Quase nunca falha. Quando um político, governante, deputado ou autarca, um dirigente da Administração Pública, um Magistrado, um empresário ou um agente da autoridade lhe disser, a propósito de casos de corrupção ou equiparados, que “tem a consciência tranquila”, é quase certo, mesmo quase, que tem qualquer coisa que não bate certo. Culpa, cumplicidade ou interesse, não se percebe bem. Mas ninguém acredita. “Ter a consciência tranquila” é uma das piores confissões involuntárias que se conhecem. A tranquilidade da consciência sucede a explicações públicas tardias e incompletas, de transparência discutível.
O universo da promiscuidade e da corrupção é tal que não se consegue saber onde começa e acaba, onde é frequente ou raro. Nas autorizações de construção? No futebol? Na venda de património do Estado? Na aquisição pelo Estado de grandes equipamentos, sistemas e material de guerra, etc.? Na aprovação de projectos (comboios, aeroporto, etc.) verdadeiras âncoras de actividades ilícitas?
Por outro lado, é verdade que as tradições se têm revelado maleáveis perante este universo das influências e do favoritismo. Colocar amigos, familiares, correligionários e companheiros parece fazer parte do comportamento político. Ocupar lugares na Administração, no sector público e empresarial, nas autarquias e nas empresas é actividade quotidiana. Receber pensões, bolsas, avenças e indemnizações de grandes montantes e enorme escala, em contas estranhas, numeradas ou com pseudónimo, algures no mundo, das Caraíbas ao Luxemburgo, da Ásia ao Próximo Oriente, parece possível. Tomar decisões “estruturais” sobre sectores da economia, empresas e autorizações a longo prazo, que condicionam e facilitam futuros investimentos, processa-se num “caldo de cultura” aparentemente “normal” e “legal”, que pouco tem de um e de outro. Receber presentes, de relógios de pulso e viagens de jacto privado a fundos e doações pode parecer aceitável. Receber comissões fictícias por favores e decisões a tomar, ainda no segredo dos deuses, não parece ser grave. Emprego para a filha e o neto, colocação para o cunhado e a sobrinha ou cargo para a mulher do amigo ou o tio da amiga parece já não chocar, a não ser que seja necessário tornar pública uma campanha de demolição pessoal.
Mas depois… há o clima mental contra os ricos, contra os proprietários, contra quem tem o que quer que seja, capital, acções ou quotas. Parece que só pode fazer política quem tenha a educação restrita, o salário mínimo, um emprego do Estado, uma função na autarquia ou um cargo no partido. Por outras palavras, quem trabalhe para o Estado ou quem ganhe muito pouco e não tenha bens nem propriedades. São ideias macabras que diminuem direitos, criam desigualdades e provocam ainda mais corrupção.
Há o ambiente da “ética republicana”, recurso retórico, mas que, na verdade, se traduz simplesmente na regra de fácil acepção: quem tem os votos, manda. Quem não tem os votos, obedece. Quem tem os votos, nomeia e decide. Quem não tem, cala e consente. Evidentemente, há uma variante: a regra republicana aplica-se bem quando somos “nós” quem tem os votos… Quando são “os outros”, a regra então é a de respeitar a oposição, no melhor espírito republicano. Esta “ética republicana”, associada a políticas moderadas e a alianças ponderadas, poderia servir de incentivo às reformas e à moralização democrática da sociedade. Não! Em vez disso, parece ser um estímulo ao favoritismo.
Em tantos casos conhecidos na história recente do nosso país, o problema parece estar mais do lado da explicação do que da acção. Muitas vezes, diante da verdade, os visados reagem mal, não reagem, negam, garantem a consciência tranquila, depois corrigem, logo a seguir rectificam, depois esclarecem, mais tarde clarificam, não sem antes acrescentar uns pormenores que ficaram na penumbra…. Passam dias, semanas e meses, com cenas indecorosas de acusações mais ou menos fabricadas e de defesas pusilânimes, sempre com o esclarecimento mínimo. A cada explicação enviesada, surge mais um pormenor que complica. O que parece uma falta, um esquecimento, cedo se torna num pecadilho, rapidamente transformado em pecado venial, pecado leve, antes de vir a ser pecado mortal e falta grave.
É difícil perceber a razão pela qual, após cinquenta anos de democracia e dezenas ou centenas de casos de corrupção, favoritismo, peculato ou prevaricação, um eleito, autarca, deputado ou governante, não trata, na véspera de tomada de posse, de vender o que tem e não deve ter, de criar um “blind trust” e de revelar tudo o que fez e tem e que possa ser considerado fonte de conflito de interesses. Não se entende a perversão moral e política que leva os eleitos a considerar que “a eles” nunca chegarão, que nunca nada de mal fizeram e que venais são os outros. Não se compreende a razão pela qual um eleito, um político, um alto funcionário não sente sequer o receio do abismo, o medo de ser apanhado, o risco de estar numa posição em que inimigos, adversários, invejosos e justiceiros tudo farão para os descobrir.
No campo das respostas a estes mistérios, há uma primeira, interessante, mas insuficiente. Na verdade, os visados estão de tal maneira cheios de si próprios, convencidos de que a pátria ou a autarquia não podem viver sem eles e certos de que tudo quanto pensam e fazem só pode ser para bem de todos, que não lhes ocorre sequer que o que fazem ou deixam de fazer não o seja em nome da virtude e para o bem de todos. Esta hipotética candura serve para telenovelas, mas não convence.
Talvez a resposta seja outra. O que explica a falta de instinto de sobrevivência e a ausência de medo de perda de honra é o sentimento de impunidade. A ideia de que a justiça nunca chega ou, quando chega, é tarde e mal. A sensação de que o processo judicial é de tal modo condicionado, vulnerável, burocrático e injusto, que a “sua vez” nunca chegará. A esperança de que haja sempre meios para convencer jornalistas e outros profissionais a orientar as denúncias e as explicações. A justiça falha neste universo de complacência. Falha o sistema e falham muitos dos seus magistrados e oficiais. Não necessariamente que sejam corruptos, mas não têm noção do que depende deles, do que de importante seria o seu contributo para uma sociedade mais justa. A promiscuidade entre política, Administração e Justiça é tão profunda que a complacência tem esse efeito, o de “normalizar” o que não o deveria ser.
.
Público, 1.3.2025