Nunca tal se viu! Um partido, com um só deputado, provoca verdadeiros terramotos na vida política nacional! Ocupa debates parlamentares e canais de televisão, artigos de jornal e comentários de rádio. A vida política e a imprensa ofereceram assim, gratuitamente, o maior investimento em comunicação a que jamais um partido poderia aspirar.
É verdade que se trata de um partido, ou antes, de um deputado com raras qualidades de demagogo e de oportunismo e que usa com mestria uma espécie de vacuidade de pensamento com garantidas consequências epidérmicas e temperamentais. Mas nada justifica tanto barulho. Nada, a não ser os defeitos dos democratas registados e dos políticos consagrados.
Muitos democratas, como alguns do PSD, receiam o Chega e pensam que aceitá-lo é a melhor maneira de o condicionar. Muitos democratas, como alguns do PS, temem-no e pensam que denunciá-lo com veemência, como se ele tivesse votos e exércitos, é suficiente para o limitar. As esquerdas, como algumas do PCP, do Bloco e até do PS, estão convencidas de que denunciar, segregar, banir e eventualmente proibir são as soluções para este problema. Todos, por junto e atacado, consideram o Chega “uma ameaça”. Fracas entidades que assim se sentem em perigo!
É curioso que a maior parte dos que precedem não perceberam que são exactamente esses tratos que permitem que o Chega cresça! Não fosse o acolhimento que os partidos estabelecidos lhe reservam e o Chega estaria hoje reduzido a um grupelho passageiro. Todos, mais ou menos democratas, de esquerda ou de direita, incapazes de ver os seus erros e os seus defeitos, não percebem que são eles próprios, em grande parte, a causa dos Chegas deste mundo. Se quiserem encontrar algumas das verdadeiras causas do Chega, procurem em São Bento.
Realmente, o Chega não é grande coisa. Nem política, nem esteticamente. Nem doutrinária, nem culturalmente. Procurem-se argumentos e reflexão, tente encontrar-se uma doutrina, experimente-se detectar elementos de identidade e de reconhecimento e rapidamente se perceberá o imenso vazio, a inconsequência confrangedora e o comportamento reduzido a tiques previsíveis e a reflexos próprios do grau zero do pensamento.
Então, o que faz com que o Chega exista? Nasce por defeito. Quem faz o Chega? Os defeitos dos outros e os seus próprios.
Os defeitos dos outros são os erros da democracia e dos democratas. O cosmopolitismo exacerbado pela globalização fragmenta os sistemas políticos nacionais. A perda de sentido de identidade desenraíza cidadãos. Para as democracias estabelecidas, especialmente europeias, é quase crime procurar o “seu país” ou a “sua comunidade”. O desprezo pela história transforma os cidadãos em apátridas. Os sistemas políticos desumanizados vivem de artifícios, de encenação e de propaganda que põem em causa qualquer forma de sinceridade. O amor pelo dinheiro e pelo êxito a qualquer preço, próprio da economia, contaminou a política. A desigualdade social e económica crescente é particularmente severa em tempos de crise. A corrupção e o nepotismo desnaturam a democracia. A insuportável arrogância de muitos democratas aliena cidadãos e eleitores. A intolerável superioridade intelectual de tantos políticos mete medo ao cidadão comum. O descontrolo dos movimentos de populações e a impotência política perante as migrações criaram sentimentos de insegurança difíceis de contrariar. O crescente desprezo pelo trabalho e pela dignidade do cidadão na sua comunidade e no seu país reforça o sentimento de alienação. Eis algumas das causas do Chega.
Os defeitos próprios são mais conhecidos. Os ambientes de crise da democracia, da economia ou da sociedade são particularmente propícios ao surgimento de reacções salvadoras e justicialistas. Do clima de incerteza nascem pulsões regeneradoras ou vingativas. A que não faltam preconceitos e erupções irracionais. O Chega comunga desses defeitos todos, sem ter a doutrina, a solidez e a consistência de outros movimentos e grupos afins, uns de esquerda outros de direita. O Chega quer o óbvio automático: arrasar os partidos, limpar o Estado e a Administração Pública, castigar os corruptos, sanear a justiça, dar novo orgulho à nação, demitir os políticos e dar voz ao verdadeiro povo. O Chega bate na tecla do nacionalismo, o mais velho reflexo condicionado para tempos de crise. O Chega procura, em certas formas de racismo e de machismo, os necessários sucedâneos do espírito e da doutrina. Do ponto de vista do pensamento e do programa, o Chega é filho de pais incógnitos.
Dito isto, o Chega tem todo o direito à existência e à sua actividade. Mais uma vez se repete: a democracia é o regime de todos, incluindo os não democratas e os anti-democratas. Erra quem quiser banir o Chega. A livre existência de partidos políticos e movimentos não pode ter barreiras, a não ser as da lei. Esta última só pode punir, castigar ou proibir comportamentos, actos e factos ilegais, ilícitos ou criminosos. Não pode sancionar ideias, palavras, expressões ou pensamentos. Como também erra quem quiser aliar-se ao Chega. Mas essa decisão é política e quem a tomar paga as consequências.
Como já se percebeu, socialistas e social-democratas renunciam às maiorias absolutas parlamentares de um só partido. Como fogem dos governos de “grande coligação”, procuram, cada um de seu lado, soluções para formar governo. Começam a ganhar consistência as soluções que sugerem a formação de um grande bloco da direita, incluindo o Chega e a IL, enquanto se forma um grande bloco das esquerdas, com o PS, o BE, o PCP, os Verdes, o PAN e não se sabe mais quem.
É o pior que se pode fazer! Não resolve o problema da eficácia do governo. Não dá soluções pragmáticas para a economia. Não encontra recursos para a protecção social. Reconhece a extrema-direita e a extrema-esquerda como forças integradoras da democracia, isto é, do governo. Em vez de evitar o crescimento de extremos não democráticas à direita e à esquerda, é-lhes dado alento para fazer parte dos governos. E o direito de trazer para a política nacional limites aos direitos dos cidadãos, assim como oposição à integração europeia e à política de alianças externas de Portugal.
Este é o problema. O Chega é um pretexto. Para a direita, uma tentativa de voltar a sonhar com o governo. Para a esquerda, é como quem se lava nas águas do Ganges, ou antes, do antifascismo.
Público, 14.11.2020
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