Nos tempos modernos, a construção do Estado é a primeira realidade deste tipo: organização deliberada de um aparelho institucional capaz de enquadrar populações e culturas, dinastias ou comunidades.
Sítios houve em que se construiu o império. Os condimentos e os métodos eram simples. Uma ideia, uma doutrina, objectivos e valores. O monarca ou o Estado central e os seus exércitos eram os obreiros da construção. O método era sobretudo o da força. Os valores eram os da grandeza dos que mandavam.
Já houve tempos em que se construía a democracia. Ou a República. Foram processos morosos, duraram séculos, com dificuldades, avanços e recuos. Havia princípios, valores, doutrinas e objectivos. Nem sempre claros, raras vezes bem definidos, muitas vezes difusos e geralmente próprios de elites políticas. Mas a construção avançava. E os povos, identificando-se com os ideais, iam aderindo. E sabia-se ao que se vinha. Os protagonistas eram os povos. Os métodos incluíam a democracia, os parlamentos e o voto. Os exemplos, bem diferentes uns dos outros, podem ser os da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos da América e da França.
Depois, começou a construir-se o socialismo. A sociedade sem classes. O comunismo. A força dos valores era enorme, a ponto de permitir que se recrutassem, para a luta, milhares e milhões de pessoas. Fizeram-se revoluções. Na mente dos povos, estava mais o melhoramento das condições de vida, mas nos espíritos dos militantes, as ideias, os sonhos e os objectivos estavam bem presentes. Da democracia avançada passar-se-ia à construção do socialismo, terminada esta seguir-se-ia a construção do comunismo, este sim objectivo último e definitivo, a sociedade sem classes. O agente desta construção era o partido da vanguarda, em nome da classe proletária. O método era o da ditadura do proletariado. Os melhores exemplos são os da União Soviética e da China.
Hoje, constrói-se nada! Isto é, a Europa! A Europa é uma abstracção. Depois de umas décadas em que teve sentido e significado, desde a paz à defesa da liberdade e da democracia ao desenvolvimento, tem cada vez menos doutrina e ideia. E muito menos identificação popular. Hoje, a Europa faz-se porque se faz. Continua porque é. Para seu êxito, a Europa necessita de varrer a história e a geografia. Hoje tenta-se apagar a ideia de que a democracia tem uma geografia, as liberdades individuais têm uma história. Os meus direitos, o meu voto, a minha liberdade e a minha parte na decisão colectiva exercem-se numa comunidade, num local, numa área com limites e história. Podem ser fronteiras físicas, culturais ou lendárias. Mas só há direitos se houver geografia. Até porque quero saber onde vou protestar, onde vou exigir que respeitem os meus direitos, onde vou reclamar que a minha liberdade seja protegida. Se não há identidade nem geografia, a quem me dirijo? Ao mundo? Às Nações Unidas? Às Igrejas universais?
Construir a Europa, tal como se está fazendo, significa construir nada, construir uma abstracção de gestão e regulamentos, uma terra de ninguém, um não país e uma não sociedade. Sem geografia e sem identidade, as sociedades e os regimes políticos caminham para o totalitarismo burocrático e despótico, onde todos poderão ser iguais, mas ninguém tem personalidade. Onde ninguém é responsável, porque a responsabilidade exige nome.
Aideia Europa (isto é, uma das ideias Europa) é ainda uma das hipóteses mais interessantes do planeta. Mas, como todas as grandes ideias, é susceptível de degradação e perversão. A actual União, na sua forma presente, desde Maastricht e de Nice, com o acrescento do Tratado Constitucional e da Estratégia de Lisboa, corresponde a esse aviltamento.
A criação de uma entidade não democrática faz parte dessa corrupção política. A União não é democrática por impossibilidade. Não é. Não pode ser. Nem deve ser. Democráticos são os Estados, as sociedades e os Parlamentos. Assim como as instituições nacionais, regionais e locais. Fingir que a União é democrática, com aquele patético Parlamento e estas eleições, ou é inútil, ou é prejudicial, pois corrói as instituições nacionais democráticas e cria uma ideia falsa, um biombo de ilusões.
Da União sem comunidade nem cidadãos poderá resultar uma Europa despótica, feita de andróides maravilhosamente iguais. Ou então, terá como consequência a reacção de populismos irracionais e nacionalistas. Ambos serão capazes de demolir a União e destruir a liberdade.
Democráticos, na Europa, podem ser os Estados e os Parlamentos nacionais. O Parlamento Europeu serviu sobretudo para extinguir os Parlamentos nacionais e outras instituições. Ora, a democracia exige identidade e reconhecimento. Exige geografia e comunidade. De modo a que eu seja capaz de fazer valer os meus direitos como homem concreto, não apenas como ser humano abstracto.
Se a União continua o seu caminho, com o que sabemos hoje, os destinos poderão ser dois ou três. Primeiro: avivar a pulsão nacional, excitar todos os populismos identitários e despertar os reflexos condicionados nacionalistas. Poderá ser um fim com ruptura e desordem. Segundo: chegar a um beco sem saída, provocar a sua lenta destruição e estimular os sucessivos abandonos, o que significa o definhamento. Um término tristonho, o fim do prazo de validade. Terceiro: obrigar a repensar e exigir a refundação. Esta terceira hipótese poderá salvar a Europa, estimular a economia e dar novo sentido à democracia. Mas é sabido que são enormes as dificuldades em repensar, reformar e reorganizar o que quer que seja. Em geral, os dilemas fatais têm mais sorte: ou tudo ou nada, ou continuar ou morrer! Ora, morte é mesmo o grande perigo diante da União.
Repensar significaria dar nova vida às instituições nacionais, a começar pelos parlamentos. Implicaria retirar à União grande número das suas competências furtivamente transferidas nos últimos anos para entidades longínquas, a fazer pensar nos conselhos e nas comissões das utopias de ficção científica, a começar pelo Senado Galáctico do “Star Wars”. Exigiria afastar do horizonte constitucional europeu qualquer ideia de federação, de super Estado, de super governo ou de Estados Unidos da Europa. Obrigaria a trazer para os Estados nacionais as suas competências sociais, económicas, políticas, judiciais e culturais, privilegiando todos os caminhos da coordenação voluntária e da articulação de políticas entre Estados. Forçaria a Europa a adoptar regras de comportamento que consagrassem a flexibilidade, a diversidade cultural e a subsidiariedade, isto é, o princípio de que tudo deve ser decidido ao mais baixo nível possível, ou seja, mais próximo das instituições locais.
Público, 17.3.2019
1 comentário:
Caríssimo,
como sempre, obrigado pelos seus pensamentos e ideias. Não querendo contestar o actual défice democrático da U.E., se num próximo artigo voltar ao tema, peço-lhe que aborde a questão da coexistência das instituições locais com os mecanismos e instituições ao nível da União.
Um exemplo que vem à mente é o da Suíça, nominalmente uma confederação, mas na prática uma federação, que mantém fortíssimas instituições regionais e locais, dotadas de grande autonomia. Sei que a Suíça tem uma escala completamente diferente da da União e vive num estado de graça económico desde a segunda guerra mundial que talvez expliquem, ou sustentem, o sucesso do seu modelo.
Sendo certo que a União Europeia padece de problemas graves, nomeadamente ao nível da mais básica definição da sua identidade, custa-me a crer que a União Europeia tenha vindo a impor uma uniformidade criadora de "andróides maravilhosamente iguais", mais a mais comparando com gigantes como a China ou os EUA. E se também é certo que a emergência de populismos irracionais e nacionalistas é um dado adquirido, tal não é um fenómeno exclusivamente europeu e, consequentemente, atribuível meramente às falhas da União.
Deixo os melhores cumprimentos.
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