeiro da história
de Portugal, o caso BES/GES e companhia, continua à espera. O maior assalto
político ao poder das últimas décadas, o caso Sócrates, espera por avanço. O
mais grave acidente de segurança nacional do último século, o caso de Tancos,
aguarda esclarecimento. O mais dramático acidente nacional (e, no grupo de
incêndios florestais, um dos maiores do mundo), o caso de Pedrógão e
vizinhanças, permanece na obscuridade da ocultação deliberada. Estes são os
casos que nos esperam. A que estas eleições não respondem, nem tinham que
responder. Mas cujos resultados vão talvez ajudar a resolver ou, pelo
contrário, contribuir para enterrar.
Até porque estas eleições são
mesmo interessantes. Têm, evidentemente, como sempre, leituras locais,
regionais e nacionais. Vão permitir aferir os partidos, um a um, assim como os
seus equilíbrios internos, em particular do PSD, à beira de uma crise muito
séria. Vão ajudar a rever as posições de força dos dois partidos de
extrema-esquerda que apoiam os socialistas e o governo. Darão um contributo
valioso para medir a relação entre políticos e cidadãos. Vão ser mais uma
medida da abstenção e do interesse dos Portugueses pela “coisa pública”, pela
administração, pelo bem comum.
DN, 1 de Outubro de
2017
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