sábado, 27 de setembro de 2025

Grande Angular - Dentro de dez anos

 Daqui a uma década, mais ou menos, vamos todos recordar estes tempos presentes. As que parecem peripécias e intrigas não o são apenas ou não o são de todo. O que se pensa hoje que são males que se corrigem ou bens que duram revelar-se-á rapidamente uma espécie de fundação do país futuro. As novas sociedades, economia, política e cultura, organizam-se hoje, quase imperceptivelmente, de modo que, por vezes não nos damos conta do quadro geral, do que aí vem. Sobretudo se não soubermos, agora, prestar atenção ao futuro, preparar o melhor e evitar o pior.

 

O que se vai passar em Portugal não depende só de nós. Cada vez menos. O mundo, de Washington a Pequim, de Israel à Ucrânia ou do Irão à Rússia, terá influência decisiva. Não era assim, ou antes, não era tanto assim antigamente, há décadas ou séculos. As influências externas eram menores ou menos visíveis. Agora, é bem diferente. Da demografia ao trabalho ou das finanças às artes, “isto anda tudo ligado”. Em todo o caso, muito mais ligado do que antes.

 

Mas a verdade é que nos compete, a nós, povos soberanos e Estados independentes, decidir como reagimos e nos integramos. Depende de nós e das nossas escolhas, definir ou escolher o modo como queremos fazer parte do mundo novo em construção. A nossa presença, mais activa ou mais passiva, resulta das nossas vontades e das nossas preferências. Podemos não ter influência no mundo, é verdade, mas devemos proteger-nos do que nos diminui e aproveitar o que nos interessa.

 

A política portuguesa está em mau estado. Instável. Incerta. Distante. E em curso de mutação tão profunda que, dentro de muito pouco tempo, nada ficará como agora. Tanto por motivos políticos, como sociais. O envelhecimento rápido, a grande emigração de portugueses e a enorme imigração de estrangeiros estão a criar uma população inesperada. Mais de metade do país continua entregue ao abandono e aos incêndios. 

 

A força de trabalho perde robustez, organização e influência. A independência do capital é diminuta. O Estado não tem sabido traçar o seu caminho na economia:  asfixia os privados e cria obstáculos ao estrangeiro, mas, em última análise, não ajuda, não apoia, nem incentiva. A fragilidade e a vulnerabilidade do Estado português perante os interesses internacionais é por demasiado evidente.

 

Depois de se terem assegurado dois feitos essenciais, a criação de instituições democráticas e a integração europeia, o Estado português não tem sabido consolidar as suas funções sociais: em crise de eficiência, a saúde e a educação são bons exemplos. A pobreza dos serviços públicos, sobretudo de funcionamento, de eficácia e de atendimento, é proverbial.

Numa das mais nobres funções soberanas, a Justiça, o Estado, o poder legislativo e os próprios corpos da magistratura não têm sabido, talvez nem sequer desejado, organizar o seu sistema, tornando-o justo, eficiente e moderno. Mais do que os transportes e a saúde, mais do que a educação e a segurança social, é talvez a Justiça o principal exemplo de incapacidade democrática. Ora, quando a Justiça não está bem, é a democracia que bem não está.

 

Depois de algumas décadas de estabilidade aparente, pelo menos formal, o sistema político dá sinais de fragmentação, ou mesmo quase de desintegração. A extrema-direita aproveita e explora este clima. A direita democrática parece reduzida a uma herança. A esquerda democrática atravessa a sua mais grave crise desde os anos setenta, sendo discutível que possa acordar ou seja refundada. A extrema esquerda perdeu tudo, base, apoio, sonho, energia e programa. O centro político está destruído, vazio, sem meios nem vontade. O ideal da moderação em tempos difíceis e a esperança da aliança de equilíbrio em momentos de crise praticamente desapareceram do horizonte. Parece anunciar-se a pior polarização de todas: a das forças irracionais e sectárias.

 

As duas últimas eleições legislativas foram o sinal de partida do processo de desequilíbrio e de fragmentação. Se alguma coisa este anunciou, foi o crescente desinteresse da população pela política democrática e os partidos. Na verdade, este é encorajado pela política formal e nominal, adjectiva e processual, que caracteriza os actuais principais agentes políticos. Os líderes partidários vangloriam-se e oferecem-se à população, prometendo liderança e energia, tudo atributos e obras que não se anunciam: ou se é, ou não se é, não se proclama. Raros são os políticos que discutem com o público e as instituições os temas e os conteúdos da sua acção. Mas quase todos discutem processos e intrigas.

 

Há cada vez mais sinais de fortalecimento e desenvolvimento de pulsões antidemocráticas tanto na sociedade como no universo da política e dos partidos. Ora, não se vê que as únicas armas eventualmente eficientes para contrariar esses esforços, isto é, os dois grandes partidos democráticos, PSD e PS, estejam interessados em combinar, juntar, articular ou simplesmente convergir atenção e trabalho no sentido de lutar e contrariar as tendências antidemocráticas. Por outro lado, os movimentos de diálogo ou de aproximação entre o PSD e o CHEGA não só antecipam o pior que pode acontecer à democracia, a sua queda “por dentro”, como não parecem ser combatidos pelo PS, nem sequer pela totalidade da esquerda.

 

As eleições presidenciais, tal como noutros tempos passados, poderiam transformar-se num momento de verdade, num lugar geométrico das tarefas e dos esforços democráticos. É sabido que um presidente não pode, por si só, influenciar todo o sistema político e todas as instituições públicas. É até conhecido que, a sua importância seja diminuída pelos simples resultados das eleições parlamentares. Quer isto dizer que o seu mandato tem pouco de salvador. Mas a sua eleição é um momento alto da política nacional. A escolha feita, dentro de três ou quaro meses, será um esclarecimento essencial e um momento de definição. Seria bom que as forças democráticas, políticas e civis, traduzissem em acção e escolhas esta realidade. Seria importante que os agentes políticos e os candidatos percebessem que a eleição presidencial é mais do que uma formalidade. E muito mais do que um passo de calendário.

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Público, 27.9.2024

sábado, 20 de setembro de 2025

Grande Angular - Palavreado

 É um dos grandes mitos da política portuguesa: o “bloco central”, as alianças do centro político ou as coligações de forças democráticas moderadas provocam o crescimento da extrema direita (e da extrema esquerda, eventualmente) e são perigosas para a democracia. Para argumentar, fazem-se afirmações atrevidas. Não podemos deixar o capital de protesto para os radicais, dizem. É perigoso entregar a oposição aos extremos de direita e de esquerda, afirmam. A solução democrática consiste em partir ao meio o eleitorado, esquerda e direita, ora governando uma, ora outra, garantem. Há anos ou décadas que esta espécie de sabedoria condiciona a política portuguesa. Com um objectivo principal: o de impedir o chamado “bloco central”, a coligação entre o PS e o PSD.

 

Está a ver-se a beleza desta afirmação, este exemplo de fina inteligência! A recusa da coligação entre o PS e o PSD, o afastamento obsessivo e permanente do Bloco Central e a condenação deste último provocaram… o crescimento da direita de Chega e Ventura. A insistência em governos de minoria e em “arranjos pontuais” provocou, mais uma vez, eleições antecipadas, dissoluções inconvenientes e políticas de instabilidade. Tudo para acabar… no crescimento da direita de Chega e Ventura.

 

Esta nova direita, que tudo leva a crer seja extrema, nasce, não do Bloco central, mas da sua negação pelos democratas. Esta direita é evidentemente perigosa, sem ser necessariamente fatal para a democracia. Cada dia que passa é mais radical, como se tem visto nos últimos tempos. Era bom que a democracia a combatesse e a derrotasse. Mas também seria bom que os democratas percebessem melhor a realidade da extrema-direita e soubessem como lutar contra ela.

 

Os democratas têm uma especial inclinação para a retórica. Boa ou má. Eles gostam de combater com declamações, insultos e gritaria. Ou condenações morais. E muita indignação. Ora, não é com palavreado que se combate a extrema-direita. Até porque, nesse estilo, no palavreado, a extrema-direita é melhor do que a direita e a esquerda democráticas. Foi o que vimos nos últimos anos. PS e PSD frenéticos a condenar, com palavras e lugares comuns, a direita radical de Chega e Ventura: fascistas e neofascistas, nazis e neonazis e neoliberais eram os mais frequentes. O resultado está à vista: a direita de Chega e Ventura não parou de crescer. E ameaça assim continuar.

 

Os democratas insistem em vituperar e vociferar. Ora, a extrema-direita combate-se com obra feita, lisura de processos, honestidade de acções, clareza de intenções, bom governo e administração pública eficaz. Que é o que direita e esquerda democráticas não souberam fazer. O que combate a extrema-direita (e extrema-esquerda) é um Estado eficiente, o firme combate à corrupção e uma Justiça pronta. Que é o que, em 22 anos de PS e 9 de PSD, nas últimas três décadas, os democratas não souberam fazer e criar. 

 

O que ajuda a extrema-direita a crescer e desenvolver-se são as filas de espera em todos os serviços públicos, a desigualdade crescente, o emprego ilegal e a falta de habitação. Que são situações críticas que os democratas do PS e do PSD não conseguiram evitar. E são ainda as greves selvagens (justas ou injustas), a ganância, as vendas de empresas públicas em circunstâncias estranhas, as compras de aviões e helicópteros, o apoio à economia paralela e o fecho de emergências médicas aos fins de semana: são estas mais algumas das causas do crescimento da extrema-direita.

 

São as acções de combate a estes fenómenos que constituem as armas contra a extrema direita, são esses os meios de luta eficaz, não o palavreado gratuito e exasperado, nem as acusações de fascista, neonazi e neoliberal. Não são estas atitudes que terão qualquer resultado, antes pelo contrário, revelam receio e impotência. Exibem uma democracia vulnerável. É muito pouco provável que a extrema direita, a de Chega e Ventura em particular, tenha sabedoria e meios para resolver quanto está errado. Mas os erros presentes são capazes de ajudar o Chega a aumentar os votos.

 

A irrupção de Chega e Ventura na política portuguesa (com paralelos noutros países europeus), assim como o seu rápido e talentoso crescimento, levantam problemas interessantes. A aprofundar nos próximos tempos. Como se dizia antigamente, a interrogação fundamental, nestes casos, era “Qual é a sua base social de apoio”? Qualquer partido, novo ou velho, dizia-se, tinha origens de classe, berço institucional ou marca social de nascença. 

 

Qual a origem social da Extrema-direita? Qual a sua base social de apoio? Eram perguntas que se faziam há décadas, com respostas tão engraçadas quanto inúteis e interessantes. O exercício valia a pena. Há mesmo vários livros sobre este tema, com relevo para “As origens sociais da ditadura e da democracia” de Barrington More. Era útil saber mais sobre a base social de apoio da democracia e do fascismo. Assim como da República, da social-democracia, do Salazarismo ou do comunismo.

 

Hoje, estas análises não se fazem. Tudo anda à volta do processo, da imagem, do impacto e de entidades semelhantes. Mas é forte a ideia de que um movimento ou um partido, para ter êxito e presença, necessita de ter uma origem de classe ou uma base de várias classes e interesses. Esses tempos já passaram, hoje é certo e seguro que os partidos, os movimentos e os regimes têm bases sociais variadas, entrecruzadas e misturadas com interesses nacionais, regionais, religiosos e outros. Assim como económicos e empresariais.

 

Qual é a base social de apoio do Chega? O grande Capital? Não consta que haja grande capital em Portugal. A Igreja? Não parece. As Forças Armadas? Não se sabe que haja actividade. A pequena burguesia? Talvez, está sempre em todas. As elites académicas? Por enquanto não. As multinacionais? A classe média arruinada? Os pensionistas? O pequeno comércio? A grande lavoura? A pequena agricultura? A província? O Norte? O Alentejo? As cinturas industriais? As áreas metropolitanas? De tudo isto um pouco. É a resposta mais verosímil.

 

Não parece haver uma base social de apoio bem marcada. Tudo leva a crer que estejamos diante de uma reacção de protesto e insatisfação, de repúdio e receio, diante dos feitos e malfeitos da democracia nos últimos anos, os erros dos dirigentes democratas, o abaixamento de qualidade do pessoal político e a perda de sentido de reconhecimento dos dirigentes democráticos do sistema. Há uma insatisfação que a muitos toca e um protesto que de muitos vem. É aí que o Chega se alimenta. É aí que é preciso agir.

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Público, 20.9.2024

sábado, 13 de setembro de 2025

Grande Angular - Desleixo. E indiferença.

 O acidente do Ascensor da Glória deu origem a momentos difíceis de suportar. Sobretudo para os que foram atingidos pela dor. Mas olhar para o que se seguiu, o que se viu e ouviu, o que ainda se passa, é motivo de desânimo. Talvez seja assim noutros países, o que é indiferente. O que se passa em nossa casa é suficiente.

 

            A utilização imediata do acidente, como argumento político, foi evidente e de penosa observação. Não faltou quem, com ou sem conhecimento dos factos e das circunstâncias, exigisse uma imediata demissão, naquele que é o gesto mais banal da política portuguesa. Logo seguido dos que, teatralmente, garantiram que tinham cumprido todos os seus deveres. Depois, vieram os que acusaram os outros de fazer política, de aproveitamento, como dizem. Sem esquecer, claro, os que fizeram política, garantindo que não faziam. Toda a gente prometeu ou exigiu inquéritos e estudos, até às últimas consequências, “doa a quem doer”, em que tudo será dito e revelado. Como em tantos outros inquéritos e estudos que ainda hoje estão por concluir e publicar.

 

            A responsabilidade pelo que aconteceu, ou a “culpa”, como se tem repetido, será talvez apurada, um dia. Será pessoal ou institucional, política ou técnica, da corrupção ou da ignorância. As conclusões poderão ser conhecidas a tempo de indemnizar as vítimas ou de castigar os responsáveis. A avaliar pela tradição e pela história, não é certo que assim seja. Mas, se for, ao menos temos isso. Porque pode faltar o que é igualmente importante: que haja consequências, que se faça o que é preciso para que não se volte a repetir. Para que os portugueses em geral, os políticos, os funcionários, os engenheiros, os autarcas e tantos mais retirem lições e aprendam com os desastres. E tenham em conta com o mais importante de tudo: os direitos e a segurança dos cidadãos.

 

            O que está em causa são algumas das características nefandas da nossa sociedade e do Estado. O desleixo ou o desmazelo estão presentes por todo o lado. A negligência, a incúria e o desinteresse, também. Pode haver regulamentos extraordinários, protocolos modernos, regras exigentes, mas a sua aplicação deixa sempre a desejar. Qualquer projecto, decreto-lei, programa ou portaria é meticulosamente elaborado, com todos os pormenores jurídicos e administrativos, técnicos e económicos, assim como regras e competências. Mas o que falha é o essencial: a sua aplicação à sociedade, a homens e mulheres, a pessoas.

 

            Os capítulos malfadados da negligência e do desleixe são conhecidos. A manutenção de sistemas e aparelhos. A fiscalização da obra e do funcionamento. A inspecção. O cumprimento de prazos e o respeito pelo calendário. A pontualidade. A minúcia. A paciência. A consulta à opinião dos utentes. A resposta às críticas. A avaliação das vulnerabilidades. O permanente acompanhamento dos sistemas e dispositivos. É sempre aqui que falham os melhores projectos, que fracassam os planos mais sofisticados.

 

            As palavras-chave são: descuido, desmazelo, desleixe, negligência, desinteresse e indiferença. Uma das razões pelas quais é sempre muito difícil encontrar responsáveis por acidentes reside aqui: o rigoroso acompanhamento não é feito. Ou mal feito. Ou tardiamente feito.

 

            Toda esta triste realidade é especialmente visível quando se trata de serviços públicos. Como todos sabemos e sentimos. Os atrasos nos comboios e nos autocarros. O indigente desconforto nos transportes públicos, das paragens às carruagens. As filas de espera nos centros de saúde e nos hospitais para consultas, exames e cirurgias. As esperas nas lojas do Cidadão, nos organismos para a imigração, nos serviços de identidade e de segurança social. Há filas de espera nos corredores, nas garagens, nas ruas, nos passeios e nos jardins, ao sol ou à chuva, mas sempre na humilhação. Há esperas para todas as inscrições imagináveis, nas escolas, nas creches e nas universidades. Há filas nos tribunais e nas repartições. Nas Câmaras e nas Freguesias. Até no Aeroporto!

 

Há mesmo um grupo de companhias, empresas e serviços, especializadas em atrasos, filas de espera, encarecimento e mau trato infligido aos clientes e utentes: são as companhias de telefone, telemóvel, água, electricidade e gás. Este é o reino do absurdo, do despotismo e da indiferença burocrática. Os contratos são quase sempre verdadeiras armadilhas em que todas as regras de preços, aumentos, renovação e duração são feitas contra os cidadãos. São estas companhias as mais assíduas e crentes nos sistemas de “fidelização”, um roubo legalizado ou uma emboscada contratual na qual as vítimas são evidentemente os utentes e assinantes.

 

São estas últimas companhias as rainhas do “call center”, sistema de atendimento, mas que na verdade é sobretudo um mecanismo de afastamento dos clientes e assinantes. Gravações entediantes e incompreensíveis, longuíssimos minutos de espera, música absurda, diálogo através de teclas, espera e mais espera. Estes são os sistemas, com total cobertura legal, sem fiscalização nem avaliação, através dos quais as companhias (geralmente privadas, mas podem incluir públicas) exploram os seus clientes ou subscritores e fazem-nos sentir culpados e obsoletos.

 

            Que tem tudo isto a ver com os acidentes do ascensor ou dos incêndios? A mesma atitude, os mesmos princípios: negligência e desmazelo. Indiferença pelo serviço público. E sobretudo esta ideia de que o público, os cidadãos, os trabalhadores ou os utentes das classes médias e baixas têm de aguentar. O que deveria ser primordial, receber bem e cuidar melhor, é apenas secundário e dispensável.

 

            O Ascensor da Glória é mais um numa longa e sinistra lista. Que inclui uma série fatal de incêndios florestais de 2003, 2005, 2013, 2016 (na Madeira) 2017 e 2025 especialmente os de Pedrógão, Arganil, Castanheira de Pêra e Seia, os desastres ferroviários de Alcafache e de Custóias, a aluvião da Madeira, a queda da ponte do Douro em Castelo de Paiva ou Entre-os-Rios, os vários acidentes aéreos da Madeira, dos Açores, de Lisboa, do Porto e do Algarve. Nuns casos, sobressai a falta de previsão e a negligência. Noutros, a incompetência. Noutros ainda, a falta de acompanhamento e de assistência às consequências. Em todos, a indiferença perante os serviços públicos e os cidadãos.

 

            Empresas e Administração Pública têm a certeza de que não há ninguém, ou quase ninguém, que as vigie, que as critique, que as obrigue a adaptar-se ao bem-estar dos cidadãos, à sua segurança e ao seu conforto. Numa palavra, aos seus direitos.

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Público, 13.9.2024

sábado, 6 de setembro de 2025

Grande Angular - O mundo que nós perdemos

 Enquanto, na Ásia, um inédito arraial exibe os novos vencedores e o futuro arranjo da balança de poderes, deste lado do Ocidente, o Presidente dos Estados Unidos envia tropas para Chicago ou mata uma dúzia de traficantes de droga venezuelanos. Após alguns anos de mutação lenta e gradual, de repente, o mundo acelerou. A ponto de merecer consagração. Na China e na Rússia. Com mais de metade do mundo a apoiar e a regozijar-se.

 

É verdade que, de tempos em tempos, o mundo necessita de ajustes. E mesmo quando estes não parecem ser necessários, acontecem. Aceite-se que o mundo actual está a pedir arranjo. Há alianças a desafazer-se, há novas a preparar-se. As desigualdades económicas e sociais têm crescido. As diferenças de poderio militar entre as nações são maiores. A competição armada atingiu graus perigosos. O mundo pobre e miserável, sobretudo africano, vive em guerra civil e é todos os dias despojado. A Rússia recuperou toda a sua força agressiva. A China chegou a uma posição única na história. Temendo a perda da hegemonia clássica, a América perturba com a guerra comercial. A Europa oscila entre a letargia e a hesitação.

 

As diferenças entre hoje e o que o mundo era há meio século são enormes. Há pessoas, de cinquenta anos, que não acreditam. Quando se menciona o apartheid, o comunismo, a pobreza, a fome e o racismo, há quem pura e simplesmente não acredite. Quem pense que se trata de banda desenhada. Em poucos anos, os mapas mudaram. A “Guerra Fria” começou e acabou, para ser agora novamente receada. O ascendente comunista e socialista foi imparável, antes de decair com estrondo. A chegada das colónias à independência anunciava uma nova humanidade. Uma voz do chamado “Terceiro Mundo” trazia para o presente um futuro apenas sonhado. Mas as guerras civis e a fome em África vieram desmentir a promessa. Lentamente, parecia que os Estados Unidos perdiam a sua hegemonia indiscutível. A derrota no Vietname sugeriu uma fragilidade inesperada.  Entretanto, o mundo do petróleo e da finança internacional afirmou-se com laivos de independência. E o desafio asiático, ganho em poucos anos, anunciou um novo equilíbrio ainda mal desenhado. A implosão absoluta do mundo comunista soviético chegou a parecer uma promessa de democracia. Tudo isto e muito mais se passou no tempo de uma vida.

 

Não é possível, pelo menos por enquanto, falar em nova aliança, ou sequer novas alianças, que incluam a China, a Rússia, a Índia, o Irão, a Coreia do Norte… Quem sabe se o Paquistão, o Iémen, o Laos e o Vietname…. Hipoteticamente, outros ainda, em África, no Próximo Oriente, na Ásia e até na América Latina. Mas é inegável que estamos a viver uma conjuntura favorável a uma convergência antiamericana, antiocidental, antieuropeia, anticapitalista e antiliberal. E também ainda uma conjuntura, ou antes, uma nova estrutura, favorável à China e à Rússia. A primeira como nova potência liderante, económica e industrial, mas já também tecnológica, científica e militar. A segunda, como potência militar restaurada e fornecedora de matérias-primas.

 

Para explicar aonde chegámos, há muitas interpretações, claro. É possível afirmar que a China só chegou aqui porque o mundo ocidental lhe abriu as portas, pediu emprestado, deslocalizou indústrias e transferiu tecnologia, tudo à espera do trabalho barato, da sociedade controlada e de um fabuloso mercado inesgotável. Como também é possível declarar que foi igualmente o mundo ocidental, europeu e americano, que enriqueceu a Rússia, comprando-lhe energia sem limites e matérias primas raras a preços invejáveis. É possível concluir que o mundo ocidental ajudou a fazer a China e a Rússia de hoje.

 

Também não se pode negar que algumas novas potências se afirmaram.  A Índia, o Paquistão e o Irão, pelo menos, fazem parte deste pacote “emergente”. Sem falar na aparição do fortíssimo poder do mundo islâmico graças a dezenas de anos de acumulação de colossais receitas do petróleo.

 

Outros fenómenos podem ser referidos como fazendo parte deste processo de transformação da balança de poderes. Por exemplo, o desinteresse europeu pela força armada, acompanhado da dependência marcada dos Estados Unidos. Estes, por diversas razões, reduziram o seu grau de empenho na aliança atlântica: ou porque olharam para o Pacífico e outras partes do mundo; ou porque entenderam que a Europa não os acompanhava. Pelos bons e pelos maus motivos, o certo é que, curiosamente, é no tempo do Presidente Trump que a América ficou menos poderosa e com rivais mais à sua altura.

 

A Europa está a perder. Seguramente. O universo europeu do Estado social e da política de prioridade aos direitos humanos está a perder também. Tal como a crença numa identidade europeia afecta à democracia, à cultura, à igualdade social e aos direitos humanos. Ao mesmo tempo incapaz de integrar imigrantes e povos de todos os horizontes e de regular os sistemas de acolhimento de estrangeiros.

 

Tempos houve, há poucas décadas, em que os países deste mundo, velhos e novos, aspiravam à designação de democracia. Inscreviam-na nas suas Constituições e até na sua designação oficial. As Repúblicas latino-americanas afastavam-se das suas tradições de golpes de Estado e procuravam alicerces para a democracia. Em África, apesar dos milhões de mortos nas suas guerras civis, os novos Estados independentes afirmavam fé democrática, declaravam com valor de lei que a democracia era o seu regime. As Repúblicas e os Estados asiáticos, com menor convicção, revelavam também a sua intenção democrática. 

 

Tudo isso acabou. Ninguém quer ser democrático, a não ser a minoria ocidental. E mesmo aqui, democracia é cada vez mais, para muitos, equivalente de conservador e privilegiado. Para não dizer opressor. É possível que a Europa e o Ocidente não percam muitas das suas regalias ou vantagens, nomeadamente económicas. Mas quem perde mesmo é a democracia e os direitos humanos. 

 

Podem a Europa e o Ocidente não ter só feitos de que nos orgulhemos. Muitos na história, alguns mais recentes. Entre guerras e conquistas, opressões e ditaduras, não faltam páginas negras. Mas a democracia e as liberdades dos cidadãos ficam como património excepcional que nenhum outro continente garantirá. Com a excepção jugoslava, as últimas décadas foram exemplos únicos de paz e democracia. Podemos não perder a liberdade e a democracia, mas deixámos de ser um exemplo. Os outros, a maior parte do mundo, deixaram de querer ser como nós.

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Público, 6.9.2024