Tudo o que corre bem em Portugal
é da responsabilidade do governo. Emprego a subir e desemprego a baixar,
crescimento do produto, aumento das exportações, paz social, perspectiva
positiva ou estável nos mercados internacionais, aumento das pensões, melhoria
das receitas da segurança social, diminuição de alguns impostos e até medalhas
desportivas: não fora o preclaro governo e nada disso seria realidade.
Tudo o que corre mal em Portugal
é da responsabilidade de outros. O endividamento, a diminuição de investimento
público, as dificuldades na saúde, os atrasos na justiça, as deficiências na
segurança, os fogos florestais, o roubo de Tancos, a impunidade da corrupção, o
conflito com os médicos e as tensões nas forças armadas encontram-se nessa
situação: culpas evidentes do governo anterior, da oposição e do estrangeiro.
O grande debate político parece
ser esse. O da narrativa e do discurso de culpa. É simples. Parece verdade.
Mobiliza os fanáticos. Excita os adeptos. Tem efeitos psicológicos garantidos. O
produto vende-se bem e há quem compre. Aliás, não se pode dizer que haja
mentira. No mundo ocidental, é o que se sabe, nunca se viu um governo assumir
responsabilidades por erros ou desastres. E sempre se ouviu atribuir culpas a
outros, ao governo anterior e ao estrangeiro.
Vésperas de orçamento, semanas
antes de eleições autárquicas e meio da legislatura: momento ideal para
identificar culpados e negociar. Momento estratégico para que contribuem, dentro
de poucas semanas, as eleições alemãs. A estranha configuração da maioria
parlamentar e de governo acrescenta complexidade. A evolução próxima da
política portuguesa merece especial atenção.
A situação actual apresenta perigos
enormes, mas também potencialidades benéficas. Entre estas, conta-se
evidentemente a possibilidade de mudança do Bloco de Esquerda e do Partido
Comunista. O que, apesar das aparências, não é impossível. O Bloco, partido de
transição e de trânsito, poderá converter-se sem dificuldade a uma política democrática
e realista, com umas pinceladas reformistas e alguma radicalidade cultural e de
costumes. Uma boa análise de classe deste partido, das suas origens e do seu
programa dir-nos-á exactamente isso.
Quanto ao PCP, imagina-se que
este partido poderia conhecer, finalmente, a sua Primavera, quem sabe se a sua
metamorfose e transformar-se em partido democrático, de esquerda, de base
sindicalista, pragmático e radical, mesmo se pouco liberal. Não é impossível
que a sua evolução constitua um dos mais interessantes casos contemporâneos. O
“novo quadro político” e as “relações de forças”, os dois critérios mais
importantes da definição estratégica comunista, sugerem essa possibilidade. O
apoio a este governo é mais do que oportunismo e pode ter longo alcance. Até hoje,
o PCP só apoiou os governos de dois primeiros-ministros, Vasco Gonçalves e
António Costa. O primeiro foi o desastre conhecido. O segundo… não se sabe.
Infelizmente, não há só boas
perspectivas. Há também perigos, entre os quais dois graves. O primeiro seria o
PS afastar-se da sua história liberal e democrática, ficando apenas fiel à
tradição jacobina. Se assim for, fica o país a perder e a esquerda condenada,
no futuro, a pastorear reivindicações, não sem antes danificar ainda mais a
posição de Portugal no mundo.
O segundo seria o de repetir o
ciclo de Sócrates: distribuir o que se não tem, investir o que não se poupou,
gastar o que não é nosso, endividar-se e fazer aproveitar amigos políticos e patrícios
financeiros. Não parece exagerado imaginar que tal possa acontecer. Na verdade,
alguns dos mais importantes ministros e secretários de Estado deste governo
foram, com António Costa, os pilares dos governos de José Sócrates.
Nada está escrito.
DN, 3 de Setembro de
2017
1 comentário:
Não sei por que espero. Mas espero sempre que o governo não embarque em facilitismos do género de distribuir o que não se tem e mais tudo resto que bem nos enterrou. Não que eu imagine um Portugal grandioso. Mas gosto de pensar que um dia levantamos cabeça. Só não vejo como há-de ser isso.
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