Pasme-se! Em plena pandemia, de confinamento em confinamento, entre mortos e infectados, com boas e más notícias sobre as vacinas, num raro clima de incerteza e fragilidade, os deputados dedicaram muitas das suas atenções, algum trabalho, uma boa reserva de energia e muita polémica para aprovar uma lei sobre a eutanásia e o suicídio medicamente assistido. Não havia tempo menos indicado, momento mais desajustado e oportunidade mais perversa do que esta. Eles não percebem o mal que fazem. Eles não entendem o mau exemplo que dão. Eles não se interessam pelos resultados morais de uma tal atitude de brutalidade chocante. É quase obsceno. Provocatório, de qualquer modo.
Um tema como este, da vida e da morte, que implica a liberdade individual, que põe em causa as escolhas pessoais, que altera as regras da justiça, que toca no fundo moral dos cidadãos, que atinge os sentimentos religiosos de muitos, que define os termos da compaixão, que obriga a uma reflexão profunda sobre a Constituição, que põe em causa a licitude de regras legais e que cria obrigações para as instituições, um tema como este, dizia, é discutido em estado de emergência e é votado quando se morre a mais! Eles não sabem o que fizeram. Eles não se dão conta das consequências dos seus gestos.
O Presidente da República, o Tribunal Constitucional e os partidos políticos tomaram as suas posições e deram andamento aos procedimentos legais, sem que se conheça ainda o pensamento de todos os intervenientes. Sabe-se, para já, que a questão constitucional da “inviolabilidade da vida humana” parece ter sido posta de lado e que tudo leva a crer que o Tribunal Constitucional não levante problemas a esse propósito, deixando assim crer que a eutanásia e o suicídio medicamente assistido serão admitidos. É pena que assim seja. A discussão sobre as diferenças entre eutanásia e suicídio assistido está longe de ter sido feita. A lei aprovada trata os dois actos como se fossem equivalentes, o que não é verdade. A lei estabelece a confusão deliberada de conceitos quando refere o gesto “praticado ou ajudado”…
A eutanásia é um gesto praticado por outrem, voluntário ou não, a pedido ou não, activo ou passivo, mas exige ser de autoria de terceiro e pode não ter sido totalmente escolhido pelo próprio. O suicídio assistido implica escolha própria do gesto e do momento; exige decisão individual, livre e consciente; traduz uma opção lúcida e informada. O recurso a terceiro é instrumental. O momento decisivo depende do próprio.
A vida humana é inviolável, diz a Constituição. Ainda bem. É uma bela formulação e um admirável pensamento. Mas o suicídio não é uma violação da vida humana. Por isso não faz qualquer sentido penalizá-lo. O que deve ser despenalizado, para esclarecimento público, é a ajuda instrumental necessária ao gesto decisivo, da exclusiva responsabilidade do próprio, por mais pequena que seja a sua intervenção.
O valor da inviolabilidade da vida humana não é respeitado pela eutanásia, dado que alguém tem de agir contra a vida de outrem. O mesmo valor é respeitado pelo suicídio assistido, dado que ninguém atenta ou viola a vida de alguém. Ao contrário da eutanásia, o suicídio assistido não atenta contra a inviolabilidade da vida humana. Se assim fosse, teríamos de encarar a pena para tentativas de suicídio e os acidentes que põem em risco a vida do próprio e qualquer gesto ou infracção de que o próprio seja vítima. Quer dizer que teria a lei de prever castigos para quem corre riscos, quem tem acidentes, quem se fere ou danifica, quem tenta suicidar-se. No limite, o suicídio seria proibido e castigado.
A violação de uma vida humana pressupõe que a autoria seja externa, de outrem. Por isso a figura do suicídio assistido é diferente da eutanásia, mesmo nas suas formas mais benignas. O suicídio assistido tem de ter a decisão consciente da pessoa em causa, sobre o momento, o método, o fundo e a forma. E estes têm de depender de gesto ou acção do próprio. Como é sabido, há mil maneiras conhecidas de agir, de tudo preparar a fim de que o paciente possa tomar a decisão final. Se não for possível, se o paciente estiver inconsciente, se não for capaz de exprimir a sua vontade, se não tiver a capacidade de agir a fim de dar início ao procedimento terminal, se não for capaz de escolher o método e o momento e se não tiver lucidez e consciência para todas essas decisões e escolhas, então estamos perante um gesto que pode ser considerado violação da vida humana.
Vale a pena regular legalmente as condições que devem ser respeitadas pelos médicos a fim de “assistir”, isto é, de fornecer os meios e os métodos? Vale a pena regular o grau de sofrimento, a natureza da doença e outras circunstâncias segundo as quais é possível assistir a um suicídio? Sim, vale a pena. Até porque pode ficar testemunho escrito ou gravado. O próprio médico que assiste tem interesse em ser defendido por testemunho do paciente.
A inviolabilidade da vida humana é um valor que merece tanta protecção legal e constitucional quanto a liberdade individual, a auto-determinação e a autonomia pessoal. Por isso são condenáveis os métodos ou gestos que desviam a decisão para outra pessoa que não seja o sujeito. Se a decisão e o gesto são do próprio, merecem respeito e é criticável a legislação que os proíbe ou castiga. A decisão do próprio tem de ser consciente e expressa. Toda a problemática da prossecução e da interrupção de tratamentos tem séculos de discussão e experiência e não deve ser confundida com a prática do suicídio assistido. A deontologia da profissão médica e a experiência das Ordens e das sociedades científicas e clínicas são os critérios mais seguros para avaliar os benefícios, a eficácia, o fundamento e a utilidade dos tratamentos ou do encarniçamento. Tratar da vida e cuidar da morte são duas realidades diferentes, não deveriam ser tratadas da mesma maneira, nem com as mesmas regras.
A decisão da morte antecipada depende do paciente e só dele. Não compete ao médico nem aos serviços de saúde tomar decisões que devem ser do paciente. Por isso, merece respeito a legalização do suicídio assistido. Para quem a liberdade individual e a escolha consciente são os critérios essenciais, a decisão pessoal é o factor chave. Sem o que a eutanásia não deve ser legalizada.
Público, 20.3.2021
1 comentário:
Sempre direito ao cerne da questão, sempre sensato, precisamos deste grande homem neste país a deriva como pão para a boca!
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