Parece que, ao contrário dos restantes, o dia de hoje é de reflexão. Serve para pensar no que foi dito e ouvido. E no que nunca foi dito. Os candidatos têm assim um dia de descanso, para fazer o que não fizeram antes: reflectir. Não servirá para grande coisa, dado que se vota no dia seguinte e já não há comícios ou acções. Os eleitores também têm o privilégio de um dia de reflexão. É inútil para o eleitorado em geral, dado que não se pode tornar público, nem partilhar com os outros os resultados dessa reflexão. Mas é um pensamento útil para nós próprios, no recato da nossa vida privada. Ajuda a esclarecer, quando é necessário. Ajuda a decidir, quando ainda há hesitação. Mesmo quando tudo leva a crer que a maior parte dos eleitores já decidiu. Ainda bem. Na verdade, o dia de reflexão parece ter sido forjado para os candidatos terem tempo de descansar, limpar espingardas, preparar as declarações de vitória ou de derrota, visitar os locais onde se vai carpir ou festejar. E preparar o que se vai dizer, à noite, na televisão, onde se joga a democracia.
O melhor da eleição é, evidentemente, o dia propriamente dito. Com bom ou mau tempo, cidadãos atravessam as ruas, cruzam-se nos passeios, esperam a sua vez nas filas diante das urnas e conversam. O ruído da cidade é menor do que habitualmente, os carros são mais pacíficos e as buzinas postas em descanso. Mas ouvem-se as vozes dos vizinhos, dos pais a chamar pelos filhos, dos amigos que trocam impressões sobre os resultados de “logo à noite”. Nos locais de voto, um ou outro figurão aproxima-se para votar, logo perseguido pelas televisões. Temos direito a declarações absolutamente inócuas, sempre cheias de esperança. Logo a paz se instala. Conforme os sítios, as classes e as idades, uns juntam-se para almoçar, outros para jantar. Uns reúnem-se em casa, outros em restaurantes. Logo à noite, entre o futebol, a Eurovisão, os Óscares, as telenovelas e outros desportos, as famílias dispersam-se em paz. Ficam os viciados em política que, a sós ou com amigos, passam metade da noite a ouvir comentários e ver sondagens. Alguns fazem apostas. Outros dirigem-se às televisões como se estas fossem pessoas vivas. Há uma velha crença, não destituída de razão, que diz que a verdadeira vitória eleitoral é a que se obtém na televisão durante a noite. Há evidente exagero. Mas também é verdade. São raríssimos os que já disseram: “perdemos”! São multidão os que dizem “ganhámos”! E todos dizem que fizeram o seu melhor. Já houve tempos em que a vigília durava até quase de manhã. Agora, em poucas horas sabe-se o essencial.
Neste dia, com raras excepções, mesmo os adversários parecem respeitar-se. Até os rivais se saúdam. Será que se pensa que o dever foi cumprido? Ou que o direito foi exercitado? Pode imaginar-se que vingue um espírito desportivo, isto é, “vai haver quem ganhe e quem perca”? Por outras palavras, o dia de eleição, o dia de ida às urnas parece ser o mais doce e civilizado dia que a democracia oferece. Parece ser também aquele em que toda a gente sente prazer em pertencer e sente orgulho em decidir. A dignidade do cidadão está ali, naquele gesto com que deita o papel na urna. A utilidade do voto reside ali, na decisão livre e sem vigilância, no sentimento de que se tem algum poder, que se tem algo para dizer.
Estranhamente, ou talvez não, todas as atenções se dirigem para o “voto útil”. Tanto dos candidatos e partidos, como dos comentadores, dos jornalistas e dos analistas. Os partidos em primeiro lugar. Cada partido considera que o único voto útil é em si próprio. Para evitar os desmandos. Para impedir os exageros dos outros. Para liquidar as políticas dos adversários, fontes de todos os males. Uns partidos invocam o voto útil, em si próprios, para evitar a direita ou a extrema-direita. Outros, para evitar as coligações de esquerdistas e comunistas. Mas sempre voto útil. Também há os que garantem que o voto útil, em si, é o voto que obriga os outros a fazerem o que eles querem. É o argumento próprio dos pequenos partidos que afirmam que o voto útil é o que lhes permitirá obrigar os grandes a fazer as suas políticas. Já os grandes partidos consideram que votar nos pequenos partidos é inútil E que o voto útil é neles. Só eles podem garantir estabilidade.
Em segundo lugar, os analistas e comentadores. Descobriram eles que, neste misterioso “voto útil”, se encontrava uma gazua teórica para explicar quase tudo o que não percebem. Verdade é que, entre jornalistas, comentadores e analistas, se inventou esta categoria: os eleitores do “voto útil”. Por outras palavras: o “voto útil” é aquele que não tem razão de ser doutrinária, nem emocional, muito menos cultural ou de classe. Haveria um grande grupo de pessoas, ninguém sabe quantas, que não vota por convicção ou sentimento de pertença. Vota num, porque quer evitar o outro. Porque quer derrotar um inimigo, não porque queira um amigo. Quer derrotar quem não gosta, ou quem tem poder a mais, não procura que ganhe aquele de quem gosta.
O candidato apela ao voto útil porque simplesmente não sabe que mais dizer. Tem receio de afirmar que os eleitores devem trair as suas convicções ou os seus partidos tradicionais. Não ficam à vontade se lhes disserem que o voto não corresponde a crenças, muito menos doutrina. Inventaram o voto útil. O comentador justifica tudo, analisa tudo, explica tudo. Ou quase. O que não consegue explicar, como sejam as transferências de votos estranhas, as perdas de convicção ou o desgosto nos anteriores favoritos, tudo isso passa para a grande categoria de voto útil. Os candidatos não se dão conta do atestado de imbecilidade que estão a passar aos eleitores que consideram úteis. Os comentadores não percebem que estão a esconder a sua ignorância e que isso se vê.
Votar tem alguma utilidade? Tem! Nem que seja em branco. Ou nulo. Qualquer voto é bom, qualquer voto é útil. Votar é usar a liberdade, como aquelas baterias que duram se são usadas. Votar útil é votar livremente. Votar útil é escolher com autonomia. Pode votar-se na direita ou na esquerda, no grande ou no pequeno partido, no autoritário ou no democrata. No machista ou no feminista. No multicultural ou no integracionista. No branco ou no negro. No rico ou no pobre. Qualquer destes votos é útil, porque a utilidade do voto de cada um é ser o meio de afirmar a sua liberdade, de fundar a sua dignidade, de ser cidadão e de escolher.
Se há uns votos que são “úteis”, o que são os outros? Inúteis?
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Público, 9.3.2024
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