sábado, 31 de maio de 2025

Grande Angular - Temos governo

 Até quando? Há vários governos possíveis. Basta fazer as contas. PSD com Chega. PSD com Chega e IL; PSD com PS; PSD com PS e IL. Estes são os maioritários possíveis. Não necessariamente prováveis. Depois, há os impossíveis, também maioritários: dos três grandes partidos, à maneira de “governo nacional”, aos enfeitados com acrescentos de esquerda ou direita. Mas há ainda o minoritário, o mais provável, nas actuais circunstâncias, do PSD. O governo minoritário é erro de palmatória. Mas vai ser muito difícil evitá-lo.

 

O destino de um governo minoritário é sempre o mesmo: fazer coisas boas para crescer o mais possível até chegarem as eleições antecipadas, inevitáveis como as estações do ano. Nesse sentido, a formação deste governo, agora anunciada com a indigitação do Primeiro-ministro, terá como missão exactamente essa: distribuir, agradar e, dentro de um ano ou pouco mais, chamar novas eleições. A não ser que um dos partidos de oposição entenda manter-se assim durante vários anos e deixar governar a minoria. Isto faz com que o governo minoritário, qualquer que ele seja, será sempre provisório, à espera da primeira oportunidade para recomeçar a dança eleitoral. É possível que haja governos minoritários “bons”, isto é, que façam obra e que acudam ao mais urgente. É possível. Já aconteceu. Mas têm o destino marcado. Vivem sob pressão e chantagem. Acabam cedo ou mal. Caem ou são derrubados. Têm como principal missão a de serem reeleitos e aumentarem a votação. Raramente conseguem tal desejo. Mas quase nunca governam de modo a deixar marcas e projectos.

 

Que diabo aconteceu em Portugal, que bicho mordeu aos portugueses, que têm uma fatal inclinação para governos minoritários? É uma doença infantil da democracia, que faz da política um jogo complexo das mentes brilhantes. Ou um puzzle lúdico próprio de iluminados. O jogo político é mais importante do que governar bem, ser eficiente e estar atento. Merece mais esforço do que lutar contra as desigualdades, combater a injustiça e diminuir a ignorância. Exige mais acção do que gerir bons serviços públicos, criar riqueza e promover a ciência. É uma arte complexa, com pós-graduação em minas e armadilhas, doutoramento em coreografia e mestrado em moeda falsa.

 

“Ganhar eleições” é uma expressão simples, mas traiçoeira. Entre nós, quer simplesmente dizer “ter mais votos”. “Vir em primeiro lugar” é outra maneira de o dizer. Por outras palavras, governa quem ganha eleições. É o princípio de base da democracia. O problema é que essa compreensão é perversa. Ganhar eleições pode não querer dizer governar ou formar governo, dado que este tem, depois, de ter a maioria no parlamento. Já tivemos disso. Pode até acontecer que o segundo partido consiga, no Parlamento, ter mais votos, seja para chumbar o primeiro, seja para formar governo com aliados. Também já tivemos disso. Na verdade, é esta a noção mais interessante: ganha eleições quem tem mais votos ou suficientes para formar governo e aprovar leis. Sozinho ou acompanhado.

 

Ainda não estavam contados, nas últimas eleições, todos os votos e já os analistas e activistas faziam contas, sempre com objectivos em mente: como garantir um governo minoritário? Como fazer tropeçar os outros partidos? Como enganar os rivais? A ideia abstrusa de governo minoritário está tão profundamente enraizada que já faz parte da gíria garantir que um governo maioritário é negativo, que uma maioria parlamentar é condenável e que essas são soluções que promovem o autoritarismo.

 

Evidentemente, um dirigente partidário quer a maioria para si e para o seu partido. Desde que seja só sua. Condena a dos outros, festeja a sua. Mas tem de ser sozinha. Isto é, nem pensar em alianças pré-eleitorais (a não ser para criar ilusões, como a AD ou a CDU), nem em coligações parlamentares pós-eleitorais. O partido mais votado que pretende uma coligação de governo dá um sinal de fraqueza. Os partidos menos votados que sugerem coligações dão “parte de fracos”.

 

Que pretende o governo minoritário do PSD? Salvar Portugal, desenvolver o país, melhorar a igualdade, dar oportunidades a todos e aos jovens em especial e realizar grandes projectos de futuro. Isto é o que diz. Banalidade no estado puro. Mas não perde tempo a preparar os instrumentos, as alianças, os acordos e as maiorias parlamentares necessárias. Vencidas umas eleições, o partido que as ganhou (com minoria parlamentar) nem pensa dois segundos na necessidade de ser maioritário, de ter apoio parlamentar durável e coerente e de efectuar uma aliança que lhe dê os meios necessários para realizar os seus maravilhosos planos. Não. O que é preciso é tomar posse, nomear, gastar e distribuir. 

 

Tudo o que precede alimenta a lenda do governo minoritário. Mais a obsessão em não associar outros partidos ao governo. Mas hoje, há também outros argumentos que se pretendem sofisticados. Fazer alianças ou coligações e construir maiorias parlamentares duráveis são actos negativos e prejudiciais. Nem se percebe muito bem porquê, mas é a realidade. Hoje, ganhar as eleições é sinónimo de ter mais votos. Mas deveria ser formar governo aceite pelo Parlamento. A não necessidade de aprovar o governo é uma das maiores perversões do sistema e da cultura política nacional.

 

Nos dias que correm, há ameaças no ar. As eleições não deram indiscutível vencedor. Não forjaram maioria. As presidenciais que se avizinham já provocam medo. As crises internacionais também. Por isso há fantasmas. Receio da fragmentação política e partidária? Medo da instabilidade? Pavor de novas eleições? Temor do crescimento do Chega e de outros movimentos radicais? Tudo isso se combate de várias maneiras, mas uma é, em todo o caso, indispensável: o governo de maioria parlamentar. A acção persistente que cria emprego. A estabilidade que permite o trabalho continuado. A serenidade indispensável para as mais ousadas reformas, como a da justiça. E outras virtudes que só se conseguem com maioria parlamentar, com tempo e com a “força tranquila”.

 

Os governos minoritários, tão do agrado dos portugueses, são as condições da ineficácia e da impotência. Proponha o PSD uma coligação ao PS e verá o valor dessa pedagogia. Aceite o PS um convite do PSD para formar governo e verá o serviço prestado ao país. Deixem o PSD e o PS continuar a vegetar nos pântanos da minoria e ver-se-á o mal que fazem ao país. Verão também o impulso que darão ao Chega para continuar a sua marcha triunfal.

 

Temos governo. A sério?

.

Público, 31.5.2025

sábado, 24 de maio de 2025

Grande Angular - Uma boa revisão é útil e necessária

 Em resultado das eleições, a revisão da Constituição transformou-se naturalmente em assunto importante e imediato. As maiorias possíveis são diferentes de tudo o que se conhecia do passado. Há hoje uma maioria de direita que dispensa os socialistas. Há também uma maioria do centro que dispensa o Chega. Isto faz com que o assunto se tenha tornado interessante, quase picante. Mas a discussão em curso limita-se aos aspectos anedóticos, às lutas de capoeira, à coreografia e ao adjectivo. O que sobressai é saber “com quem” e “quem se quer diminuir”. O que anima a conversa é saber “contra quem se faz a revisão”. É pena. A discussão deveria começar com o “quê”, antes do “com quem”. A revisão deveria fazer-se a favor dos cidadãos e do país.

 

A Constituição é absurdamente mal escrita, inconstante, incoerente, contraditória, exuberantemente ignorante, inutilmente complexa, demasiado longa… Todavia, foi um milagre. E salvou a democracia. Não é pouco.

 

Vivemos com tantas coisas estúpidas que podemos certamente viver mais uns anos com esta Constituição. Traduz concepções paternalistas, directivas, autoritárias e elitistas das sociedades, dos cidadãos, dos poderes e da democracia, mas a verdade é que nos ajudou ou permitiu viver até hoje. Nem sempre bem, muitas vezes mal, mas em paz. Já não é pouco.

 

Discute-se agora a nova hipótese de revisão. Não pelos bons motivos. Uns porque querem mandar ou matar o regime. Outros porque pretendem defender o estado actual. Uns porque desejam mostrar que ganharam as eleições. Outros porque não querem reconhecer que as perderam. Mas a verdade é que há boas razões para o fazer. Há muitos anos que essas razões existem.

 

Há matérias que necessitam mesmo de revisão constitucional. Ou para fazer melhor do que lá está, ou para permitir evolução. Toda a matéria relativa à Administração Pública, à descentralização, aos órgãos regionais e à regionalização (ou região administrativa) deveria ser revista e actualizada. E sobretudo dever-se-ia permitir que as sucessivas gerações de cidadãos tenham o direito e a competência para decidir gradualmente como entenderem. O actual carácter imperioso é errado, como se tem visto. A necessidade de criar regiões em simultâneo é infantil e autoritária. O pior é o que temos: está na Constituição, mas não existe e não se respeita.

 

De igual modo, o poder popular a exercer sob a forma de referendos e iniciativas populares exige clarificação, sem o que são inutilidades que servem para pouco. Os constituintes portugueses, quer dizer, os partidos, sempre temeram estas formas de exercício de poder. Se assim for, a solução seria retirá-las definitivamente da Constituição. Mas o melhor é dar-lhes significado e função à altura. Por exemplo, alargar o elenco das matérias referendáveis. E reforçar o seu poder vinculativo.

 

O sistema judicial deveria também ser revisto. São mais de vinte artigos a pedir um reexame, além de outros, sobre deveres e direitos, por exemplo, com implicações na justiça. É esta talvez a mais importante das necessidades de revisão. Esta deveria ser precedida de debate, promovido pelos deputados, pelos órgãos de soberania, pelas magistraturas, pela academia e pelas associações. Há inúmeros capítulos e temas a necessitar de revisão: direitos e deveres dos cidadãos e sua tutela; direitos e deveres dos magistrados e dos tribunais; questões de funcionamento, como por exemplo as dos prazos, do segredo de justiça, dos deveres funcionais e dos recursos. Além das relações entre os órgãos de soberania (Parlamento, Presidente e Governo) e órgãos judiciais.

 

Também seria importante rever e apurar questões de funcionamento dos órgãos de soberania, como por exemplo a necessidade de aprovação, pelo Parlamento, dos governos e dos seus programas, assim como a aprovação, pelos deputados, das mais importantes nomeações de altos funcionários. Uma parte da instabilidade política nacional, sobretudo actual, resulta do dispositivo constitucional que promove governos minoritários.

 

Igualmente interessante seria rever certos aspectos do sistema eleitoral, como o alargamento das eleições individuais e uninominais, além das candidaturas independentes.

 

Uma boa revisão é útil pelos seus próprios termos, pelo seu conteúdo, não pela capacidade de fomentar a luta de armadilhas. Uma boa revisão afasta do horizonte o mito da revisão profunda e excessiva. Limpa repetições, erros e incongruências. Na verdade, há muitas matérias que deveriam estar contempladas na lei, mesmo se com necessidades de votos reforçados, mas cuja residência na Constituição acaba por ser uma diminuição dos poderes dos cidadãos de cada geração.

 

Além de útil e de melhorar a nossa vida colectiva, dando mais responsabilidade aos cidadãos e aos seus representantes, uma boa revisão afasta a revisão rancorosa e a mudança de regime.

 

Quanto mais a Constituição for fechada e conservadora, maior será a sua vulnerabilidade. Imutável, a Constituição convida a que se faça uma nova. Feita nas condições em que o foi em Portugal, sob pressão, dependendo das circunstâncias e do curto prazo, moldada por interesses menores e ocasionais, a nossa Constituição deveria ser mutável, poder evoluir. Com tantos pormenores mesquinhos e inúteis, esta Constituição, para manter o que tem de mais importante, precisa de ser flexível e adaptável ao nosso tempo.

 

A revisão pode ser levada a cabo com vários partidos, com todos ou quase todos. Há várias maiorias possíveis. Ao contrário do que alguns pretendem, a melhor revisão seria aquela que consegue mais vasto apoio, mesmo se sabemos que, na maior parte dos casos, isso não será possível. Mas é bom que seja tentado. É bom que os cidadãos percebam que os partidos fizeram os possíveis. É bom que os cidadãos percebam que os partidos não se limitaram a coreografias ridículas de culpabilização ou de humilhação do outro. Muito especialmente, seria excelente que a revisão fosse um verdadeiro e exemplar debate nacional. Tanto quanto o resultado, a revisão seria boa pelo processo que a ela leva. A participação de muita gente que não sejam os habituais profissionais da política só será útil. A academia, as profissões, as autarquias, as empresas, os sindicatos e os intelectuais dariam seguramente um contributo valioso e talvez mesmo criativo. Uma boa revisão afasta uma má revisão.

-

Público, 24.5.2025

sábado, 17 de maio de 2025

Grande Angular - Lembretes

 Os movimentos Hamas, Hezbollah, Estado Islâmico ou Daesh, Hutis e outros grupos terroristas, assim como alguns Estados da região, seguramente o Irão e parte do Iémen, declaram expressamente que lutam pela liquidação do Estado de Israel e pela expulsão dos Judeus ou Israelitas da região. Nunca o esconderam. Nunca usaram subterfúgios ou metáforas. Por isso Israel tem todo o direito e dever de lutar pela sua vida e pela sobrevivência. Após as agressões de 7 de Outubro de 2023, Israel decidiu justamente retaliar. Tratava-se de punir os agressores, recuperar os reféns e sobretudo derrotar o Hamas. Ao fazê-lo, Israel decidiu também agredir apoiantes do Hamas, seja o Líbano e o Irão, seja o Iémen e a Síria, ou ainda o Hezbollah e outros terroristas. A ofensiva israelita atingiu dimensões e natureza totalmente desproporcionadas, configurando mesmo uma intenção deliberada para eliminar todas as expressões políticas dos palestinianos na região, em particular na Cisjordânia e em Gaza. As cidades arrasadas e mais de 50.000 palestinianos mortos configuram um massacre de população absolutamente inaceitável que nem sequer o argumento de sobrevivência de Israel justifica. Outros meios e outras acções haveria para atingir os mesmos fins. É verdade que o Hamas e outros movimentos utilizam deliberadamente os civis, as mulheres, as crianças, os idosos, os doentes, os hospitais, as escolas e outras realidades civis para se defender, como aliás diziam Ho Chi Min e Mao Tsé-Tung ao insistir que os guerrilheiros deveriam misturar-se e viver com o povo “como peixes dentro de água”. As vítimas inocentes servem para forjar argumentos publicitários e demagógicos. Mesmo sabendo isso, a estratégia israelita de devastação é política e moralmente condenável. Israel acaba por merecer tanto apoio e solidariedade, quanto censura e condenação.

 

Que tem o governo português a dizer sobre isto tudo? Que têm os principais partidos políticos, candidatos a formar governo, a declarar? Seguir o que diz parte da União Europeia? Imitar países europeus que se calam? Tomar posição própria e autónoma? É verdade que Portugal não tem interesses na região, nem populações envolvidas de perto ou de longe. Mas poderá ter suficientes argumentos políticos, morais e humanitários para tomar posição, afirmar os seus valores e defender os seus pontos de vista autónomos. A campanha eleitoral que terminou ontem em nada ajudou a contrariar esta absurda situação. Portugal faz parte de uma civilização e de instituições internacionais de modo que adquire deveres e valores que deve respeitar. O silêncio e a abstenção não são opções.

 

Algures na Europa oriental, um país independente e consagrado pelas instituições internacionais e pela ordem política estabelecida, a Ucrânia, foi agredido e invadido, estando a ser, há mais de três anos, verdadeiramente massacrado por um país muito maior, mais forte e poderoso, a Rússia, ao arrepio de todas as regras internacionais políticas e jurídicas. Portugal, pela voz dos seus últimos governos, tomou partido pelo país ofendido, juntando-se aos europeus que apoiaram e ajudaram a Ucrânia no seu esforço de defesa. Passados três anos e mais de 400.000 mortos e feridos, continua a guerra naquela parte da Europa e há sinais fortes de enfraquecimento da Ucrânia. A Rússia recebe apoio, cumplicidade ou silêncio cordial de algumas dezenas de países do mundo, em especial de um grande número de ditaduras. A Europa e a sua União, assim como o mundo ocidental e os Estados Unidos, começam a dar sinais de desconforto perante esta guerra injusta e agressiva que ameaça o futuro da Europa e da democracia. Surgem dúvidas quanto aos caminhos para a paz e quanto às condições políticas para o futuro daqueles dois países e de toda a região. Portugal, através dos seus dois últimos governos, alinhou simplesmente no apoio que a Europa ofereceu. Evitou qualquer debate sério. Absteve-se de tomar iniciativas, se é que as podia levar a cabo. Verdade é que, mesmo sem ter originalidade ou interesses próprios, Portugal deveria estar mais informado, a opinião pública mais sensibilizada e a população mais conhecedora. Os partidos políticos mais importantes deveriam trazer este tema, que afinal é do da paz e da liberdade na Europa, ao espaço público e à possibilidade de participação da população. Não o fizeram, na convicção de que não ganhariam votos e de que os portugueses não se interessam. É pena.

 

Estes temas internacionais, ausentes da campanha eleitoral, sugerem outra questão igualmente afastada de compromissos dos principais partidos e do esclarecimento dos cidadãos: é a da defesa nacional, da despesa pública e dos investimentos militares e de segurança, do equipamento das forças armadas, do serviço militar, do recrutamento e do envolvimento da população no esforço de defesa nacional e comum europeu. Há uma espécie de covardia generalizada. Os principais partidos políticos não querem gastar dinheiro, ou pelo menos não querem dizer que têm de gastar recursos. Não aceitam publicamente que as novas realidades europeias e internacionais exijam um enorme esforço militar e de defesa, dado que a paz, a liberdade, a democracia e as independências nacionais estão em causa e são ameaçadas. Tentam calar responsabilidades e compromissos, pois entendem que a população é avessa à despesa com a defesa e adversária de qualquer alteração no serviço de recrutamento. Não encaram sequer a discussão sobre o serviço militar e cívico, pois calculam que tal lhes faça perder votos. Escondem planos e projectos de investimentos consideráveis, na renovação técnica e no desenvolvimento, pois sabem que tudo isso implica despesa e investimento. Com receio de eventuais reacções desfavoráveis, fazem os possíveis por esconder ou esquecer a necessidade de tomar decisões urgentes sobre a armada, os submarinos e a força aérea, cujas renovações são agora de extrema urgência e de muito significativas despesas. Os principais partidos políticos, candidatos a governar, fizeram tudo o que puderam para arredar este tema das consciências dos cidadãos. Não por pacifismo, mas por covardia. E por vontade clara de reservar para si, nos gabinetes e nos corredores do poder, o direito de se exprimir e de agir em consequência.

 

Sem grande esperança e com pouco optimismo, aqui ficam lembretes para discussões e debates perdidos, mas que poderão ao menos ser retomados com o novo governo e o novo parlamento. Mesmo sabendo que há animais que não aprendem.

Público, 17.5.2025

sábado, 10 de maio de 2025

Grande Angular - Mais uma oportunidade perdida

 Como nunca, nestes cinquenta anos, as eleições e a campanha do ano corrente foram tão dirigidas para o “chefe”, o “líder”, o “cabeça” e o “primeiro”. Quase nada se sabe sobre a equipa, os colaboradores e os grupos de apoio. Pouco se conhece sobre as instituições, empresas, associações e outros grupos que se sentem mobilizados e empenhados. Mal se percebem as ideias e os programas que cada um deseja ou diz desejar para o seu país. Apenas se sabe que querem o poder. Conquistar o poder. As arruadas são procissões tristonhas de gente, por vezes paga, que seguem o que vai à frente. Só ele (ou ela) conta, só ele (ou ela) se vê, só ele (ou ela) fala, só ele (ou ela) distribui brindes e só ele (ou ela) dá entrevista. Os comícios, cada vez menos, organizam-se à volta dele (ou dela) que, no fim, dá entrevista breve às televisões, geralmente rodeado de múmias sinistras e apagadas, mesmo quando se trata de deputados e ministros. Os principais “eventos” eleitorais são almoços e jantares de carne assada, antes dos quais ele (ou ela), rodeado de carantonhas ou fantoches, desfila uns rápidos lugares-comuns. Antes dessas romarias, crucial é o debate na televisão. Entre eles (ou elas), de modo automático e programado, parecem bonecos articulados. Porque, na verdade, o que interessa são as avaliações, com notas e tudo, de dezenas de comentadores que, quase sem excepção, favorecem os seus amigos com ar sabedor e arrasam os outros com ar de desprezo.

 

É verdade que a eleição política sempre foi, sempre será, um acto de reconhecimento e identificação, para o qual a personalidade e o carácter do “líder” são essenciais. Mas que, excepto quando se trata de um “herói”, mesmo assim exige uma equipa, um programa, uma energia especial, uma preocupação fundamental, umas ideias sobre o que importa fazer e umas certezas sobre grandes princípios.

 

O desvio dos debates políticos para as contas e os impostos de cada um, para os favores prestados e as influências vendidas por cada um, é revelador disso mesmo: do esvaziamento político das eleições e da pasteurização cultural da democracia. O importante é cada vez mais o favor que se fez, a cunha que se meteu, o imposto que se evitou, o amigo que se promoveu, as influências que se exercem e os lugares que se preenchem.

 

Debates e discussões entre partidos e candidatos andam apenas à volta de um tema libidinoso: como se conquista o poder, quem o guarda, como se divide, quem o quer e quem fica sem ele.

 

Os protagonistas das eleições actuais são quase todos bem-talhados e adequados aos tempos que correm. E característicos das eleições que temos. O Chega, uma fabulosa energia de claque de futebol feita de fanatismo e de reflexos condicionados. O PSD (ou a AD), uma eficaz e sub-reptícia máquina de influências, o mais capaz de confundir clientes com eleitores. O PS, um sindicato desnorteado e sem destino, que parece ter negado o futuro, quando apenas queria esquecer o passado. A IL, de uma pureza impecável, a caminho da beatitude. O PCP, nervoso e tenaz à procura de não desaparecer da história. O Bloco, já sem graça, com o seu ar de superioridade das avenidas, de mãos nos bolsos e dogma bem oleado. O Livre, um neófito envelhecido, aparentemente imprescindível. O PAN, que quanto mais conhece os animais, mais gosta da política.

 

Que pensam estes nossos partidos, candidatos a mandar em Portugal e em nós todos, do destino da Europa, periclitante como nunca, ameaçada pela Rússia, marginalizada pela América, cobiçada por África e pelo Islão e desprezada pela China? 

 

Que pretendem eles fazer com a Justiça portuguesa, cada vez mais desorganizada e injusta?

 

Que se preparam realmente para fazer com os grandes serviços públicos ou as grandes empresas nacionais, umas miseravelmente vendidas, outras estranhamente desmanteladas, outras ainda entregues aos mais desvairados traficantes de influências?

 

O Estado português, já agora a nação portuguesa, ou o país e a sua população, se quiserem, raramente estiveram tão dependentes, tão frágeis, tão vulneráveis como hoje. Quem o diz é designado por céptico e pessimista, fanático do “bota-abaixo” e descrente da pátria. Mas é garantido que esse tem mais razão do que uma mão cheia de burocratas, de “influenciadores” e de caciques. Quem se ocupa realmente dos caminhos de ferro, dos portos, do mar e dos rios? Quem está de facto a tratar dos aeroportos e da companhia de aviões? Quem se encarrega com força e solidez da energia do futuro? Quem vai tentar voltar a dar um módico de dignidade e de autonomia, ou de afirmação do interesse nacional, nas telecomunicações, na produção e na distribuição de energia? Quem vai tentar reconstruir ou construir alternativas autónomas à energia, às telecomunicações, aos cimentos, às celuloses, à madeira, à metalurgia e a outros sectores que demonstravam, pelo menos parcialmente, alguma solidez?

 

Para além do miserável oportunismo de última hora, que entendem fazer para elaborar, pôr em prática políticas de população e de imigração necessárias para a economia, dignas de uma nação antiga e orgulhosa, próprias de uma cultura, crentes nos direitos humanos, guardadoras das liberdades e respeitadoras do sentido de humanidade?

 

Para além de distribuir subsídios, ratear subvenções, fornecer descontos e isentar de impostos, alguém tem um plano, um projecto, uma intenção, uma ideia de como se cria riqueza, como se reforça a economia, como se formam gerações de profissionais, como se criam cientistas, como se dá liberdade a empresários? 

 

É ou não verdade que a vida urbana, nas grandes cidades portuguesas, se deteriorou muito nos últimos anos, talvez últimas décadas? Que a situação na saúde e nos serviços públicos decaiu significativamente? Que o funcionamento da Justiça se danificou, parece que sem emenda? Que as oportunidades para os jovens diminuíram? Que o tráfico de pessoas e de trabalhadores aumentou sem controlo nem limites? Que os transportes públicos, sobretudo citadinos, se transformam em zona de perigo e incómodo? Que os riscos de cair na pobreza não diminuem? Alguém é capaz de negar, factos e números na mão, este declínio, este progresso adiado? Se assim é, por que razão os partidos e os candidatos não se sentem mobilizados para abandonar o “cliché” banal e o palavreado automático e para se sentirem empenhados em dar e procurar o melhor? O mais sensível? O mais sério? O mais sólido? Em vez do mais ligeiro, o mais fátuo, o mais ilusório e o mais enganador?

 

Há quem não confesse, nem sob tortura, em quem vai votar. É compreensível: não quer ser culpado.

-

Público, 10.5.2025

sábado, 3 de maio de 2025

Grande Angular - Um país frágil

 As eleições são más conselheiras. Péssimas oportunidades. E circunstâncias ruins. Com elas à vista, perde-se rapidamente a serenidade. Revelam-se comportamentos irracionais. Mente-se com desfaçatez e sem vergonha. A presunção e o narcisismo crescem de modo quase ofensivo. Algumas das mais vis condutas humanas são exibidas em permanência diante de todos. O apagão desta semana foi bom exemplo e oferece evidência de tudo quanto precede.

 

O governo considerou exemplar o seu comportamento. Gabou-se mesmo do êxito pela ausência de vítimas (“Não houve um só morto”, disse o Primeiro ministro em momento particularmente infeliz). Os governantes e as autoridades esconderam-se e, quando apareceram, foram quase hilariantes. Um recomendou jerricans de petróleo para as maternidades. Outros sugeriram que a culpa era toda do estrangeiro, de Espanha, de França ou mais simplesmente da Europa. Não faltou quem sugerisse um ciberataque, a última ameaça da moda. Não ficou esquecida a alusão à eventual autoria russa ou muçulmana. As autoridades chegaram tarde. Não falaram a tempo e horas. A população viveu mal durante muitas horas. A ansiedade foi grande. Os prejuízos terão sido importantes, ainda não se fizeram as contas. Muitas instituições e organizações, escolas, hospitais, empresas e serviços suspenderam, diminuíram ou encerraram actividades. Milhões de pessoas viram as suas vidas, trabalho, emprego, deslocação e actividade doméstica, ameaçadas e perturbadas. Mas ao governo, não faltou a frase rainha: “Em Espanha, foi pior!”.

 

Uma parte do que aconteceu, ou não, a propósito do apagão, ficou a dever-se à campanha eleitoral e ao modo como esta suscita as paixões menores e os vícios maiores.  Mas o essencial não está aí. Se não houvesse eleições, teria acontecido muito provavelmente a mesma coisa ou quase. O problema está na fragilidade do nosso país e das nossas instituições. Faltam, estão ultrapassados, não existem, são desadequados, os sistemas de emergência, a gestão de stocks para situações excepcionais e a manutenção de reservas para tempos de guerra ou de crise.

 

A história recente está recheada de experiências e acontecimentos nos quais a imprevidência, a falta de prevenção, a ausência de substituição e de reservas e a impreparação dos serviços são as regras. Não faltam exemplos: todos os casos graves de incêndios florestais, as inundações de Lisboa e Porto, os temporais da Madeira e dos Açores, a seca no Alentejo, a falta de reservas de água em muitas regiões, certas greves (da estiva, das ambulâncias, do INEM, dos controladores, dos enfermeiros), o colapso das urgências médicas, as crises de abastecimento de cereais e combustíveis… 

 

país não está preparado. Os planos de emergência elaborados em muitos gabinetes são anedotas teóricas, burocráticas, desactualizadas, sem espírito prático, sem sentido de urgência e sem participação das populações e das autarquias. Nos piores momentos, os governos limitam-se a aparecer tarde, a tentar culpar terceiros, a procurar louros e dividendos. Em plena crise, quase ninguém, pessoa, família, instituição, empresa ou serviço público sabe o que deve fazer, o que lhe compete, onde e com quem. Alguém se lembra de ter visto, regularmente, nas suas caixas do correio ou nos seus emails, avisos sobre as emergências e as crises? Alguém jamais viu, entre nós, informação completa, prática e actualizada, sobre as reservas estratégicas, de guerra ou de emergência, a manter em casa, nos bairros, nas autarquias, nas empresas e nas instituições? Quem sabe, entre nós, o que deve fazer, onde, quando, com quem e como, em caso de emergência, acidente, desastre ou crise?

 

Podemos ter a certeza de que reinam a má gestão de recursos e a péssima organização de serviços de apoio. Ninguém duvida de que, nas administrações, os planos de emergência estão desactualizados, são inoperantes, se encontram esquecidos, mas são muito bem elaborados no papel, sem qualquer espécie de sentido prático.

 

O apagão não é obra da natureza, é obra de gente. Como tal, não deveria ter acontecido. A acontecer, deveria haver a possibilidade de “autonomizar” a rede nacional. Seria necessário haver regiões autónomas dentro da rede nacional. É indispensável haver mecanismos de emergência prontos a entrar em operações. Os municípios deveriam estar envolvidos desde o primeiro minuto. As autoridades públicas nacionais e locais, os órgãos de fiscalização e regulação, as grandes empresas nacionais e internacionais, deveriam ter obrigações drásticas para actuar imediatamente em caso de emergência. As mais importantes instituições públicas, incluindo hospitais, clínicas, escolas, lares, bombeiros, polícias, órgãos de comunicação e outros, deveriam ter obrigatoriamente uma grande capacidade de produção autónoma de emergência. As autoridades, a começar pelo Primeiro ministro e pelos ministros, deveriam ter obrigações taxativas de informação e comunicação imediatas e deveriam cumpri-las.

 

Além do apagão, para muitas outras circunstâncias deveria haver regras claras e normas imperativas de actuação. Como, por exemplo, a fixação de níveis mínimos de stocks de emergência de alimentos, medicamentos, produtos de uso doméstico e combustíveis. Ou, nas empresas e nas instituições, a existência de estruturas de intervenção no plano individual, autárquico e local. Ou ainda, mecanismos e dipositivos conhecidos e disponíveis de substituição e de emergência em caso da falta ou de falha (luz, calor, água, energia, transporte, alimentação, primeiros socorros, etc.).

 

Estas, apenas algumas sugestões conhecidas e evidentes. Sem esquecer as obrigações a cumprir pelos Governos, imediatamente e diante de todos. Ou ainda, a responsabilidade autónoma, sem intervenção dos governos e das autoridades políticas, das entidades e serviços de protecção civil que, para cumprir os seus deveres e mobilizar a população, não devem ficar dependentes dos governos.

 

É uma tendência moderna dos sistemas políticos: distribuir, recompensar, fazer obra e criar emprego, em detrimento da que deveria ser a primeira prioridade, proteger os seus cidadãos. Servir as populações garantir-lhes a liberdade. Ajudar a que os cidadãos sejam fortes e saibam vingar na vida. Por isso, a previsão, a prevenção e a comunicação são tão essenciais. O verdadeiro drama e a real ameaça estão, não nas ocorrências, mas antes das inundações, das chuvas, da seca, dos incêndios e de outros desastres. Assim como antes do apagão, obra humana.

Público, 3.5.2025