Por António Barreto
Por razões conhecidas, mas nem sempre claras, a saúde está em questão. As greves dos enfermeiros, com especial virulência por parte deles e uma áspera acidez na reacção do governo, agitam a opinião. Os protestos dos médicos também. A situação laboral na saúde pública está muito nervosa e perturbada. As crises da ADSE e dos hospitais privados sacudiram o recato e atemorizaram muita gente, sobretudo os funcionários públicos. Os ministérios da Saúde e das Finanças perderam a capacidade de administrar os custos e a despesa dos sistemas de saúde e são cúmplices do desperdício e da especulação. As dívidas da saúde continuam descontroladas. As sempre actuais parcerias público privadas continuam a dar que falar. As dificuldades de recrutamento de pessoal médico na “periferia” ou no “interior” continuam vigorosas. A falta de pessoal de enfermagem é endémica, especialmente depois da redução de horas de trabalho para os funcionários públicos, sem compensação de recrutamento. A emigração de enfermeiros para o estrangeiro é assunto inquietante. A transferência de médicos do sector público para o privado é tema de actualidade e de preocupação. Alguns sectores de cuidados, especialmente dos paliativos e dos continuados, dão claros sinais de insuficiência e de falta de capacidade. Uma hipotética nova lei de bases do Sistema Nacional de Saúde está em preparação e já provoca dissensões dentro dos partidos, designadamente no PS, que deveria estar politicamente mais bem preparado neste tema. As filas de espera para consulta, exame e cirurgia no Serviço Nacional de Saúde persistem ou aumentam em certos sectores. Aumenta o número de doentes deitados em macas nos corredores dos hospitais. Os pobres e os desfavorecidos continuam a ser tratados com desconforto e indiferença em muitos hospitais e centros de saúde.
Olhando para as tendências de médio prazo, deparamos facilmente com números e indicadores que não traduzem esta aparente colecção de crises. Os médicos por habitante aumentam de modo persistente. Os habitantes por médico são cada vez menos. Nas comparações europeias, essenciais para se perceber melhor um país, Portugal não se sai nada mal. Está entre os cinco primeiros em médicos por habitante. Entre os quatro melhores em habitantes por médico. Quanto aos gastos com a saúde, em percentagem do PIB, Portugal situa-se a meio da tabela europeia. E nos gastos por habitante, quase a meio. Nos últimos dois a três anos, segundo os dados do governo, foram contratados mais 1.363 médicos de família e especialistas e mais 3.413 enfermeiros. O sinal mais preocupante é o que diz respeito aos enfermeiros. O aumento, desde há dez ou vinte anos, é evidente, mas muito lento, quando relacionado com o número de doentes e de médicos. Na Europa, Portugal figura entre os quatro piores.
Portugal tem menos camas hospitalares por habitante do que a maioria dos países europeus, o que não é necessariamente um mal. Também tem um tempo médio de internamento abaixo da média da OCDE, o que não é um mal absoluto, depende das circunstâncias. No SNS, desde 2000, as urgências estão em diminuição acentuada, o que é bom. As consultas continuam elevadas e em acréscimo. Os médicos estão sempre em aumento e quase todos os anos. Os enfermeiros também, embora com menos regularidade. As consultas por 1000 habitantes têm aumentado sempre. As urgências e os internamentos têm diminuído, o que pode ser um bom sinal. A despesa do SNS por habitante aumentou bastante até 2005, ficou instável e irregular desde então, baixou significativamente em 2011 a 2013, recuperou ligeiramente desde então.
Entre as causas da crise actual, situa-se evidentemente o reduzido financiamento desde 2011 e a muito insuficiente recuperação desde 2015. Mas não chega. Há fenómenos políticos, humanos, organizativos e outros.
A saúde foi o sector que mais brilhou durante décadas. Superou todos os outros em eficiência e qualidade. Portou-se melhor do que a educação, a justiça, a segurança social, a cultura, os transportes e a habitação. A razão essencial deve-se à natureza do sector. A ciência e a técnica comandam. A ideologia está pouco presente. A informação circula e podem fazer-se comparações com o mundo inteiro. Há menos opiniões e menos intrigas. Na saúde, reina a ciência. Em todos os outros sectores, reinam a política e a ideologia. Uma aspirina é uma aspirina em qualquer parte do mundo. Uma apendicite é uma apendicite, sem que a política, a religião ou a cultura tenham uma ideia diferente. As modas pedagógicas, a qualidade do urbanismo, a idade da reforma ou o segredo de justiça prestam-se à polémica partidária e à opinião avulsa.
Além disso, que já não é pouco, os mais de vinte governos constitucionais respeitaram quase todos um princípio essencial: aos médicos, aos enfermeiros, aos técnicos e aos cientistas compete um papel crucial na definição das políticas, na orientação das actividades e na gestão dos recursos. Assim se conseguiu, sem intrusão ideológica, aumentar a vacinação, diminuir a mortalidade infantil e reduzir as doenças contagiosas além de muitos outros êxitos.
O que temos agora é miserável e contraria esta tradição do primado da ciência e da subalternidade da política. O anterior governo entendeu que era mais fácil cortar na saúde, dado que é o sector que mais gasta (eventualmente que mais desperdiça…). Para esse governo, os cortes foram o substituto de reformas e de eficiência. O actual não sentiu necessidade de aumentar consideravelmente os recursos, nem promover as reformas necessárias. A política intervém agora fortemente. O Bloco de Esquerda e o Partido Comunista entendem que é chegado o momento de liquidar a medicina privada e os hospitais particulares, velho sonho desses partidos. Ambos e parte do PS pensam que é a boa altura para acabar com a ADSE e nivelar tudo por baixo, em nome da igualdade. O PSD e o CDS pugnam pela medicina privada e não se importam com a promiscuidade funcional. O PS, o PSD e o CDS não têm coragem de pôr termo à acumulação de funções no sector público com o sector privado. Os três continuam a apreciar excessivamente as parcerias público privadas, fonte de amigos, de negócios e de adiamento de despesa. Os enfermeiros e os médicos não se sentem considerados com justiça diante dos benefícios atribuídos a outros grupos profissionais, os professores em particular.
Era bom não esquecer que as dificuldades actuais na saúde se devem sobretudo à ingerência política e ideológica.
Público, 24.3.2019
Sem comentários:
Enviar um comentário