sábado, 30 de agosto de 2025

Grande Angular - O que quer o Chega

 Até quando abusará, Ventura, da nossa paciência? Até onde irão a sua determinação e a do seu partido em destruir o Parlamento, demolir as instituições, ridicularizar os órgãos eleitos e minar a representação popular? Até quando permitirá a República que estes senhores insultem os eleitos, ameacem os rivais, envergonhem os cidadãos, admoestem os adversários e ofendam quem se lhes opõe? Até quando permitiremos que esta turma de arruaceiros ofenda os deputados e os governantes, os políticos e os comentadores, os autarcas e os cidadãos?

 

Abusar do Parlamento? Ameaçar o Senado? Ofender a Assembleia? Acusar os Autarcas? Difamar os representantes do povo? É uma velha tradição. Catilina fez. Calígula insistiu. Robespierre também. Lenine e Estaline do mesmo modo. Hitler ainda pior. Idi Amin Dada tentou. Bokassa também.

 

O Chega é pouco educado. Não é democrata. Não é construtivo. Não é elitista. É inculto. É popular. É populista. É inteligente. Não tem pensamento político. Não tem doutrina. Não tem programa. Tem sentimentos. Tem raiva. Tem intuição. Tem olfacto. Sente a maré. Explora o fácil. Se o deixarem fazer, dá cabo de tudo. Tenta, pelo menos. Não respeita as instituições. Não se interessa pelo Parlamento. Se não o deixarem fazer, dá cabo de tudo. Tenta, pelo menos.

 

Um morto, um ferido, um acidente, um acto de violência, uma corrupção, uma adjudicação sem concurso, um favor de partido, um atraso, um injustiçado, um inocente condenado, um cidadão assaltado, um branco atacado por um negro, um imigrante que assalta uma bomba de gasolina, um político que enganou o fisco, um esquerdista que não declarou a propriedade, uma mãe com fome, um pai sem emprego, um pobre sem almoço e um velho numa fila de espera do hospital: é com esta matéria-prima que o Chega faz política. Com a ajuda das esquerdas e da comunicação social.

 

A denúncia destas situações é o argumento do Chega. Tem sempre razão. De todos elas diz que são uma vergonha. Não pretende, nem sabe, corrigir. Quer denunciar. Não tem solução nem meios para tratar do que quer que seja. Mas tem vontade e apetite de poder. É como uma bola a saltar, nunca pode parar. A bola do escândalo. A bola da vergonha. Se o atacam, se alguém o quer calar, aqui d’el rei que é contra a democracia.

 

São os mais ilustres provocadores na actual vida portuguesa. Provocam até que lhes digam basta, até que os ameacem, até que tentem utilizar a força ou a lei. No dia em que o fizerem, que utilizem a força e a lei contra eles, socorro estão a dar cabo da democracia. Vão continuar a inventar cartazes, bandeirolas, pichagens, foguetes, carros folclóricos, tatuagens e máscaras. Vão continuar a conspurcar a via pública com horrendos cartazes demagógicos, à espera que lhos tirem, que venham agredir quem os cola e que rasguem a sua liberdade de expressão. Vão sujar de demagogia barata as praças, as ruas e os largos. Mas, se pretenderem disciplinar a sua actividade de rua, aqui d’el rei que estão a atacar a democracia. O pior é que os outros, os outros partidos, os democráticos, os tradicionais, também sujam as ruas das cidades.

 

Que não se pense em proibir, interditar ou deter. Nada disso é legal ou legítimo. Nada disso é democrático. Salvo se cometerem crime, pelo que devem ser apresentados a Tribunal, nunca devem ser combatidos com meios violentos ou ilegítimos. Só devem ser derrotados de uma maneira, a democrática, isto é, com eleições. E só podem ser combatidos de um modo, fazendo melhor, não sendo corrupto, não sendo nepotista, não sendo intriguista, sabendo criar riqueza e sabendo governar. No dia em que os outros, da direita, do centro ou das esquerdas, souberem governar e governem efectivamente sem atrasos, sem erros, sem demagogia, sem corrupção e sem mentira, nesse dia, o Chega é derrotado.

 

Problemas ou crimes com incêndios? Negócios com queimados, aviões, helicópteros e mangueiras? A solução está à vista: 25 anos de prisão! Pena máxima! Prisão perpétua? Logo se verá. Noutros países é permitido. Violação? Simples: pena máxima de 25 anos e castração química. Violência infantil? Evidente: pena máxima de 25 anos! Infracção cometida por imigrante ou estrangeiro? Claro: expulsão imediata. Crime ou infracção cometido por português naturalizado? Óbvio: expulsão e perda da nacionalidade. Pena de 50 anos? Pena perpétua? Estão na agenda, nas esperanças do Chega e de Ventura. E serão bandeiras, enquanto a Constituição as proibir. Parecem bonecos de feira. Vozes gravadas, slogans automáticos, pensamentos mecânicos. Perante qualquer acontecimento, erro, insuficiência, desastre ou o que for: demissão do ministro, demissão do Primeiro ministro e comissão parlamentar de inquérito. 

 

É um dos velhos princípios de uma certa política: culpa os outros dos teus defeitos, responsabiliza os outros pelas tuas deficiências e acusa os outros dos teus erros! É exactamente o que os democratas e as esquerdas fazem relativamente ao Chega. 

 

Primeiro, caracterizam-no mal. É fascista, é neofascista, é neonazi, é salazarista, é ultraliberal e é neoliberal. Nada disso é inteiramente verdade, nem sequer maioritariamente verdade. Pode ser que haja disso, aqui e ali, no que o Chega faz ou diz. Mas nada daquilo serve a compreensão das causas do movimento político. Essas designações simplórias têm a vantagem de fazer a economia do pensamento. Mas de nada servem, a não ser revelar as insuficiências de quem as utiliza. Depois, escondem os erros dos seus autores. Culpar a extrema-direita de ser a extrema-direita é simplesmente estúpido. Culpar os outros pelo nascimento deste movimento já poderia ser um princípio de exercício de compreensão. O Chega não está no ponto em que está por ser fascista ou de extrema-direita. Está lá porque o deixaram ser e o ajudaram a crescer. As falhas da democracia são vitaminas para a direita não democrática. Como aliás já foram para a esquerda não democrática. 

 

A democracia não cai às mãos de assaltantes, começa por cair dentro de si. É o mau governo, a desigualdade, a corrupção, a indiferença social e a arrogância dos democratas e das esquerdas que são o viveiro das ditaduras, das aventuras de extrema-direita, de todos os populismos deste mundo. Será que o Chega tem solução para esses vícios e esses defeitos? Talvez não. É provável que não. Não é isso que ele pretende, o que procura é chegar ao poder, ficar no poder e guardar o poder. Porquê e para quê, depois se verá. 

Público, 30.8.2024

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Grande Angular - Ainda e sempre, a imigração

 O direito a viajar, emigrar, deslocar-se e estabelecer-se é de todos. Mas isso não implica o dever de receber imigrantes. Os países de acolhimento, os Estados que dão abrigo e os povos que concedem refúgio têm o direito e o dever de escolher, de aceitar ou de condicionar a chegada de pessoas de outras nacionalidades. Por mais universal que queiramos que sejam os valores de civilização e de humanidade, a verdade é que a democracia e a legalidade têm uma geografia. Existe um atlas da liberdade. Por isso as ditaduras não recebem imigrantes. Não reconhecem o direito de deslocação e viagem. Não aceitam os direitos de livre circulação.

 

Os povos, os Estados e os governos dos países de acolhimento têm o direito e o dever de tornar públicos os seus critérios de acolhimento. Que género de imigrantes estão mais dispostos a receber? Em que condições reconhecem um refugiado e um perseguido? Até que ponto definem a distinção entre imigrantes económicos e candidatos a refugiados? Portugal tem o direito e o dever de adoptar uma política de preferência, por exemplo, por falantes de língua portuguesa, habitantes das ex-colónias e europeus. Também pode, evidentemente, garantir que não tem qualquer preferência e que as condições de acolhimento são exactamente iguais para todos. Mas tal não é verdade.

 

Portugal tem o direito e o dever de estabelecer prioridades e preferências de carácter social, económico e profissional, de acordo com as suas necessidades e o equilíbrio familiar e demográfico. Esses critérios devem ser anunciados e elaborados com a participação das populações através de todas as maneiras conhecidas de associação dos cidadãos às decisões que lhes interessam.

 

Portugal tem o dever de zelar pela igualdade de condição entre cidadãos residentes e naturais, imigrantes, naturalizados e refugiados. As pessoas comportar-se-ão como entenderem, mas as entidades públicas não podem acordar privilégios nem estabelecer condições de cidadania de segunda ordem. As instituições oficiais devem cuidar por que os grandes serviços públicos de saúde, segurança social, educação, habitação e transporte respeitem uma absoluta igualdade entre naturais, imigrantes e naturalizados.

 

As autoridades portuguesas não têm o direito de transformar a política de imigração ou de nacionalidade em instrumento de domínio. As instituições públicas não têm o direito, por exemplo, de utilizar a nacionalidade, original ou obtida, como arma de submissão ou critério de participação. Fere as regras básicas de moral e de humanidade, assim como as da constitucionalidade que temos, a ideia de utilizar a nacionalidade como instrumento de repressão. Não é aceitável que existam critérios de legalidade penal diferentes para os nacionais originários e os naturalizados. A nacionalidade obtida é igual à original, não tem valor diferente.

 

As autoridades portuguesas têm o direito e o dever de tornar públicas as regras legais que condicionam as autorizações de trabalho e residência. É legítimo que existam vários escalões de autorização de residência, por exemplo, provisório, de curta duração, anual, de longa duração ou definitivo. Mas é indispensável que esses critérios sejam públicos.

 

É legítimo e recomendável que as autoridades portuguesas aprovem, pelas vias democráticas, as regras de procedimento, designadamente as associadas à residência de imigrantes. É direito e dever impedir, proibir e punir o trabalho ilegal, a fuga ao fisco, a residência ilegal, o recrutamento de trabalho ilegal e clandestino e a fuga às obrigações civis seja por parte dos imigrantes, seja pelos empregadores, senhorios ou intermediários.

 

Pelo que se sabe através da história, é evidente que Portugal, um qualquer Estado democrático, não consegue regular a evolução demográfica, a livre circulação de pessoas e a mobilidade espacial. Mas é indispensável que as autoridades tentem planear e prever o movimento migratório, de acordo com as necessidades e as capacidades de acolhimento. Como é um dever e um direito lutar firmemente contra a ilegalidade, a clandestinidade, a exploração e o abuso da precaridade.

 

As autoridades têm o direito e o dever de proibir e reprimir os comportamentos tão conhecidos relativos à clandestinidade, à ilegalidade e ao mercado negro de residências falsas, de alojamento infra-humano, de trabalho clandestino e de aluguer ilegal de carros, de habitação e de título de residência. Assim como combater os que organizam os circuitos ilegais de candidatos à imigração, incluindo os aviões de turismo, os barcos de transporte, os botes improvisados e os autocarros disfarçados.

 

As autoridades portuguesas têm o direito e o dever de controlar os reagrupamentos familiares, a fim de impedir que tais dispositivos se transformem num incitamento à ilegalidade. É dever reprimir e não tolerar o mercado de noivas e de maridos, o aluguer de crianças e de filhos, os casamentos disfarçados, a poligamia camuflada e outras formas de escapar à lei e de introduzir dolosamente novos procedimentos na vida civil.

 

Se cada povo tem o direito de escolher a quem oferece as melhores condições de acolhimento, a inversa não é verdade: um povo não tem o direito de ir para onde quiser obrigando os residentes a aceitá-los. Os imigrantes não têm os mesmos direitos do que os nacionais ou naturalizados. A começar pelo direito de voto em eleições que impliquem a criação e a escolha dos órgãos de soberania, a revisão e a aprovação da Constituição, a declaração de guerra e paz ou as decisões sobre o Estado de sítio. Mas a naturalização cria a total igualdade de condição.

 

O Estado português tem o direito e o dever de proibir práticas que infrinjam as leis vigentes, mas também os costumes que contrariem direitos fundamentais, como nos casos do incesto, do vestuário que contraria direitos da pessoa humana, da violência paterna ou materna e da crueldade marital. Ou ainda da excisão, do casamento forçado ou contratado, do uso de véu e Burca, da justiça pelas próprias mãos e da negação de direitos às mulheres e às crianças.

 

As comunidades imigrantes que vivem fechadas em guetos ou bairros monocolores mais ou menos segregados, são ameaças à liberdade e à cultura, nossas e deles, dos residentes e dos imigrantes. A legalização e a integração dos imigrantes, a igualdade de direitos e o respeito pelas leis vigentes são os instrumentos fundamentais para obter o equilíbrio social e a dignidade humana.

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Público, 23.8.2025

Grande Angular - Uma decisão soberana

Os ânimos estão muito vivos. A polémica corre facilmente pelo espaço público. Tanto em Portugal, como noutros países ocidentais. Que fazer com a imigração e os imigrantes? Deixar correr, controlar ou travar?

 

As opiniões chocam-se e não parece que haja solução fácil. Nos países de acolhimento, há quem se exprima a favor de políticas permissivas, de portas abertas e quem esteja firme na atitude inversa, de fronteiras fechadas. Entre as duas opiniões, há os que pretendem controlar a imigração, como, por exemplo, os que desejam só permitir a entrada de quem se precisa. Também há os que defendem a rápida legalização de todos os imigrantes, com ou sem contrato, com ou sem residência. Ou então, os que propõem a imediata expulsão de quem não entra legalmente. Há ainda os que desejam uma política diferenciada, isto é, ajustada a cada nacionalidade. Por exemplo, quem admita a permissividade para os países de língua portuguesa e a severidade para outros africanos e asiáticos. Há os que entendem que se deve ter uma atitude para cristãos e equiparados e outra para muçulmanos e afins. Também há quem acredite que se deve ter uma política permissiva para ocidentais, europeus em particular, e outra restritiva para africanos, latino-americanos e asiáticos. Também não faltam os que desejam uma política para imigrantes ricos e outra para imigrantes pobres.

 

No domínio dos argumentos dos mais activistas, as diferenças são muitas e a ferocidade imensa. É frequente encontrar quem acuse uns de supremacistas, de pretender assegurar uma posição dominante de cristãos e europeus, de defender a “pureza” da raça e de tentar garantir o domínio dos brancos. Como também não é raro ver quem acuse os outros de se esforçarem pela dissolução da nação e da comunidade, pela destruição das tradições portuguesas e nacionais e pela mestiçagem racial, étnica e cultural.

 

Se olharmos para as políticas públicas, também aí se encontram diferenças abissais e irredutíveis. Há quem exija que as autoridades, os poderes, as autarquias, as empresas e a sociedade defendam e pratiquem a integração dos imigrantes, com a muito rápida assimilação de costumes, língua, cultura, tradições e hábitos. Mas também, do lado oposto, quem cultive as políticas multiculturalistas que privilegiam a manutenção das culturas diferentes, o uso das línguas próprias, a educação separada, a religião diferenciada e pública e até práticas de legalidade diferente (casamento, vínculo familiar, sucessão, iniciação, gastronomia e saúde).

 

Do mesmo modo, é fácil ver a defesa da habitação integrada, de populações misturadas, sem distinção de comunidades de acordo com as origens e as etnias. Ou ver os que favorecem a diferenciação de bairros e de habitação em geral. Em poucas palavras, o urbanismo integrado e miscigenado em oposição ao urbanismo multicultural e separado.

 

As que precedem são opções simples que encontramos todos os dias. Vêm muitas vezes recheadas de argumentos contundentes. Os que receiam a imigração insurgem-se contra os respectivos perigos alegados: mais criminalidade, mais violência, mais droga, mais fuga ao fisco e incumprimento das leis. Em contraste, há os que defendem a imigração, demonstram que as suas comunidades respeitam as leis, pagam impostos, dão lucros à Segurança Social, criam emprego, trabalham onde falta mão de obra, executam as tarefas que os residentes não querem levar a cabo e sobretudo garantem a renovação das gerações graças à natalidade superior.

 

Elevando um pouco o debate, é usual encontrar argumentos relativos à história, à civilização e à natureza da comunidade. Muitos reagem contra a imigração pelo que esta representa como adulteração dos valores nacionais, das crenças históricas, das tradições que fizeram um país, uma língua e uma pátria. Outros recusam pura e simplesmente este ponto de vista, garantindo que Portugal e o povo português são o resultado de permanente mistura, da contribuição de vários povos e diversas origens e da constante mistura de nacionalidades e tradições.

 

Por mais difíceis que sejam os termos destes debates, saúda-se que estes tenham lugar agora. Mesmo se ríspidos e belicosos, mesmo se recheados de preconceitos, saúda-se o facto de se estar a discutir algo de importante. A definição do que é Portugal, do que é um povo e do que é uma cultura é bem mais relevante do que se pode pensar. Até certo ponto, os termos que se debatem fazem parte dos fundamentos da liberdade. O conhecimento de si próprio, tão isento quanto possível de preconceitos, é condição para delinear a liberdade e a autonomia de si próprio.

 

Nenhum destes problemas é exclusivamente português. Com excepção das ditaduras, todo o mundo vive hoje sob o signo das migrações, resultado dos desequilíbrios e das desigualdades demográficas, sociais e económicas. Portugal pode revelar traços próprios, como, por exemplo, a simultaneidade da partida de dezenas de milhares de emigrantes e da chegada de dezenas de milhares de imigrantes, mas na verdade partilha com tantos outros países condições sociais e demográficas semelhantes. Além disso, Portugal faz parte de um conjunto político que se transforma todos os dias em tecido social, económico e cultural feito de interdependência. Em certo sentido, as migrações portuguesas já não são problemas portugueses, são a versão portuguesa de questões europeias e internacionais. Por outras palavras, não é razoável pensar que se pode tratar da questão das migrações exclusivamente numa perspectiva portuguesa. A não ser que o país deixe a União Europeia, feche as suas fronteiras e estabeleça uma ditadura.

 

Sendo assim, qual a solução mais razoável? Gerir o dia a dia e ir com a corrente, ou tentar fazer uma política própria, só nacional? A verdade estará algures a meio caminho, entre a afirmação de vontades nacionais e a partilha de destinos e políticas com os nossos parceiros. Por isso se saúda a actualidade do tema e da discussão, mesmo se o Governo e os partidos estejam mais preocupados com as percepções, as impressões e as consequências eleitorais. Uma coisa é certa: deixar correr e permitir avolumar-se o mal-estar das migrações é um erro catastrófico. Tal como é um engano monumental pretender tratar destes problemas apenas numa óptica nacional. 

Mas mesmo isso tem de ser uma decisão informada e soberana. Ela própria uma decisão nacional e livre.

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Público, 16.8.2025 

sábado, 9 de agosto de 2025

Grande Angular - A vitória do trivial

 O quadro é simples. O governo tenta governar como se tivesse a maioria parlamentar e uma legislatura de quatro anos à sua frente. Como há leis e orçamentos, além de decretos que podem ser chamados ao parlamento, o governo também tem ideia assente: aprova leis ora com o Chega, ora com o PS. E se mais houvesse e mais fossem necessários, faria o mesmo. O importante é fazer “como se”. Como se tivesse maioria. Como se os partidos da oposição precisassem mais do governo do que este deles. Como se o apoio do Presidente estivesse garantido. O governo olha em frente. Não discute nem negoceia. Faz. Quem quiser ir com ele, vai. Quem não quiser, paciência.

 

A pequena política e a pequena governação fazem-se todos os dias. Mais dinheiro para contribuintes. Mais subsídios para pensionistas. Menos IRS para aqui. Mais bónus para ali. A grande governação segue também a sua via. São anunciadas reformas de serviços dos ministérios. Sugeridas novas leis sobre temas fundamentais como o trabalho, a saúde, a educação e a segurança social. Promessa de abertura de novos projectos. O lítio, o aeroporto, o TGV, a TAP, a CP, o Centro de Dados e a terceira ponte do Tejo são apenas alguns dos planos que serão acelerados de modo a dar resultados eleitorais e a preparar uma maioria absoluta. Assim como reforçar os interesses estrangeiros. O governo não espera por maiorias para governar e reformar. Governa e reforma para obter a maioria. O que deixa o Chega e o PS em situação difícil. Deixar e depois perder? Ou impedir a depois perder à mesma?

 

Nada disto é novo. Já vimos parecido ou igual. Mário Soares tentou, sem conseguir. Cavaco Silva também, mas com mais êxito. Guterres esforçou-se. Sócrates e Costa desperdiçaram. Montenegro perdeu a primeira volta, veremos agora a segunda. Uma coisa é certa: na maior parte dos casos, a governação segue o interesse político, partidário ou pessoal. A procura da maioria programática e duradoura, garantia de eficácia e reforma, parece estar sempre ao serviço um desígnio maior, o de conquistar o poder. É pena, mas é assim.

 

O espaço público, da política, das instituições, das redes e da comunicação social, está repleto de trivialidades, de pequenas histórias que enfeitam a política e impedem os grandes debates. Pior ainda: está cheio de banalidades que escondem as principais escolhas. Importante é saber se o PS apoia ou não uma lei ou um orçamento. Ou saber se o Chega vota a favor de outra lei e de outro orçamento. Importante é saber se o Presidente Marcelo apoia hoje ou nega amanhã. Decisivo é impedir que problemas sérios ocupem a agenda pública, que debates substantivos esclareçam a opinião e possam mesmo envolver cidadãos, classes e instituições. 

 

O governo tenta passar leis de trabalho que sejam mais simpáticas para os patrões, sem que se perceba muito bem. Esforça-se por manter o país como fornecedor de emigrantes e acolhedor de mão-de-obra barata e precária. Tenta atrair empresários e capitalistas, não especialmente os nacionais, que não têm capital nem saber suficientes, mas os internacionais que importam. Tudo isto merecia debate nacional, aberto e permanente, mas não será o caso. Tem é de se saber quem vota a favor, quem apoia…. Chega? PS? PR?

 

O governo procura ainda, nas leis laborais, mecanismos punitivos contra as mulheres, não por ser machista, mas porque quer ter uma economia mais aberta, com menos interferência social, com mais permissividades e menos direitos. Até lhe ocorreu castigar a maternidade e penalizar os respectivos projectos, sem fundamentos empíricos evidentes, mas certamente com preocupações mediáticas e partidárias. E muito preconceito.

 

Perante a justa pressão pública para que se faça o debate nacional sobre as questões de nacionalidade, assim como sobre a política de imigração, o governo responde atabalhoadamente, quer agradar aos seus clientes eleitorais, mas pretende sobretudo desarmar o Chega, ao mesmo tempo que incomodar o PS. Fez más leis e tentou desnortear o Presidente da República. As suas leis, justamente chumbadas e vetadas, revelam falta de cuidado, precipitação e obsessão ideológica.

 

Mais uma vez, o governo ocupou-se da TAP e fez lei que permita a venda e a privatização, quem sabe se a liquidação. É chocante e incompreensível que todos os governos se queiram ocupar da TAP, que a sua privatização e a sua nacionalização, assim como a reprivatização e a renacionalização, estejam sempre na ordem do dia. Quanto já se perdeu, em valor, capital e reputação, com esta hesitação e estas manobras? Haverá assim tantos interesses ilegítimos ou disfarçados que explicam esta saga da TAP?

 

Também de repente, sem aviso nem preparação, sem revelação de fundamentos e de objectivos, é anunciada a extinção da FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia), organismo público de excepcional peso e importância, com orçamento e despesa que ultrapassam os 800 milhões de Euros. É um dos mais importantes órgãos do Estado, de cuja actuação podem depender milhares de pessoas, centenas de instituições, muita ciência e uma boa parte do futuro do país. Veremos se o governo decidiu bem, se sabe mais, se tem melhores planos e se vai conseguir que o substituto valha a pena. Mas não parece que este método de supetão seja o mais adequado para reformar um organismo de tal importância académica, educativa, científica e cultural.

 

Ainda à cabeça da vida nacional, à frente nas redes e na comunicação, estão as intervenções descabidas, de mau gosto e de baixo estofo moral, de André Ventura sobre as crianças estrangeiras nas escolas. Mais uma vez, o incidente é mais importante do que o tema. O mundo quer saber o que pensa o Presidente, o que diz o governo, o que acha a oposição. Há mesmo quem preveja um processo judicial contra a declaração do deputado. Futilidades.

 

Importante, realmente importante, vital para o país e para os portugueses, essencial para a qualidade de vida dos cidadãos, molde das gerações futuras é o problema das relações entre Belém e São Bento, entre o governo e o Presidente, entre Marcelo e Montenegro. Mais importante ainda é o voto do Chega. Imigrantes, naturalização, licenças de maternidade, despedimentos de trabalhadores, regime de precaridade, FCT, TAP, TGV, terceira ponte, lítio e Central de Dados: tudo isso tem importância relativa. Realmente importante é a coreografia do governo, do Presidente, do Chega e do PS. 

Público, 9.8.2025

sábado, 2 de agosto de 2025

Grande Angular - A guerra perdida de Israel

 É provável que, como nunca antes, a larga maioria da opinião pública mundial e das posições dos Estados esteja contra Israel, contra a sua campanha militar, contra os métodos utilizados em Gaza e contra a responsabilidade do governo na não obtenção do regresso dos reféns. Até já dentro de Israel a opinião contrária ou crítica do governo e da sua acção em Gaza e na Cisjordânia começa a ser significativa e pública. As reacções justas e justificadas do governo e das Forças Armadas de Israel contra os covardes ataques do Hamas começaram por ser aceites sem dificuldade. Dois anos depois, são geralmente consideradas desproporcionadas, excessivas e até dignas do epíteto de genocídio. Os mais indignados fazem mesmo repetidas alusões ao Holocausto. De vítima, Israel passou rapidamente a criminoso.

 

Há, evidentemente, razões para isso. A destruição de Gaza, os bombardeios das cidades e vilas, a destruição de escolas e hospitais, a morte sem distinção de militares, guerrilheiros, terroristas, civis, idosos, doentes, mulheres e crianças e a imposição de regime de fome e sede são motivos suficientes para condenar a política do governo de Israel. O massacre de uma população, de um povo, de uma comunidade e de um país é motivo mais do que suficiente para criticar e rejeitar a acção do governo de Israel.

 

É impressionante ver como a opinião pública crítica e contrária à política do governo de Israel foi crescendo ao longo destes dois anos. A crueldade terrorista dos ataques islâmicos de 7 de Outubro de 2023 foi quase universalmente condenada. Excepto nos países mais fanáticos, a começar pelo Irão e incluindo o Líbano, o Iémen e a Síria, a campanha do Hamas contra Israel foi então criticada. Mais de mil pessoas assassinadas e mais de duzentos reféns foi o resultado imediato da acção terrorista, prontamente denunciada pela opinião pública mundial. Depois disso, a acção do governo de Netanyahu conduziu sistematicamente a mudar a opinião, actualmente em maioria desfavorável a Israel. Foram, até hoje, mais de 50.000 palestinianos mortos. Foi uma espécie de país totalmente destruído, onde deixaram de existir casas, ruas, vilas e cidades. Foram, provocadas pelo governo de Israel, a fome, a sede e a doença, assim como a falta de cuidados médicos e de apoio humanitário. Multiplicam-se hoje, pelo mundo inteiro, as manifestações e os protestos contra o governo de Israel, sem que ninguém ou praticamente ninguém se levante para defender e apoiar este país.

 

É chocante ver como os movimentos terroristas do Hamas, do Hezbollah, da Al Qaeda, do Estado Islâmico (ISIS) e da Jihad Islâmica, assim como os Estados que os apoiam explicitamente (com relevo para o Irão) têm vindo a receber e gozar do estatuto de vítimas, de movimentos políticos razoáveis e de partidos com ideias aceitáveis pelo resto do mundo. Mais ainda, estes movimentos, condenados por grande parte da opinião, são hoje considerados como interlocutores aceitáveis. O Hamas, o Hezbollah, restantes grupos terroristas e respectivos governos apoiantes souberam, com mestria, aproveitar e fomentar a onda de opinião a seu favor. A utilização intensiva de feridos e de cadáveres de mulheres, de crianças e de idosos na comunicação social do mundo inteiro está a dar resultados valiosos para as suas causas. 

 

Mais do que nunca antes na história, os movimentos terroristas islâmicos, a começar pelo Hamas e pelo Hezbollah, utilizaram os civis, os idosos, as crianças e as mulheres como escudos humanos. Esconderam-se debaixo deles, sob os hospitais e as escolas, dentro dos lares de velhos e doentes, a fim de provocar massacres de inocentes para poder exibir nas televisões, nos jornais e na ONU. Cavaram centenas de quilómetros de túneis e de subterrâneos sob as cidades, debaixo das instituições, das escolas e dos hospitais. Raramente, na história da humanidade, se assistiu a uma tal crueldade, a um tal cinismo. Os movimentos terroristas, a começar pelo Hamas, procedem com especial cuidado a fim de provocar sempre a morte de crianças, o desmembramento de idosos e os ferimentos de mulheres. A morte por fome e sede, a desnutrição, a subnutrição e os ferimentos mortais de crianças são procurados pelo Hamas e exibidos com orgulho como prova da sua justeza e da crueldade de Israel.

 

No mundo ocidental, na Europa, nos Estados Unidos, no Canada e na América Latina, mas também na Austrália, no Japão e na Nova Zelândia, Israel é hoje o agressor cruel e desumano, enquanto os terroristas do Hamas e seus apoiantes são as vítimas. Na Europa e na América, tem tido larguíssimo curso esta realidade dos “dois pesos e duas medidas”, ou de “double standards”, que tanto mal faz à democracia e ao sentido de humanidade. Que tanto prejuízo provoca nos fundamentos da moral pública dos países democráticos. Os países que não reconhecem Israel, que desejam e lutam pela sua extinção, são desculpados e justificados. Mas são condenados os que não reconhecem o Estado da Palestina.

 

A discussão sobre a solução dos dois Estados e sobre o reconhecimento do Estado da Palestina está já a dar frutos favoráveis aos movimentos terroristas. Não se exige o reconhecimento do Estado de Israel, mas sim e apenas o da Palestina. Considera-se aceitável a política oficial de vários movimentos e de alguns Estados da região que consiste em propor a eliminação do Estado de Israel e a expulsão do seu povo. Reconhece-se o direito à sobrevivência e à defesa de qualquer grupo ou Estado islâmico, mas não se reconhece o mesmo ao Estado israelita.

 

O povo de Israel, com toda a sua formidável história, notável nas ciências, nas artes e nas finanças, um “povo orgulhoso”, como lhe terá chamado De Gaulle, este povo não merecia esta enorme derrota política, humanitária e cultural, cujas consequências se vão arrastar durante tempos sem fim. O governo de Israel tem todo o direito a defender a sua existência, cabalmente legalizada há décadas, mas não tem o direito de massacrar outros da maneira como está a fazer em Gaza e se prepara para fazer na Cisjordânica. Tem o direito de atacar o Hamas e o Hezbollah, assim como os governos da região que os apoiam, mas não tem o direito de massacrar um povo. O governo de Israel, raríssima democracia naquela região do mundo, não tinha o direito de infligir esta derrota ao seu povo e à democracia do seu Estado.

 

Um dia falar-se-á da vitória militar de Israel. É possível. Política é que não é.

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Público, 2.8.2025