O que está a correr mal? E porquê? Num país que ainda há pouco tempo gozava de estabilidade, cooperação institucional, algum crescimento económico, contas certas e paz social, de repente, tudo se estragou. Nas ruas, ouvem-se ruídos e rumores de manifestação. Nos serviços públicos, há espera e ineficiência. Na justiça, há atraso. Na política, há corrupção. Na sociedade, há desigualdade. No espaço público, há descontentamento. Que se passa? São as elites? Será o povo? É a crise mundial? Será a guerra?
Para explicar o mundo, os acontecimentos, a história e a política, não há nada melhor do que uma boa teoria da conspiração. Basta imaginação, não são necessárias provas. Uma boa argumentação vale todas as demonstrações. Quanto mais estapafúrdia, mais crível é. Se forem referidos poderes ocultos, religiosos, maçónicos, financeiros, mafiosos e feiticeiros, melhor ainda. Se houver militares, a verosimilhança é enorme. Se ninguém tiver pensado nisso, a força de uma explicação pela conspiração é quase absoluta.
Uma boa conspiração poupa a inteligência e dispensa o estudo dos factos e das causas. A conspiração da situação actual é, para muitos, simples e clara. O Presidente quis liquidar o governo socialista. O governo e o seu partido pretenderam liquidar o Presidente. Maçonaria e católicos entraram na dança. Os barões do PSD zangaram-se mais uma vez. Os minoritários moderados do PS querem já macular os primeiros passos dos novos dirigentes. Procuradores e juízes digladiam-se, mas, em conjunto, atiram-se aos políticos. Os 31 crimes de Sócrates passaram a 6 e são agora 22, o que nos permite avaliar o rigor e a validade das acusações.
Os casos actuais, as gémeas brasileiras, as estantes do IKEA, as casas dos políticos em vários locais do país, as declarações de rendimentos e de residência oficial, as contas no estrangeiro, os dinheiros sem origem certa, tudo tem explicação em razões mais ou menos ocultas, em misteriosas personagens sinistras. Parece haver um “Deus ex Machina” que regula e promove o mal. Ou um conspirador a tecer as teias do diabo? Nestes tempos, a teoria da conspiração tem adeptos. Claro que não é verdade. Mas ocorre a tantos espíritos!
Com excepção das “contas certas” e da taxa de crescimento, tudo parece estar a correr mal. Parece cada vez mais que “há alguém por trás disto”. Tudo conjugado com as guerras e as crises “lá fora”. “Não é por acaso” é uma das frases mais vezes repetidas.
Além da pura loucura e de uma concepção mesquinha da história, a principal causa de uma boa teoria da conspiração reside na ignorância. Quando não se conhecem as causas de um qualquer fenómeno, quando não se percebe o curso dos acontecimentos ou quando se desconfia sem saber porquê, esta explicação, ou antes, esta insinuação vale uma verdade.
Sucedem-se as crises. Algumas como nunca ou quase nunca se viu. Bloqueamento das estradas. Polícias em permanente manifestação. Professores em falta. Alunos sem aulas. Serviços públicos em deslasse. Esperas inadmissíveis nos hospitais. Avolumar de casos de corrupção. Incapacidade para julgar os caos difíceis de poderosos e políticos. Impotência da justiça. Em seis meses, quatro eleições, três das quais antecipadas por razão de crise. Políticos detidos, presos, em recurso, arguidos, processados e suspeitos: há para todos os gostos como nunca aconteceu no nosso país. Episódios inéditos de má literatura política, como os casos do computador do assessor do ministro, o das gémeas e o das estantes com dinheiro.
Há razões mais profundas que explicam as crises actuais? Há seguramente. Para além da incerteza internacional e das guerras, assim como do mau ambiente económico europeu, há a incapacidade nacional de criar riqueza de modo consistente. A dificuldade em formar gerações de técnicos, cientistas, gestores e artistas de elevado nível. A decrescente capacidade técnica dos governos e da Administração Pública. A tentação para fazer o que é fácil e dá nas vistas, em detrimento do que faz falta. O especial talento para dar e distribuir, em detrimento de criar e poupar. A impossibilidade, por parte dos empresários privados e das instituições públicas, de criar emprego qualificado em grandes proporções. A inaptidão para suster a imigração e reduzir a emigração. A persistência, entre as elites e no seio do povo, da “cunha”, da corrupção e da trafulhice. E outras, certamente. A verdade é que todas estas explicações não explicam a coincidência no tempo das crises actuais. Esta resulta evidentemente dos efeitos de arrasto (umas puxam pelas outras) e sobretudo da falta de talento, de sabedoria, de disciplina e de orientação política para cuidar dos serviços públicos, para gerir e organizar, para liderar e manter a disciplina.
Parece fácil dizer o que precede? Talvez. Mas pense-se apenas no paradoxo dos últimos tempos. A saúde financeira é razoável. As condições económicas nacionais e internacionais, apesar das dificuldades do mundo, não eram más de todo. Havia uma maioria absoluta que podia garantir a estabilidade. Nas regiões autónomas, as coligações podiam facilmente ser sólidas. As relações entre órgãos de soberania eram excelentes. O apoio do Presidente da República ao governo e ao Parlamento era manifesto. A simpatia do governo pelo Presidente da República era sem par. As classes sociais estavam em paz. Os patrões não se sentiam mal. Os sindicatos estavam sossegados. Tudo isto ruiu. Tudo se desfez em pouco tempo. Tratou-se do maior desperdício político das últimas décadas.
Ao lado das causas profundas, há evidentemente as causas imediatas. E estas residem em grande parte na deficiente gestão do serviço público, das instituições e dos grandes serviços. São estas deficiências que explicam a simultaneidade das crises no Serviço Nacional de Saúde, nas escolas, na Justiça e nos tribunais, nas polícias e forças de segurança, na agricultura, na habitação e nos transportes públicos. Raramente, talvez nunca se tenha visto uma simultaneidade como esta na história recente de Portugal.
A democracia portuguesa comemora os 50 anos do 25 de Abril, os 50 anos das eleições livres e os 50 anos da Constituição, com uma desordem institucional jamais vista. Festejam-se com quatro eleições. Três dissoluções de parlamentos e assembleias legislativas. Três governos demitidos. Prisão ou acusação de vários políticos de elevada importância. Milhares de polícias na rua a manifestar. Órgãos de soberania à bulha.
Onde estão as causas? Chuva não é certamente. É gente, com certeza.
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Público, 3.2.2024
1 comentário:
Não há novidade alguma.
Sempre a maioria foi ignara e, se instada a julgar, sempre lhe puxa o pé prá chinela, a boca pró soalheiro.
Sempre a manutenção de referências éticas, personalizáveis em gente com poder e identificáveis em gente comum, foi travão ao reconhecimento de uma geral depravação.
A massiva informação disponível recreia-se em exibir a depravação, não busca exaltar referências éticas, e se alguma personaliza logo lhe acresce uma qualquer dúvida de autenticidade.
Ao relativismo assanhado chamam rigor.
De uma moralidade para reger este mundo e ganhar outro, há uns 50 anos, foi proclamado o saque e distribuição como desígnio de Estado para que este mundo fosse ganho; toda a vantagem adquirida via distribuição sempre proposta como eticamente impoluta.
Para quem não fosse tido por envolvido em tal tarefa, o seu comportamento sempre é presumido como justificado por vantagem dele derivado, e por tal sempre duvidoso.
As teorias conspirativas são a corruptela deste desarme da ética, que esta, se sempre presume que de toda a acção resulte vantagem, sempre a julga.
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