Até quando? Há vários governos possíveis. Basta fazer as contas. PSD com Chega. PSD com Chega e IL; PSD com PS; PSD com PS e IL. Estes são os maioritários possíveis. Não necessariamente prováveis. Depois, há os impossíveis, também maioritários: dos três grandes partidos, à maneira de “governo nacional”, aos enfeitados com acrescentos de esquerda ou direita. Mas há ainda o minoritário, o mais provável, nas actuais circunstâncias, do PSD. O governo minoritário é erro de palmatória. Mas vai ser muito difícil evitá-lo.
O destino de um governo minoritário é sempre o mesmo: fazer coisas boas para crescer o mais possível até chegarem as eleições antecipadas, inevitáveis como as estações do ano. Nesse sentido, a formação deste governo, agora anunciada com a indigitação do Primeiro-ministro, terá como missão exactamente essa: distribuir, agradar e, dentro de um ano ou pouco mais, chamar novas eleições. A não ser que um dos partidos de oposição entenda manter-se assim durante vários anos e deixar governar a minoria. Isto faz com que o governo minoritário, qualquer que ele seja, será sempre provisório, à espera da primeira oportunidade para recomeçar a dança eleitoral. É possível que haja governos minoritários “bons”, isto é, que façam obra e que acudam ao mais urgente. É possível. Já aconteceu. Mas têm o destino marcado. Vivem sob pressão e chantagem. Acabam cedo ou mal. Caem ou são derrubados. Têm como principal missão a de serem reeleitos e aumentarem a votação. Raramente conseguem tal desejo. Mas quase nunca governam de modo a deixar marcas e projectos.
Que diabo aconteceu em Portugal, que bicho mordeu aos portugueses, que têm uma fatal inclinação para governos minoritários? É uma doença infantil da democracia, que faz da política um jogo complexo das mentes brilhantes. Ou um puzzle lúdico próprio de iluminados. O jogo político é mais importante do que governar bem, ser eficiente e estar atento. Merece mais esforço do que lutar contra as desigualdades, combater a injustiça e diminuir a ignorância. Exige mais acção do que gerir bons serviços públicos, criar riqueza e promover a ciência. É uma arte complexa, com pós-graduação em minas e armadilhas, doutoramento em coreografia e mestrado em moeda falsa.
“Ganhar eleições” é uma expressão simples, mas traiçoeira. Entre nós, quer simplesmente dizer “ter mais votos”. “Vir em primeiro lugar” é outra maneira de o dizer. Por outras palavras, governa quem ganha eleições. É o princípio de base da democracia. O problema é que essa compreensão é perversa. Ganhar eleições pode não querer dizer governar ou formar governo, dado que este tem, depois, de ter a maioria no parlamento. Já tivemos disso. Pode até acontecer que o segundo partido consiga, no Parlamento, ter mais votos, seja para chumbar o primeiro, seja para formar governo com aliados. Também já tivemos disso. Na verdade, é esta a noção mais interessante: ganha eleições quem tem mais votos ou suficientes para formar governo e aprovar leis. Sozinho ou acompanhado.
Ainda não estavam contados, nas últimas eleições, todos os votos e já os analistas e activistas faziam contas, sempre com objectivos em mente: como garantir um governo minoritário? Como fazer tropeçar os outros partidos? Como enganar os rivais? A ideia abstrusa de governo minoritário está tão profundamente enraizada que já faz parte da gíria garantir que um governo maioritário é negativo, que uma maioria parlamentar é condenável e que essas são soluções que promovem o autoritarismo.
Evidentemente, um dirigente partidário quer a maioria para si e para o seu partido. Desde que seja só sua. Condena a dos outros, festeja a sua. Mas tem de ser sozinha. Isto é, nem pensar em alianças pré-eleitorais (a não ser para criar ilusões, como a AD ou a CDU), nem em coligações parlamentares pós-eleitorais. O partido mais votado que pretende uma coligação de governo dá um sinal de fraqueza. Os partidos menos votados que sugerem coligações dão “parte de fracos”.
Que pretende o governo minoritário do PSD? Salvar Portugal, desenvolver o país, melhorar a igualdade, dar oportunidades a todos e aos jovens em especial e realizar grandes projectos de futuro. Isto é o que diz. Banalidade no estado puro. Mas não perde tempo a preparar os instrumentos, as alianças, os acordos e as maiorias parlamentares necessárias. Vencidas umas eleições, o partido que as ganhou (com minoria parlamentar) nem pensa dois segundos na necessidade de ser maioritário, de ter apoio parlamentar durável e coerente e de efectuar uma aliança que lhe dê os meios necessários para realizar os seus maravilhosos planos. Não. O que é preciso é tomar posse, nomear, gastar e distribuir.
Tudo o que precede alimenta a lenda do governo minoritário. Mais a obsessão em não associar outros partidos ao governo. Mas hoje, há também outros argumentos que se pretendem sofisticados. Fazer alianças ou coligações e construir maiorias parlamentares duráveis são actos negativos e prejudiciais. Nem se percebe muito bem porquê, mas é a realidade. Hoje, ganhar as eleições é sinónimo de ter mais votos. Mas deveria ser formar governo aceite pelo Parlamento. A não necessidade de aprovar o governo é uma das maiores perversões do sistema e da cultura política nacional.
Nos dias que correm, há ameaças no ar. As eleições não deram indiscutível vencedor. Não forjaram maioria. As presidenciais que se avizinham já provocam medo. As crises internacionais também. Por isso há fantasmas. Receio da fragmentação política e partidária? Medo da instabilidade? Pavor de novas eleições? Temor do crescimento do Chega e de outros movimentos radicais? Tudo isso se combate de várias maneiras, mas uma é, em todo o caso, indispensável: o governo de maioria parlamentar. A acção persistente que cria emprego. A estabilidade que permite o trabalho continuado. A serenidade indispensável para as mais ousadas reformas, como a da justiça. E outras virtudes que só se conseguem com maioria parlamentar, com tempo e com a “força tranquila”.
Os governos minoritários, tão do agrado dos portugueses, são as condições da ineficácia e da impotência. Proponha o PSD uma coligação ao PS e verá o valor dessa pedagogia. Aceite o PS um convite do PSD para formar governo e verá o serviço prestado ao país. Deixem o PSD e o PS continuar a vegetar nos pântanos da minoria e ver-se-á o mal que fazem ao país. Verão também o impulso que darão ao Chega para continuar a sua marcha triunfal.
Temos governo. A sério?
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Público, 31.5.2025