Tal como com as esquerdas, também há várias direitas. A democrática e a não democrática. No essencial, o que as separa é a democracia. Para uma, mesmo valores para si importantes como a propriedade, a religião e a nação, devem articular-se com a democracia e esta deve respeitar a liberdade. Para a outra, democracia e a liberdade individual são princípios residuais ou dispensáveis.
Interessante e perturbador é o facto de certas diferenças entre tendências de direita reproduzirem diferenças entre esquerdas e direitas. A direita trata da pobreza com a caridade, mas mais humanidade e cuidado. A esquerda trata da pobreza com as leis e a igualdade, mas sem humanidade. A esquerda diz que a cultura e as ideias são suas. Nem sempre é verdade, mas há aí qualquer coisa. São bens mais acessíveis. A direita é mais de interesses. São bens mais seguros.
Não é a autoridade que distingue a esquerda da direita. Mas sim as duas esquerdas, uma da outra, e as duas direitas, uma da outra. A firme autoridade do Estado, com essa designação ou a de Partido, é apanágio dos radicais, da direita ou da esquerda. Ao patrocinado da propriedade e do sangue, próprio da direita, a esquerda opõe o nepotismo de partido. A esquerda defende a igualdade, a direita e eficiência.
Entre os grandes valores e princípios da direita, contam-se a nação, a ordem, a família, a desigualdade natural e a hierarquia social. Como se sabe, tudo isto separa direita de esquerda. Além disso, há valores que podem ou não ser respeitados pelas direitas: a religião, Deus e o trabalho.
Estas crenças fazem com que as direitas sejam complacentes com a pobreza, o nepotismo, o nacionalismo e a xenofobia. Nenhum destes atributos é absolutamente exclusivo das direitas, mas são aqui mais frequentes. E podem ter semelhanças com as esquerdas radicais, igualmente praticantes do nepotismo, do nacionalismo e de formas de xenofobia.
A liberdade individual e o Estado são outros factores que separam as direitas. Para uns, o liberalismo económico, político e cultural é de rigor. Para outros, a autoridade do Estado vem à cabeça.
Nas últimas décadas da monarquia constitucional, durante a República e ao longo da ditadura do Estado Novo, nunca a direita preferiu o liberalismo, nunca a direita deixou de venerar o Estado e o seu papel na economia e na administração. Depois do 25 de Abril, todos os motivos eram bons para reforçar o papel do Estado, cujo peso se justificava para lutar contra o comunismo. Mas, quando se tratou de reprivatizar as empresas, uma espécie de vento liberal parecia soprar na política.
Em Portugal, a direita liberal está extraordinariamente ausente. Sempre esteve. As razões são muitas, desde o papel do Estado, passando pelo analfabetismo e pelo catolicismo, até à pobreza e à desigualdade. Se procurarmos, durante os últimos séculos, rastos de liberalismo, encontraremos pouca coisa. E mesmo os “liberais” do século XIX, os das “guerras liberais”, como ficaram conhecidas as guerras civis, não brilhavam pelo seu culto das ideias liberais.
Assim é que a direita salazarista se gabou de ser anti-liberal e anti-democrática, com simpatias pelos Alemães e sem qualquer apego pelos Aliados. Podia não ser nazi ou fascista de gema, mas desprezava as democracias anglo-saxónicas. O nacionalismo da direita impedia-a de acarinhar a ideia de ver alemães, italianos e espanhóis em Portugal. Mas eram estes, seguramente, os preferidos no grande conflito mundial.
Em Portugal, onde tudo parece diferente, uma parte importante da direita diz-se social-democrata. O que é pelo menos estranho. E a democracia cristã garante que não é bem isso, mas sim social cristã. E a extrema-direita tem vergonha de dizer que é salazarista. O mais curioso é o facto de o PSD se dizer social-democrata. O essencial da direita anda por ali. Mas há por lá uns tantos social-democratas e uns poucos liberais. São genuínos, mas não fazem com que o partido o seja. Aquele partido tem de tudo, mas tem sido historicamente um travão ao crescimento da extrema-direita, mas esse papel, tão benfazejo, parece agora esgotar-se. O PSD está hoje mais disponível a conviver ou coexistir com a extrema-direita do que a barrar-lhe o caminho.
Também a religião tem papel importante na direita em geral e na portuguesa em particular. Até há pouco tempo, quando a Igreja era, sem hesitação, maioritária ou essencialmente de direita, o panorama estava claro. Jacobinos e republicanos à esquerda, católicos e monárquicos à direita. Mas a Igreja mudou. É hoje fácil encontrar, no seu seio, grupos, pensamentos e valores de esquerda. Em todo o caso, inspirações que a aproximam do mundo do trabalho e dos sindicatos, assim como do universo dos costumes mais permissivos, solidários e igualitários.
Estrangeiros, imigrantes e minorias sempre foram questão importante. Não é verdade que as direitas sejam claramente xenófobas e racistas, e que as esquerdas sejam solidárias e inclusivas, para utilizar termos tão em moda. Há xenofobia e racismo nos dois lados. Como há em cada lado políticas favoráveis e desfavoráveis à imigração. Mas também é verdade que é nas direitas que se encontram mais sensibilidades patrióticas, mais crentes na portugalidade, mais defensores da civilização cristã, mais oposição às políticas de abertura aos imigrantes e aos refugiados. Como é também nas direitas que é mais vincada a atitude favorável a uma integração “forte” dos imigrantes e estrangeiros, isto é, devem vir poucos e os que vêm devem adoptar valores e costumes portugueses. O “multiculturalismo” existe em todo o lado, mas é mais próprio das esquerdas e menos apreciado nas direitas.
Há ainda a questão do mérito. Uma das mais estranhas. Na verdade, tempo houve em que o mérito se opunha à família, ao sangue e à herança. Era o mérito de cada um que podia criar condições de igualdade de oportunidades. O mérito era um valor da democracia e até da esquerda. Curiosamente, o valor do mérito tem vindo a diminuir para a esquerda. E não se sabe se a crescer para a direita. Para as empresas, talvez. Para a política e a sociedade, menos.
A direita prefere o mercado, a concorrência e a iniciativa privada, mas recorre ao Estado sempre que precisa. O problema é que precisa muitas vezes. A direita é hoje menos rígida diante de certos valores, como sejam a permissividade sexual, a liberdade de género, a igualdade de sexos, o aborto, o divórcio ou a união de facto. Uma coisa é certa: o futuro da democracia depende tanto da esquerda como da direita. Se ambas souberem ser democráticas. E conseguirem derrotar os seus inimigos.
Público, 6.3.2021
1 comentário:
Não referir a liberdade' sempre associada à responsabilidade individual' como a direita invoca, e a 'doutrina dos coitadinhos' que rege a esquerda e as suas lutas de direcção única, deixa larga brecha na análise.
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