sábado, 6 de setembro de 2025

Grande Angular - O mundo que nós perdemos

 Enquanto, na Ásia, um inédito arraial exibe os novos vencedores e o futuro arranjo da balança de poderes, deste lado do Ocidente, o Presidente dos Estados Unidos envia tropas para Chicago ou mata uma dúzia de traficantes de droga venezuelanos. Após alguns anos de mutação lenta e gradual, de repente, o mundo acelerou. A ponto de merecer consagração. Na China e na Rússia. Com mais de metade do mundo a apoiar e a regozijar-se.

 

É verdade que, de tempos em tempos, o mundo necessita de ajustes. E mesmo quando estes não parecem ser necessários, acontecem. Aceite-se que o mundo actual está a pedir arranjo. Há alianças a desafazer-se, há novas a preparar-se. As desigualdades económicas e sociais têm crescido. As diferenças de poderio militar entre as nações são maiores. A competição armada atingiu graus perigosos. O mundo pobre e miserável, sobretudo africano, vive em guerra civil e é todos os dias despojado. A Rússia recuperou toda a sua força agressiva. A China chegou a uma posição única na história. Temendo a perda da hegemonia clássica, a América perturba com a guerra comercial. A Europa oscila entre a letargia e a hesitação.

 

As diferenças entre hoje e o que o mundo era há meio século são enormes. Há pessoas, de cinquenta anos, que não acreditam. Quando se menciona o apartheid, o comunismo, a pobreza, a fome e o racismo, há quem pura e simplesmente não acredite. Quem pense que se trata de banda desenhada. Em poucos anos, os mapas mudaram. A “Guerra Fria” começou e acabou, para ser agora novamente receada. O ascendente comunista e socialista foi imparável, antes de decair com estrondo. A chegada das colónias à independência anunciava uma nova humanidade. Uma voz do chamado “Terceiro Mundo” trazia para o presente um futuro apenas sonhado. Mas as guerras civis e a fome em África vieram desmentir a promessa. Lentamente, parecia que os Estados Unidos perdiam a sua hegemonia indiscutível. A derrota no Vietname sugeriu uma fragilidade inesperada.  Entretanto, o mundo do petróleo e da finança internacional afirmou-se com laivos de independência. E o desafio asiático, ganho em poucos anos, anunciou um novo equilíbrio ainda mal desenhado. A implosão absoluta do mundo comunista soviético chegou a parecer uma promessa de democracia. Tudo isto e muito mais se passou no tempo de uma vida.

 

Não é possível, pelo menos por enquanto, falar em nova aliança, ou sequer novas alianças, que incluam a China, a Rússia, a Índia, o Irão, a Coreia do Norte… Quem sabe se o Paquistão, o Iémen, o Laos e o Vietname…. Hipoteticamente, outros ainda, em África, no Próximo Oriente, na Ásia e até na América Latina. Mas é inegável que estamos a viver uma conjuntura favorável a uma convergência antiamericana, antiocidental, antieuropeia, anticapitalista e antiliberal. E também ainda uma conjuntura, ou antes, uma nova estrutura, favorável à China e à Rússia. A primeira como nova potência liderante, económica e industrial, mas já também tecnológica, científica e militar. A segunda, como potência militar restaurada e fornecedora de matérias-primas.

 

Para explicar aonde chegámos, há muitas interpretações, claro. É possível afirmar que a China só chegou aqui porque o mundo ocidental lhe abriu as portas, pediu emprestado, deslocalizou indústrias e transferiu tecnologia, tudo à espera do trabalho barato, da sociedade controlada e de um fabuloso mercado inesgotável. Como também é possível declarar que foi igualmente o mundo ocidental, europeu e americano, que enriqueceu a Rússia, comprando-lhe energia sem limites e matérias primas raras a preços invejáveis. É possível concluir que o mundo ocidental ajudou a fazer a China e a Rússia de hoje.

 

Também não se pode negar que algumas novas potências se afirmaram.  A Índia, o Paquistão e o Irão, pelo menos, fazem parte deste pacote “emergente”. Sem falar na aparição do fortíssimo poder do mundo islâmico graças a dezenas de anos de acumulação de colossais receitas do petróleo.

 

Outros fenómenos podem ser referidos como fazendo parte deste processo de transformação da balança de poderes. Por exemplo, o desinteresse europeu pela força armada, acompanhado da dependência marcada dos Estados Unidos. Estes, por diversas razões, reduziram o seu grau de empenho na aliança atlântica: ou porque olharam para o Pacífico e outras partes do mundo; ou porque entenderam que a Europa não os acompanhava. Pelos bons e pelos maus motivos, o certo é que, curiosamente, é no tempo do Presidente Trump que a América ficou menos poderosa e com rivais mais à sua altura.

 

A Europa está a perder. Seguramente. O universo europeu do Estado social e da política de prioridade aos direitos humanos está a perder também. Tal como a crença numa identidade europeia afecta à democracia, à cultura, à igualdade social e aos direitos humanos. Ao mesmo tempo incapaz de integrar imigrantes e povos de todos os horizontes e de regular os sistemas de acolhimento de estrangeiros.

 

Tempos houve, há poucas décadas, em que os países deste mundo, velhos e novos, aspiravam à designação de democracia. Inscreviam-na nas suas Constituições e até na sua designação oficial. As Repúblicas latino-americanas afastavam-se das suas tradições de golpes de Estado e procuravam alicerces para a democracia. Em África, apesar dos milhões de mortos nas suas guerras civis, os novos Estados independentes afirmavam fé democrática, declaravam com valor de lei que a democracia era o seu regime. As Repúblicas e os Estados asiáticos, com menor convicção, revelavam também a sua intenção democrática. 

 

Tudo isso acabou. Ninguém quer ser democrático, a não ser a minoria ocidental. E mesmo aqui, democracia é cada vez mais, para muitos, equivalente de conservador e privilegiado. Para não dizer opressor. É possível que a Europa e o Ocidente não percam muitas das suas regalias ou vantagens, nomeadamente económicas. Mas quem perde mesmo é a democracia e os direitos humanos. 

 

Podem a Europa e o Ocidente não ter só feitos de que nos orgulhemos. Muitos na história, alguns mais recentes. Entre guerras e conquistas, opressões e ditaduras, não faltam páginas negras. Mas a democracia e as liberdades dos cidadãos ficam como património excepcional que nenhum outro continente garantirá. Com a excepção jugoslava, as últimas décadas foram exemplos únicos de paz e democracia. Podemos não perder a liberdade e a democracia, mas deixámos de ser um exemplo. Os outros, a maior parte do mundo, deixaram de querer ser como nós.

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Público, 6.9.2024