Grande número de comentadores comporta-se como políticos: definem programas e tomam partido, não duvidam. Semelhante número de políticos comporta-se como comentadores: especulam, prevêem alianças e analisam as hipóteses de equilíbrios futuros. É interessante. Pode ser formativo. Aprende-se sempre qualquer coisa. Mas pouco adianta.
Governantes, dirigentes partidários e comentadores, quando não são os mesmos, passam grande parte do seu tempo a congeminar e a atrever-se. As discussões sobre as perspectivas e as expectativas dos partidos, designadamente as possibilidades de alianças e as probabilidades de eleição antecipada, são igualmente curiosas, informadas e estimulantes. Mas quase absolutamente inúteis. Graças à televisão, hoje não se faz política, comenta-se.
Alguns dos aspectos mais importantes da vida nacional ou algumas das exigências mais urgentes passam ao lado da cena política actual ou ficam fora das áreas de interesse. Como criar um bloco político maioritário, mesmo feito de partes diferentes, capaz de preparar o país e organizar o espaço público nos próximos anos? Qual é o programa político essencial e prioritário capaz de responder duravelmente às necessidades mais gritantes da sociedade? Como responder ao crescente desconforto?
Podem ser outras perguntas. Mas o importante é ver o que realmente tem interessado os partidos e os políticos. Como fazer escorregar o PSD? Como retirar votos ao PS? Como liquidar as hipóteses de bloco democrático moderado? Como ferir o Chega? Como obrigar os outros partidos, sempre os outros, a fazer o que não querem? Fazer bem, para o governo, é simplesmente retirar votos ao PS e ao Chega. Fazer bem, para o Chega, é fazer com que tudo corra mal. Fazer bem, para o PS, é tornar a governação do PSD impossível. Fazer bem, para o PCP e o Bloco, é incomodar e dividir o PS. Todos querem que sejam os partidos e o Parlamento a governar contra o governo. Pelo seu lado, o governo quer governar contra ou apesar do Parlamento.
A direita radical vocifera, nada tem a oferecer a não ser desordem. A direita moderada perdeu causa e ímpeto, engana-se a si própria. A esquerda moderada está atarantada, provavelmente em vias de divisão. A esquerda radical vive o seu Outono crepuscular, tão auto-suficiente quanto inútil. Mas é com estes que temos de viver, não com Sebastião ou Salvador. Nem com negros amanhãs.
Não há praticamente voz com esperança. O optimismo do governo é falso e disfarçado. Faz lembrar aquelas crianças com medo, a percorrer corredores sombrios e a murmurar “não tenho medo, não tenho medo”! A esperança risonha da oposição reside na expectativa de que tudo corra mal, que os portugueses vivam pior. Ora, todo este ambiente falso e postiço contrasta com as tonalidades do tempo que vivemos, um dos momentos mais perigosos da idade contemporânea. As aflições do mundo, que são medonhas, terão inevitavelmente efeito em Portugal. Mas os portugueses não querem saber. E os dirigentes não querem que se saiba.
Portugal é um país pequeno, relativamente pobre, pouco sabedor e mal preparado. Sem o estrangeiro amigo, isto é, sem o Ocidente, o país sofre e declina. Já houve tempos, há séculos, em que o nosso país tinha voz e teve um papel. Motor ou vanguarda, como lhe quiserem chamar. Deu um contributo para a história do mundo muito superior à sua dimensão e à sua aparente capacidade. As circunstâncias globais e a determinação dos portugueses conjugaram-se para uma era excepcional. Nada se repete. Hoje, as circunstâncias ultrapassam-nos. A dimensão, a sabedoria, a fortuna, a força e o trabalho exigidos para tratar do mundo estão fora do nosso alcance. Os portugueses dificilmente contribuirão de forma ousada para a paz e o progresso da humanidade. Mas poderão seriamente contribuir para a sua própria prosperidade.
Em vias de perder importância mundial, nas vésperas de crises políticas inéditas e sob o risco de fragmentação a curto prazo, a Europa é fonte das maiores inquietações. Portugal vive mal com uma Europa em crise. A Europa já não é um continente quase dominante, muito menos hegemónico. É doloroso perder aquele que foi o seu papel durante séculos. A decadência nunca foi boa conselheira. Nem fácil de viver. Os Europeus vivem muito mal as ameaças externas, a desunião e a desordem.
A perder a sua indiscutível hegemonia, a América prepara-se para uma verdadeira explosão política. Qualquer que seja o resultado das eleições deste ano, a América vai-se afastar ou deixar cair a Europa e alguns dos seus aliados. Os americanos reagem muito mal quando não são obedecidos e respeitados. Pior ainda quando se preparam para viver num mundo em que já não mandam, mas com o qual têm de compor.
A China é a grande novidade no mundo. Secularmente espezinhada, ferozmente explorada, sem democracia nem liberdades, com pouco respeito pela vida humana e com desdém pela cultura e pela história, aquele grande país prepara a sua vingança milenar e vai querer, pela primeira vez, influenciar o mundo e obrigar os outros povos, não apenas a respeitá-la, mas também a obedecer-lhe. Uma das dificuldades reside no facto de o mundo não saber como tratar com uma China vencedora e dominadora.
A Rússia voltou a transformar-se na pior ameaça contra a Europa e a democracia. Com enormes recursos de matérias-primas, mas com evidentes dificuldades económicas, a Rússia recupera a sua posição de parceiro do terror nuclear, mas perdeu o seu papel de exemplo e de influência. Volta ao seu lugar de protagonista da violência imperialista. De ninho de oligarcas e de berço de terroristas. Qualquer vitória russa é uma derrota da Europa.
O Próximo Oriente, que não é uma potência, mas sim um vulcão, por razões próprias e alheias, por petróleo e finanças, contribui eficazmente para a desordem universal que se prepara. Completada por uma África esfomeada e desordeira.
É neste mundo em perfeita convulsão, com futuro desconhecido e sorte incerta, que Portugal deve procurar o seu lugar. Com a garantia de que não pode influenciar, mas com a certeza de que deve defender-se e preparar-se. Se às forças políticas e militares que nos ultrapassam, acrescentarmos as ameaças climáticas e o pesadelo demográfico, depressa veremos que nos esperam tempos perigosos. Para os quais nos devemos preparar. Na Justiça, na saúde, no equilíbrio social, na educação e na criação de riqueza. Se não nos prepararmos, ninguém o fará por nós. Pelo contrário: os outros apenas tornarão as coisas piores. O mundo já está a arder, Portugal ainda não.
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Público, 6.7.2024
2 comentários:
O domínio do comentário atingiu o ridículo, na acção de convidados e convidantes:
Os primeiros usam o ruído como instrumento em debates e não raro seguem bovinamente as orientações do convidante.
Os segundos percorrem todo o naipe do intervencionismo, pedindo comentário às suas opiniões, interpretando à sua maneira as opiniões dos convidados, assumindo-se como interpeladores e representantes da opinião pública.
E obviamente assumem-se no direito de representar a corporação 'comunicação social' em cuja defesa sempre se manifestam!
“O mundo já está a arder, Portugal ainda não.” - arder não arde. Com um partido como o Chega a eleger 50 deputados em 230, partidos com 5 ou menos portando-se e promovidos como faróis de autoridade ou da verdade, escola pública no sentido da escola para pobrezinhos, saúde em míngua e com urgências por marcação, e o Ministério Público sob ataque declarado, isto não arde. Isto ferve ou coze em lume brando.
Mais cedo ou mais tarde a força da realidade imporá a sua lei, aí a tal decadência, nunca boa conselheira, vai doer!
Quanto ao Portugal pequeno e relativamente pobre. Relativamente é a palavra.
Em 2003 um director de uma grande multinacional norueguesa, após um passeio e jantar pelo Porto, comentava-me: “não fazia ideia, com tanto património e casas ao abandono vocês são mesmo muito ricos”!
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