domingo, 3 de setembro de 2017

Sem emenda - Tão simples!

Tudo o que corre bem em Portugal é da responsabilidade do governo. Emprego a subir e desemprego a baixar, crescimento do produto, aumento das exportações, paz social, perspectiva positiva ou estável nos mercados internacionais, aumento das pensões, melhoria das receitas da segurança social, diminuição de alguns impostos e até medalhas desportivas: não fora o preclaro governo e nada disso seria realidade.

Tudo o que corre mal em Portugal é da responsabilidade de outros. O endividamento, a diminuição de investimento público, as dificuldades na saúde, os atrasos na justiça, as deficiências na segurança, os fogos florestais, o roubo de Tancos, a impunidade da corrupção, o conflito com os médicos e as tensões nas forças armadas encontram-se nessa situação: culpas evidentes do governo anterior, da oposição e do estrangeiro.
           
O grande debate político parece ser esse. O da narrativa e do discurso de culpa. É simples. Parece verdade. Mobiliza os fanáticos. Excita os adeptos. Tem efeitos psicológicos garantidos. O produto vende-se bem e há quem compre. Aliás, não se pode dizer que haja mentira. No mundo ocidental, é o que se sabe, nunca se viu um governo assumir responsabilidades por erros ou desastres. E sempre se ouviu atribuir culpas a outros, ao governo anterior e ao estrangeiro.

Vésperas de orçamento, semanas antes de eleições autárquicas e meio da legislatura: momento ideal para identificar culpados e negociar. Momento estratégico para que contribuem, dentro de poucas semanas, as eleições alemãs. A estranha configuração da maioria parlamentar e de governo acrescenta complexidade. A evolução próxima da política portuguesa merece especial atenção.

A situação actual apresenta perigos enormes, mas também potencialidades benéficas. Entre estas, conta-se evidentemente a possibilidade de mudança do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista. O que, apesar das aparências, não é impossível. O Bloco, partido de transição e de trânsito, poderá converter-se sem dificuldade a uma política democrática e realista, com umas pinceladas reformistas e alguma radicalidade cultural e de costumes. Uma boa análise de classe deste partido, das suas origens e do seu programa dir-nos-á exactamente isso.

Quanto ao PCP, imagina-se que este partido poderia conhecer, finalmente, a sua Primavera, quem sabe se a sua metamorfose e transformar-se em partido democrático, de esquerda, de base sindicalista, pragmático e radical, mesmo se pouco liberal. Não é impossível que a sua evolução constitua um dos mais interessantes casos contemporâneos. O “novo quadro político” e as “relações de forças”, os dois critérios mais importantes da definição estratégica comunista, sugerem essa possibilidade. O apoio a este governo é mais do que oportunismo e pode ter longo alcance. Até hoje, o PCP só apoiou os governos de dois primeiros-ministros, Vasco Gonçalves e António Costa. O primeiro foi o desastre conhecido. O segundo… não se sabe.

Infelizmente, não há só boas perspectivas. Há também perigos, entre os quais dois graves. O primeiro seria o PS afastar-se da sua história liberal e democrática, ficando apenas fiel à tradição jacobina. Se assim for, fica o país a perder e a esquerda condenada, no futuro, a pastorear reivindicações, não sem antes danificar ainda mais a posição de Portugal no mundo.
O segundo seria o de repetir o ciclo de Sócrates: distribuir o que se não tem, investir o que não se poupou, gastar o que não é nosso, endividar-se e fazer aproveitar amigos políticos e patrícios financeiros. Não parece exagerado imaginar que tal possa acontecer. Na verdade, alguns dos mais importantes ministros e secretários de Estado deste governo foram, com António Costa, os pilares dos governos de José Sócrates.
Nada está escrito.
DN, 3 de Setembro de 2017


1 comentário:

bea disse...

Não sei por que espero. Mas espero sempre que o governo não embarque em facilitismos do género de distribuir o que não se tem e mais tudo resto que bem nos enterrou. Não que eu imagine um Portugal grandioso. Mas gosto de pensar que um dia levantamos cabeça. Só não vejo como há-de ser isso.