Por entre desastres e ameaças, os últimos tempos também nos trouxeram boas notícias. A derrota de Donald Trump e a vitória de Joe Biden estão nesse número. Assim como as primeiras vacinas contra o vírus covid-19.
Os cientistas e a sua investigação acabam de prestar inesquecível serviço à humanidade. Raramente ou nunca os esforços dos profissionais e dos laboratórios chegaram tão depressa a resultados tão promissores. Sabe-se que há concorrência excessiva, com propaganda e mentira à mistura. Sabe-se que há muito dinheiro em causa e que, com a competição descomunal, se perdem meios e recursos. Que há quem exagere na demonstração de bons resultados e quem esconda as insuficiências. Que as vacinas estarão prontas para uns, mas não para todos. Que os que têm mais poder, mais dinheiro, mais reputação e a nacionalidade certa terão vacinas mais rápidas e mais eficazes do que os outros. Que há quem, pessoa, governo, empresa ou Estado, use as vacinas para obter vantagens económicas, comerciais ou políticas, legítimas ou não. Sabemos isso tudo.
Também sabemos que, para certas doenças, não se encontram facilmente vacina e tratamento. E quando ambos existem, nem sempre estão acessíveis. Sabemos que doença de pobre não tem vacina fácil nem cura pronta. Como sabemos que doença de todos ou de país rico depressa tem tratamento e vacina. E não ignoramos que, por vezes, mesmo quando há vacina, tratamento e cura, não chegam sempre a todos e a tempo. Tudo isso e muito mais não impede que o que se está a conseguir, neste ano de triste memória, é motivo de regozijo e encanto. E admiração.
Dá alegria viver com a certeza de que, em certas circunstâncias e sob determinadas condições, as capacidades técnicas e científicas estão de tal modo desenvolvidas que nos é possível ter confiança na humanidade. Habituámo-nos às missões espaciais que exigem uma precisão e uma coordenação inacreditáveis e consideramos que são banais, que qualquer um pode chegar lá. A ponto de pensarmos que a ciência e a técnica são coisas de todos, banais. É com facilidade que julgamos que uma peça musical barroca, um escultura gótica, um belo romance ou um grande filme contemporâneo são o supra sumo da criação e da inteligência, enquanto admitimos que qualquer dispositivo técnico ou um adiantamento da ciência fazem parte da rotina. De um cientista ou de um engenheiro, rapidamente diremos que “não faz mais do que as suas obrigações”, mas de um poeta ou de um pintor, não hesitamos em classificar de genial a sua obra. E assim não deveria ser.
O que uns milhares de cientistas fizeram, em menos de doze meses, sob enorme pressão humanitária, merece o aplauso universal e é credor de admiração sem reservas. E deixa-nos uma réstia de esperança, a certeza de que o espírito humano, a organização científica e o esforço dos profissionais são capazes de feitos memoráveis. São equipas e organizações como estas, em vários países, em muitas universidades, em diversos laboratórios e em diferentes empresas que nos reconciliam com o tempo presente. Não conhecemos ainda as consequências e a eficácia de tais vacinas. Nem percebemos os êxitos obtidos nas áreas do tratamento e da cura. Mas sabemos já que um grande empenho científico, sem entraves artificiais, com nenhumas ou poucas distorções políticas, produz obra de que a humanidade se pode orgulhar.
Notícias boas também as que chegam da América. Eleições muito renhidas deram uma vitória clara a Joe Biden, um sensato e cinzento democrata, contra Donald Trump, uma das maiores ameaças contra as liberdades e o equilíbrio das nações. Não foi vitória simples nem folgada. Para surpresa de muitos, os resultados eleitorais do presidente Trump foram muito altos para uma presidência tão contestada. A verdade é que foi a democracia que impediu os riscos que a democracia corria. Como é sabido, também os sistemas democráticos podem destruir as democracias e as liberdades. Uma decisão democrática não é necessariamente justa, solidária e livre. Como se sabe hoje, as democracias “caem por dentro”, quantas vezes através de processos democráticos. Como se vê hoje na Europa, na América Latina, em África e na Ásia.
Há vinte anos que a democracia conhece um processo de inversão ou de captura. Há duas décadas que forças radicais ameaçam eleitoralmente as democracias, conquistam posições nos parlamentos e até tomam conta de governos. Na América Latina, graças a eleições com demagogia e populismo, os maiores e mais ricos países daquele continente têm hoje democracias frágeis ou fictícias. Em África, quase todas as experiências auspiciosas de poder democrático fizeram uma reversão, retomando estruturas de poder violentas, procedimentos contestáveis e governos de absoluta hipoteca partidária, militar e tribal. Na Ásia, enquanto alguns países nem sequer ergueram estruturas aparentes de democracia, a maior parte recorre a esses procedimentos e na verdade os governos estão cada vez mais prisioneiros de famílias, empresas e partidos. Na Europa, países de antiga e sólida democracia vêem crescer movimentos e partidos não democráticos e antidemocráticos, radicais de direita ou de esquerda, enquanto países de novas e recentes democracias dão já sinais inequívocos de quererem, com apoio do eleitorado, aprisionar e manipular a democracia.
Estes têm sido anos de dificuldade democrática excepcional. E os democratas nem sempre parecem ter percebido ou terem meios de obstar, por vias democráticas, ao declínio da democracia. Donald Trump e os Republicanos causaram danos à democracia americana e ao mundo ocidental cujas consequências não conhecemos ainda. Felizmente que os eleitores americanos, isto é, um pouco mais de metade deles, reagiram, reduzindo assim a quatro anos pretéritos o período de verdadeira violação da democracia que se anunciava para durar muito mais. Os eleitores americanos acudiram a tempo, por pequena margem, acrescente-se, mas por vias democráticas. A mensagem enviada ao resto do mundo é clara: é possível que a América e os americanos não embarquem em períodos de democracia alucinada, quem sabe se iliberal e caprichosa. É possível, dentro da própria América, encontrar forças de resistência a todas as tentativas demagógicas que proliferam por esse mundo.
A democracia também é o regime dos não democratas. E dos antidemocratas. É a sua força. E a sua fraqueza. Dentro da democracia, está o seu próprio veneno, a sua morte. Mas também está o seu remédio. A sua salvação.
Público, 28.11.2020
1 comentário:
Hum... Doutor Barreto, não consegue fugir a um certo optimismo...😊😊
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