As atribuladas experiências dos governos provisórios, seis ao todo, de 1974 a 1976, não foram propriamente governos de aliança, coligação ou bloco central. Tratava-se bem mais de governos de salvação nacional, sob controlo do MFA (Movimento das Forças Armadas). Cometeram erros medonhos e deixaram-se, parte do seu tempo, dominar pelos comunistas e pelos militares revolucionários, mas salvaram a hipótese de democracia. Dentro dos próprios governos, partidos e militares combatiam-se mortalmente. Os militares do MFA mais moderados, em estreita associação com os socialistas, principalmente, mas também os sociais democratas, conseguiram dar conta do recado e preservar a democracia, o futuro Estado de direito e as liberdades.
Governo de Bloco Central, de coligação formal, só houve um, de 1983 a 1985, com Mário Soares como Primeiro Ministro e Mota Pinto vice-primeiro ministro. Dele muito mal se diz, a história trata-o como governo facilitador de negócios e da corrupção, vendido ao capitalismo internacional e fonte de partidarização da Administração Pública. Não é bem a história, mas sim os detractores dessa solução política que assim narram. Este governo prestou altos serviços ao país, salvou as finanças públicas, protegeu alguma estabilidade social, económica e política e deu os últimos preparativos para a entrada de Portugal na UE (então CEE). Com e sem erros, com e sem favoritismo, com e sem negocismo, este governo deu um enorme contributo para a democracia.
Portugal conheceu, nestes cinquenta anos, muitos outros governos, vinte e quatro. Há lá de tudo. Bons e maus. Curtos e longos. De maioria de um só partido, minoritários, de aliança ou coligação de direita, de conveniência de esquerda, de gestão e com ou sem maioria parlamentar. Não é possível retirar conclusões políticas. Nenhuma solução de governo pode ser classificada como a melhor, sendo que iguais soluções se prestam a diagnósticos muito negativos. Maioria de um só partido? Temos do melhor e do pior. Minoria? Do pior e do melhor. Corrupção e nepotismo? Há contributos das várias soluções maioritárias e minoritárias, monopartidárias ou de coligação. Eficiência e capacidade de realização? Também temos as duas soluções: nem sempre um só partido ou uma coligação. Em poucas palavras: cada tipo de governo já foi capaz de tudo, do pior e do melhor.
Podem imaginar-se mil razões e centenas de causas, mas a verdade é que, em Portugal, graças à particular visão que se tem da política, os governos de coligação gozam de má fama. Diz-se que são instáveis, corruptos, dados à mentira e ao favoritismo, ineficientes e instáveis. Quando se fala de “aliança” ou coligação do centro moderado, entre a esquerda e a direita, logo os punhais e as más línguas se preparam. Pior de tudo, é mesmo o “Bloco Central”, protagonizado pela coligação entre o PS e o PSD. Diz-se no espaço público, na imprensa, no Parlamento e nas mesas de má língua, que esse Bloco é o mais corrupto, inepto e ineficiente que se pode imaginar. Mesmo que se possa provar que não, que houve governos de um só partido, ou de maioria parlamentar, mil vezes mais corruptos, nada altera a má reputação do Bloco Central.
E, no entanto, já várias vezes se verificou que tinha sido a boa solução, tinha aumentado a força negocial portuguesa e poderia ter-se revelado mais estável do que as soluções postas em prática. Não é por acaso que vários países, com mais longa experiência democrática do que Portugal, diante de instabilidade ou de crises internas e externas, conhecem episódios de governos de aliança central ou equiparados. Com resultados discutíveis para cada um dos partidos, mas com efeitos positivos para o país, a sociedade e a economia.
Entre os argumentos mais frequentes que contrariam os adversários do Bloco Central, conta-se o do receio da extrema-direita (ou da extrema-esquerda, no passado). O enredo é simples. Os dois partidos do centro envolvem-se no governo. Quem fica de fora guarda para si a reserva de energia de protesto e o espaço político e eleitoral. Com o centro ocupado, rapidamente a extrema-direita cresce. Em Portugal, anos houve em que o pavor do comunismo funcionava assim. Agora, é o pânico diante do Chega. Em poucas palavras: se o centro se ocupa com o governo, o Chega rapidamente ameaçará a democracia, ganhará eleições e formará governo.
O argumento é sofisticado como uma batata. O Chega desenvolveu-se em períodos de separação entre os partidos do centro. O Chega aumentou em períodos de maioria de um só partido. O Chega cresceu de modo surpreendente, como nunca na história da democracia portuguesa, durante períodos de total separação dos partidos de centro. Os defensores destes pontos de vista inverteram a causalidade dos factos. O Chega cresceu por causa dos maus governos, da insatisfação da sociedade, do aumento das razões de queixa, da absoluta indiferença dos governos perante muitos sectores sociais em crise, da corrupção permanente, da ineficácia da justiça e da falta de resposta dos grandes partidos democráticos. O Chega e a extrema direita são filhos dos desastres da democracia, dos erros dos democráticos, da incapacidade de trabalho conjunto e sério dos partidos democráticos e da fragmentação dos partidos de centro. O Chega e a extrema direita crescem quando a democracia e os democratas falham. Como dizia Ignazio Silone, as extremas direitas não tomam as democracias de assalto, por fora. As democracias morrem por dentro e as extremas de protesto tomam conta dos destroços.
Não parece haver, hoje, em Portugal, crise suficiente para gritar “Aqui d’El Rei”! Nem “Ó da Guarda”! Mas o mundo está perigoso, a Europa em crise e a democracia em recuo. Os efeitos desta situação internacional far-se-ão sentir com tanta mais força quanto menos um país pequeno e pobre como Portugal esteja preparado. Vivemos actualmente um momento, não propriamente raro ou inédito, mas pouco frequente, que se caracteriza pelo facto de serem as crises políticas a desenvolver as crises sociais e económicas, não o contrário. Dia após dia, as falhas de Justiça e Segurança são ressentidas pela população. A instabilidade política e partidária destrói o interesse dos cidadãos pela política. A fragilidade das instituições e das empresas agrava as crises políticas. São estas, hoje, as grandes ameaças contra a paz social e o bem-estar colectivo. Não é absolutamente certo, mas a estabilidade política e governamental criada por uma coligação e um governo de centro é o grande trunfo pelas liberdades e pelo progresso.
Público, 22.3.2025
2 comentários:
Se o Bloco Central fosse um bloco de gente honesta existiria independentemente de qual deles estivesse no poder.
Assim, é preciso alimentar toda uma enorme matilha para obter o mesmo efeito.
“caracteriza pelo facto de serem as crises políticas a desenvolver as crises sociais e económicas” - chame-se o que quiser, isto é apenas o eclodir da soberba na partilha dos despojos resultantes da toma do poder.
Nos últimos 30 anos, excepção dos últimos 4 de Troika, não há outro projecto de governação que não a toma de poder para partilha de despojos. A novidade é uma soberba de tal ordem que coloca Portugal e os portugueses como colateral. Bem plasmado no aventureirismo iniciado na geringonça; o frete à extrema-esquerda como meio para tomar o poder.
O resultado é que, quando se governa contra as pessoas, por mais retórica ou maquinação da mídia, a dose amarga está ali ao virar da esquina!
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