Há décadas, a Europa era, para uns, sonho de paz e grande projecto em construção. A paz perpétua estava ali, ao virar do século. Democratas, cristãos sociais, liberais e socialistas empenhavam-se no seu desenvolvimento. Para outros, era a “Europa das burocracias”, a mando das multinacionais. Para outros ainda, era a “Europa dos monopólios” e do “grande capital”. Mas os Gaullistas queriam a “Europa das Nações”. E alguns grupos de esquerda propunham a “Europa dos trabalhadores”, enquanto os comunistas defendiam o internacionalismo.
O que se seguiu, depois da segunda guerra, foi uma das mais interessantes páginas da história, no capítulo das relações internacionais. O continente mais massacrado durante um milénio encontrava meio século de paz. Os países responsáveis pela morte de dezenas de milhões de pessoas em duas guerras criaram um modo de vida baseado na cooperação. Tudo isto, com a ajuda decisiva da NATO, do alto patrocínio militar dos Estados Unidos e da Guerra-fria.
O Mercado Comum passou a Comunidade e esta a União, ficando quase a coincidir com a Europa continental. Criava-se o Euro e o Espaço Schengen, além de outras formas de cooperação. O clube inicial de seis países atingiu o número de 28 e vai passar brevemente a 27, graças à saída da Grã-Bretanha, uma das mais estúpidas decisões políticas contemporâneas.
Durante sessenta anos, a Europa mostrou uma folha de serviços invulgar de paz e desenvolvimento social. Mas é uma história de êxito que está a acabar mal. Já não faz frente ao comunismo, porque não há comunismo. Já não é uma União a lutar pelo primeiro lugar na economia, na coesão social e na ciência. Foi ultrapassada ou distanciada pelos Estados Unidos. Está em vias de ser ultrapassada pela China. Já nem sequer deixa a Rússia a milhas atrás de si. Porto seguro de tantos exilados, durante décadas, a Europa estremece hoje com os imigrantes e os refugiados ilegais.
A história de Portugal europeu é igualmente um êxito. Em 1974, a Europa era um atalho para a democracia e o desenvolvimento. Era o melhor futuro que se imaginava. A adesão portuguesa foi um dos assuntos menos controversos da história do país. Foram cometidos erros e aceitaram-se dogmas de integração, mas a verdade é que estes anos de Europa foram globalmente felizes.
Hoje, para os Portugueses, a Europa é o que é, o que está e o que não se nota. A abstenção eleitoral em Portugal, nas eleições de 2014, foi de 66%. O contexto não é muito diferente: em 28 países, há apenas oito em que participação eleitoral é superior a metade do eleitorado. Em vinte, a abstenção é superior a 50%. Certo é que os Portugueses, que se declaram favoráveis à Europa em mais de dois terços, não votam nas eleições europeias.
Que aconteceu à Europa? Por que se vota tão pouco? Por que motivos as pessoas não se interessam pelas eleições? Por que razão os resultados podem ser tão diferentes das eleições nacionais?
Há muitas respostas. Os resultados das eleições europeias, no plano nacional, não têm consequências no plano europeu. Uma maioria de esquerda, em Portugal, não tem qualquer efeito, porque é anulada por uma maioria de direita, na Holanda. Ou vice-versa. Mesmo quando os resultados variam muito de país para país, os efeitos finais são nulos. O Parlamento é uma organização híbrida, com enormes poderes dentro da “Bolha Europeia”, sem capacidade de representação, sem intervenção nas comunidades nacionais e sem interlocução com os cidadãos. O Parlamento europeu é um embuste: criado para lutar contra o “défice democrático”, apenas legitima esse mesmo défice. Importantes são as eleições nacionais alemãs.
Oque pretende a Europa? A paz? Já conseguiu. Integrar todos? Está feito. Criar as bases para a democracia nos países europeus? Realizado. Neutralizar as tendências imperiais da Alemanha? Cumprido. Criar uma base estável de defesa com os Estados Unidos? Efectuado. Resistir ao comunismo soviético? Foi um êxito. Fundar novos sistemas de livre circulação de pessoas, de ideias, capitais e mercadorias? Executado. O que é mais confrangedor é que a Europa não tem nada para oferecer, a não ser o que é e o que está. Oferecer aos cidadãos o que já têm, paz, liberdade e livre circulação, não parece especialmente excitante. Mobilizar os eleitores para a democracia que têm há décadas também não é emocionante. Olha-se para a Europa e não se vê o que nos possa dar de novo. Mais do mesmo é receita para desastre ou abstenção. E dá o flanco aos seus inimigos.
Faz algum sentido “lutar contra a abstenção” e “encorajar a participação dos cidadãos”? Se sim, do que se duvida, como fazer para que os europeus se interessem pela Europa e pelas eleições? As respostas são conhecidas. Mais Europa. Mais parlamento europeu. Mais sessões de esclarecimento. Mais colóquios sobre as benfeitorias de Europa. Mais subsídios. Mais excursões a Bruxelas. Mais regiões. Mais votos obrigatórios. Multas para quem não vota. Nada disto serve absolutamente para nada, a não ser dar emprego às agências de comunicação.
A crise de cidadania e de participação política na Europa resulta da metamorfose dos cidadãos nacionais, uma certeza, em cidadãos europeus, uma abstracção. Como é efeito da transferência das soberanias nacionais, conhecidas, para a soberania europeia, inexistente. A crise política é consequência do definhamento dos parlamentos nacionais e da emergência de um parlamento artificial sem identidade.
Asoberania europeia não existe. Como não existem cidadãos europeus. Os cidadãos são nacionais. Que estes sejam europeus, muito bem. Mas que sejam cidadãos europeus, nem pensar. A cidadania exige e implica reconhecimento e identidade, pertença e justiça, cultura e tradição! Praticamente nada disso existe na Europa, a não ser dentro dos Estados e das nações. Para tudo o que é político e democrático, os cidadãos querem tratar com o seu país e a sua comunidade, não com a Europa. Para a justiça e a coesão, os cidadãos olham para os seus Estados, não para a Europa.
A União Europeia pode e deve respeitar a democracia, mas não é democrática. Faz tudo o que se imagina para diminuir a abstenção e aproximar os cidadãos. Mas é tarefa inútil. As liberdades, a cultura, a ciência e a protecção social são construções humanas e sociais, com história e geografia, não resultam da política europeia, nem de construções jurídicas ou de sistemas internacionais de equilíbrio.
Fizemos uma Europa longe demais. Recuar é difícil. Mudar de rumo ainda é mais difícil, mas necessário. Se assim não for, a alternativa, a liquidação, é desastrosa.
Público, 10.3.2019
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