sábado, 9 de agosto de 2025

Grande Angular - A vitória do trivial

 O quadro é simples. O governo tenta governar como se tivesse a maioria parlamentar e uma legislatura de quatro anos à sua frente. Como há leis e orçamentos, além de decretos que podem ser chamados ao parlamento, o governo também tem ideia assente: aprova leis ora com o Chega, ora com o PS. E se mais houvesse e mais fossem necessários, faria o mesmo. O importante é fazer “como se”. Como se tivesse maioria. Como se os partidos da oposição precisassem mais do governo do que este deles. Como se o apoio do Presidente estivesse garantido. O governo olha em frente. Não discute nem negoceia. Faz. Quem quiser ir com ele, vai. Quem não quiser, paciência.

 

A pequena política e a pequena governação fazem-se todos os dias. Mais dinheiro para contribuintes. Mais subsídios para pensionistas. Menos IRS para aqui. Mais bónus para ali. A grande governação segue também a sua via. São anunciadas reformas de serviços dos ministérios. Sugeridas novas leis sobre temas fundamentais como o trabalho, a saúde, a educação e a segurança social. Promessa de abertura de novos projectos. O lítio, o aeroporto, o TGV, a TAP, a CP, o Centro de Dados e a terceira ponte do Tejo são apenas alguns dos planos que serão acelerados de modo a dar resultados eleitorais e a preparar uma maioria absoluta. Assim como reforçar os interesses estrangeiros. O governo não espera por maiorias para governar e reformar. Governa e reforma para obter a maioria. O que deixa o Chega e o PS em situação difícil. Deixar e depois perder? Ou impedir a depois perder à mesma?

 

Nada disto é novo. Já vimos parecido ou igual. Mário Soares tentou, sem conseguir. Cavaco Silva também, mas com mais êxito. Guterres esforçou-se. Sócrates e Costa desperdiçaram. Montenegro perdeu a primeira volta, veremos agora a segunda. Uma coisa é certa: na maior parte dos casos, a governação segue o interesse político, partidário ou pessoal. A procura da maioria programática e duradoura, garantia de eficácia e reforma, parece estar sempre ao serviço um desígnio maior, o de conquistar o poder. É pena, mas é assim.

 

O espaço público, da política, das instituições, das redes e da comunicação social, está repleto de trivialidades, de pequenas histórias que enfeitam a política e impedem os grandes debates. Pior ainda: está cheio de banalidades que escondem as principais escolhas. Importante é saber se o PS apoia ou não uma lei ou um orçamento. Ou saber se o Chega vota a favor de outra lei e de outro orçamento. Importante é saber se o Presidente Marcelo apoia hoje ou nega amanhã. Decisivo é impedir que problemas sérios ocupem a agenda pública, que debates substantivos esclareçam a opinião e possam mesmo envolver cidadãos, classes e instituições. 

 

O governo tenta passar leis de trabalho que sejam mais simpáticas para os patrões, sem que se perceba muito bem. Esforça-se por manter o país como fornecedor de emigrantes e acolhedor de mão-de-obra barata e precária. Tenta atrair empresários e capitalistas, não especialmente os nacionais, que não têm capital nem saber suficientes, mas os internacionais que importam. Tudo isto merecia debate nacional, aberto e permanente, mas não será o caso. Tem é de se saber quem vota a favor, quem apoia…. Chega? PS? PR?

 

O governo procura ainda, nas leis laborais, mecanismos punitivos contra as mulheres, não por ser machista, mas porque quer ter uma economia mais aberta, com menos interferência social, com mais permissividades e menos direitos. Até lhe ocorreu castigar a maternidade e penalizar os respectivos projectos, sem fundamentos empíricos evidentes, mas certamente com preocupações mediáticas e partidárias. E muito preconceito.

 

Perante a justa pressão pública para que se faça o debate nacional sobre as questões de nacionalidade, assim como sobre a política de imigração, o governo responde atabalhoadamente, quer agradar aos seus clientes eleitorais, mas pretende sobretudo desarmar o Chega, ao mesmo tempo que incomodar o PS. Fez más leis e tentou desnortear o Presidente da República. As suas leis, justamente chumbadas e vetadas, revelam falta de cuidado, precipitação e obsessão ideológica.

 

Mais uma vez, o governo ocupou-se da TAP e fez lei que permita a venda e a privatização, quem sabe se a liquidação. É chocante e incompreensível que todos os governos se queiram ocupar da TAP, que a sua privatização e a sua nacionalização, assim como a reprivatização e a renacionalização, estejam sempre na ordem do dia. Quanto já se perdeu, em valor, capital e reputação, com esta hesitação e estas manobras? Haverá assim tantos interesses ilegítimos ou disfarçados que explicam esta saga da TAP?

 

Também de repente, sem aviso nem preparação, sem revelação de fundamentos e de objectivos, é anunciada a extinção da FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia), organismo público de excepcional peso e importância, com orçamento e despesa que ultrapassam os 800 milhões de Euros. É um dos mais importantes órgãos do Estado, de cuja actuação podem depender milhares de pessoas, centenas de instituições, muita ciência e uma boa parte do futuro do país. Veremos se o governo decidiu bem, se sabe mais, se tem melhores planos e se vai conseguir que o substituto valha a pena. Mas não parece que este método de supetão seja o mais adequado para reformar um organismo de tal importância académica, educativa, científica e cultural.

 

Ainda à cabeça da vida nacional, à frente nas redes e na comunicação, estão as intervenções descabidas, de mau gosto e de baixo estofo moral, de André Ventura sobre as crianças estrangeiras nas escolas. Mais uma vez, o incidente é mais importante do que o tema. O mundo quer saber o que pensa o Presidente, o que diz o governo, o que acha a oposição. Há mesmo quem preveja um processo judicial contra a declaração do deputado. Futilidades.

 

Importante, realmente importante, vital para o país e para os portugueses, essencial para a qualidade de vida dos cidadãos, molde das gerações futuras é o problema das relações entre Belém e São Bento, entre o governo e o Presidente, entre Marcelo e Montenegro. Mais importante ainda é o voto do Chega. Imigrantes, naturalização, licenças de maternidade, despedimentos de trabalhadores, regime de precaridade, FCT, TAP, TGV, terceira ponte, lítio e Central de Dados: tudo isso tem importância relativa. Realmente importante é a coreografia do governo, do Presidente, do Chega e do PS. 

Público, 9.8.2025

1 comentário:

Carneiro disse...

“Esforça-se por manter o país como fornecedor de emigrantes e acolhedor de mão-de-obra barata e precária” - um projecto de país desde pelo menos há 30 anos.

Se fosse pedreiro, ficaria em Portugal ganhando 1000€ ou iria, por exemplo, para Espanha ganhar 2000€?
Se fosse investigador, ficaria em Portugal sujeito a 1000 e poucos€ a recibos verdes, à boa-vontade da FCT e à teia endogâmica ou ideológica da academia? Ou iria para Amesterdão, Copenhaga, etc. ganhar num ano o que cá levaria 10?

E quanto ao acolhimento de mão-de-obra barata e precária, fica o consolo de bons ajudantes de ONG’s. As novas exploradoras esclavagistas!