Abril não é o mês mais cruel, como dizia T. S. Eliot. Bem pelo contrário, é o melhor. Pelo menos para nós. Também mistura memórias e desejos, como dizia o original. Mas não faz germinar lilases: aqui, Abril é o anúncio dos jacarandás. E dos cravos.
Começa amanhã o mês do meio centenário. Seguir-se-á um ano durante o qual tudo se dirá, da cruel verdade ao cómico dislate. Seminários, livros, programas de televisão, filmes, romarias, investigações e evocações, nada faltará. Se forem poucas as liturgias e raros os reflexos condicionados, talvez, dentro de um ano, saibamos mais sobre nós próprios.
Talvez sejamos capazes de perceber melhor por que razões a ditadura durou tanto tempo, por que motivos os portugueses deixaram que assim acontecesse. Ou antes, por que não foram capazes de melhor resistir e mais combater. Talvez sejamos capazes de saber melhor por que os portugueses ainda são mais desiguais, pobres, analfabetos e resignados do que outros na Europa. E pode também ser que venham mais argumentos que nos permitam compreender melhor as razões pelas quais, no grande continente que é a Europa, este povo pequeno, pobre e marginal resistiu, sobreviveu e insistiu na sua independência.
Se o meio centenário de Abril não for simplesmente, mesmo em nome da liberdade, a consagração dos actuais interesses, o respeito pela vassalagem e um festival de vingança e de intolerância, talvez as festas valham a pena. Abril não merece louvaminhas, muito menos represálias e desforras. Abril merece liberdade, tolerância e inteligência.
Bela maneira de comemorar Abril! Apesar da instabilidade e da desordem institucional, mau grado a fragilidade gerada pelos resultados eleitorais, a democracia resiste e funciona! Geneticamente marcado à esquerda, o 25 de Abril, cinquenta anos depois, sobrevive com saúde a vitórias das direitas, ao acréscimo das direitas radicais e à vulnerabilidade das soluções governamentais adoptadas. Não há melhor maneira de comemorar Abril do que esta de demonstrar que a democracia vive com a liberdade, com a revolução social e com o nacionalismo radical. Assim como com a integração europeia, a intervenção do Estado e o capitalismo liberal.
No ano do meio centenário de democracia, um governo de maioria absoluta e com condições de estabilidade, isto é, o governo do PS foi derrubado e substituído por um governo sem maioria e com instabilidade garantida. Nesse mesmo ano, três parlamentos, o nacional, o madeirense e o açoriano, foram dissolvidos antes dos prazos previstos. O desperdício e a barafunda institucional ditam há muito a sua lei. Nem a democracia conseguiu mudar isso. Talvez seja uma consolação: os portugueses continuam a ser o que sempre foram.
A abstenção atingiu os 40% e já foi pior. Não é a mais alta da história, longe disso. Mas está entre o grupo das mais elevadas destes cinquenta anos. A abstenção é evidentemente desinteresse. Sinal dos tempos. Fraqueza de uma sociedade. Mas também advertência aos políticos e à política. Neste capítulo, Portugal não anda muito pior do que a Europa. Nem melhor.
Que belo modo de festejar o 25 de Abril! Toma posse um governo minoritário, enfraquecido e vulnerável como poucos antes dele. Mais parece um governo provisório dos idos de 1975. A solução encontrada para a presidência do Parlamento é engenhosa e imaginativa, não se pode negar. E revela civilidade de comportamentos. Mas não se pode esconder que seja também débil e de improviso. Se fosse a solução adoptada em caso de “bloco central” ou de qualquer coligação adulta e formal, muito bem. Sendo assim, como foi, é gesso em perna de pau!
Há mais factos a referir, neste ano de comemoração. A direita somada, moderada ou radical, em conjunto, atingiu uma das mais altas proporções da história: mais de 53%.... Nunca a direita radical, a direita de protesto, a direita nacionalista ou mais vulgarmente a extrema-direita, tiveram tantos votos com agora.
O mais antigo partido português, o PCP, com quatro deputados, quase desapareceu do Parlamento, onde já teve 44 eleitos. Após 103 anos de existência, um dos últimos partidos comunistas do mundo prepara-se para desfalecer. Curiosamente, ainda hoje é o partido mais temido por todos os outros, democráticos ou não, de esquerda ou de direita. E comporta-se como tal.
O partido mais antigo e mais claramente de direita democrática, o mais parecido que temos com a democracia cristã europeia, o CDS, quase desapareceu novamente e, se está no Parlamento, com dois deputados, é graças ao banco do pendura.
Todos os partidos ditos esquerdistas e revolucionários do 25 de Abril, criados um pouco antes ou logo a seguir, despareceram ou nunca chegaram ao Parlamento: LCI, UDP, MRPP, PCP (ml), POUS, OCMLP, PSR, além de outros. Nunca os partidos mais marcadamente marxistas, com ou sem deputados eleitos, somaram tão poucos votos como agora…
Este ano de comemoração vai ser de viva controvérsia. Não vão faltar os argumentos radicais. Progresso e miséria vão ser frequentemente referidos. Riqueza e pobreza não faltarão ao debate. Desordem e melhoramento serão facciosamente defendidos. Ainda bem. Pode ser que resulte, em fim de contas, mais conhecimento de nós próprios e menos idolatria.
Vamos ficar a saber que nunca o Serviço Nacional de Saúde esteve tão em crise como agora. Nunca os mais pobres foram tão mal servidos. Como saberemos ainda que nunca, como agora, tantos processos gigantescos de políticos e ex-políticos, de bancos, empresas financeiras e de serviços, de transportes públicos, de construção e de telecomunicações duraram tanto tempo, estiveram tantos anos em investigação e inquérito, à espera… Nunca como agora houve tanta desordem na imigração, tanta miséria na imigração ilegal e tanta desordem nas fronteiras. Ao mesmo tempo que, tal como nos anos 1960, os valores da emigração de portugueses para o estrangeiro atingem picos inimagináveis.
Mas também vamos ficar a saber que os últimos anos têm sido de rigor financeiro e de excedente público, de poupança e de diminuição da dívida. Que os rendimentos pessoais e familiares têm melhorado. Que a pobreza tem diminuído. Que, apesar das escandalosas falhas, nunca houve tanta educação, tanta instrução e tanta formação como agora.
Abril é o melhor mês. Mistura memórias e desejos. Cravos e jacarandás.
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Público, 30.3.2024
1 comentário:
Um regime que recusou o debate caiu em 74.
Um regime que mais que tudo debate, debate-se entre o comemorar-lhe a queda e o lamentar-se do quanto podia fazer e não faz.
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