sábado, 4 de maio de 2024

Grande Angular - Escola única, livro único

 que é irreparável não tem reparação. É simples, mas é difícil compreender. Ou antes, dá jeito utilizar o conceito, na esperança de compensação. Que não se confessa, com certeza. Mas a reparação contemporânea do colonialismo, da escravatura e da “conquista” é muito útil para alimentar o “ego” ou obter vantagens económicas. Os países que pediram perdão e já começaram a reparar, têm todos ou quase todos interesses políticos, económicos e militares nos países beneficiários.

 

A escravatura é irreparável. Ponto final. Todas as suas vítimas estão mortas. Os que com ela ganharam também. Aceite por quase todos na altura (menos as vítimas, claro), é hoje repudiada por toda a gente. Os males que a escravatura fez, a violência que usou, a crueldade com que agiu, a injustiça que praticou e os milhões de vidas que destruiu, não têm reparação, a não ser demagógica ou com interesses disfarçados.

 

Pedir perdão pela escravatura é inútil e, sob a aparência de beatitude, é hipócrita. Não apaga crimes, não repõe justiça. Não castiga malfeitores. Não compensa vítimas, geralmente mortas há séculos. Relativamente à escravatura, à conquista, ao colonialismo ou ao racismo, essencial é não encontrar sucedâneos de igual natureza, mas sim respeitar as pessoas, aceitar a dignidade de todos e cultivar a liberdade.

 

Em vez de reparar o irreparável, importante é cultivar a liberdade e o pluralismo, não substituir pensamento único por único pensamento. Quase todos os movimentos de opinião dos últimos séculos têm um ponto comum: o desejo de reformar a educação, de dar uma orientação às escolas e aos programas, de redigir os novos manuais e de formar consciências. Os Republicanos pensaram em expurgar as escolas da perfídia monárquica, adaptando-as ao novo sistema de vida, à gloriosa República. Contra os malfeitores Republicanos, Salazar garantiu que não havia uma “escola neutra”, refez programas e criou o “livro único”, ajustando tudo aos novos tempos de “Deus, Pátria e Família”. Contra os Fascistas de diversos tempos, os Democratas não tiveram sossego enquanto não tentaram fazer uma escola de programas democráticos. Contra a Democracia liberal e plural, nunca os socialistas, comunistas e outros marxistas deixaram de se preocupar com uma escola formadora de consciências e com programas que anunciem a nova sociedade. Contra as tradições ocidentais dos últimos séculos, múltiplos movimentos empenhados na raça, no género e na idade, tentam hoje adaptar a escola aos novos valores, moldar espíritos das novas gerações e formar novos cidadãos. Entre as maneiras de o fazer, conta-se a elaboração de programas e a redacção de manuais.

 

Este processo de substituição não tem falhas. Quem pretende criticar o que lhe parece errado, elimina a ortodoxia e aprova nova orientação. Com o propósito de formar consciências. Afonso Costa e Salazar, Hitler e Mussolini, Estaline ou Mao Tsé-Tung tiveram em comum o apetite de orientação doutrinária. Ainda hoje, programas educativos e respectivos manuais traduzem a tentação de “moldar espíritos”.

 

Nas modas actuais, a inclinação dirigista, para não dizer totalitária, está sempre patente. A muito pouca gente ocorre admitir a ideia de uma escola livre, de programas abertos e de manuais plurais. Ou antes, de uma pluralidade de manuais, ficando os estudantes e as suas famílias responsáveis pelas escolhas. Não, não é essa a ideia preponderante. É, isso sim, o propósito de uma ordem alternativa. Para apagar o racismo, destruir o machismo e derrubar o capitalismo, são necessários a escola e os manuais devidamente orientados.

 

Explicar o colonialismo e a escravatura, por exemplo, é tarefa permanente. Ainda recordamos os manuais do Estado Novo. As suas “narrativas” e as suas explicações para os Descobrimentos, a colonização, a escravatura e a conquista traduziam o que se espera e conhece. Não faltavam a superioridade da civilização ocidental e a missão evangelizadora dos portugueses. O descobrimento e a conquista eram o resultado do esforço dos missionários e dos descobridores portugueses. O que os guiava, a eles e aos poderes metropolitanos, não eram o interesse, a cupidez, a ambição e a vontade política, mas sim a “missão” e a “vocação” do Ocidente em geral e dos Portugueses em especial.

 

Qualquer pessoa com um pouco de idade recorda esses manuais. Às escondidas, denunciava-se a explicação metafísica, beata e hipócrita, revelava-se o verdadeiro interesse imperialista e colonialista dos portugueses e dos ocidentais. Agora, há quase cinquenta anos, é constante o esfoço de construção de uma nova ortodoxia. Com novas actualizações. Já se exige a elaboração de novos manuais taxativos em questões de colonialismo, racismo, exploração capitalista, machismo e ditadura de género. Parece que é preciso demolir a ideologia dos Descobrimentos. Entre activistas e militantes, entre sociólogos e pedagogos, dá-se voz às exigências de novas escolas, novos métodos, novos programas e novos manuais a denunciar a “culpa” dos Portugueses, dos capitalistas, dos colonialistas e dos esclavagistas.

 

O tão urgente esforço de exigência de isenção para a escola pública, para o programa e o manual, está já substituído pela pressão de uma nova ideologia. Raras, muito raras são as pessoas que defendem um esforço de isenção. É verdade que nada é absolutamente neutro na vida, a escola também não. Mas, lutar por uma neutralidade ideológica é uma luta superior. Por que razão não haverá manuais mais ou menos marxistas e materialistas, ao lado de idealistas e confessionais? Por que não será possível conviver, na mesma escola, com todos os manuais possíveis, ficando às famílias a faculdade ou o dever de escolher?

 

As escolas que praticam obrigatoriamente o cristianismo, o islamismo, o judaísmo e qualquer outra forma de imposição de valores não são progresso da liberdade, bem pelo contrário. São sempre formas, mais ou menos radicais, de imposição de valores e de intoxicação. A China e a Coreia do Norte, tal como o Irão e Cuba, são bons exemplos de sistemas escolares despóticos.  A proibição de ensinar Darwin e o evolucionismo, em vigor em várias regiões americanas, é do domínio do obscurantismo. Como são todas as tentativas de impor novas ortodoxias, mesmo as que se designam por libertadoras, democráticas e progressistas. 

 

Por que diabo se exige das autoridades que façam leis e aprovem novos programas e novos manuais? Descolonizar não deveria implicar a imposição de uma nova doutrina. Libertar não deve criar novos livros únicos. Reparar a escola opressiva, não se faz com uma escola de livro único. Nem sequer democrático.

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Público, 4.5.2024

1 comentário:

Jose disse...

«É verdade que nada é absolutamente neutro na vida, a escola também não.»

Na educação importa sempre equacionar o 'tempo'; um tempo para formar ideais e um tempo para o real.
O primeiro dispensa a História ou, no mínimo, dispensa-lhe o logos.

No que se vem verificando aparenta querer-se desvalorizar o indivíduo, fundando a sua formação numa 'moralização' da História.
Nem criam seres morais nem respeitam a realidade ou a História.