sábado, 26 de março de 2022

Grande Angular - Uma pequenina luz bruxuleante…

 Brilhando incerta, mas brilhando. Luz que não ilumina, mas brilha! É um bom momento para pedir emprestado este verso a Jorge de Sena. Que luz é esta? O que seria? O princípio de humanidade? O sentido de solidariedade? A ideia de decência? A noção de civilização? Nestes tempos incertos, de gestos horrorosos e de feitos medonhos, essa pequena luz é a da liberdade, a que nos vai distinguir durante décadas, a que nos vai entusiasmar, a que nos permite sobreviver e ter esperança, a que vai brilhar…

O ano de 2022 será inesquecível. As gerações futuras saberão que este foi um ano especial. Um ano de esperança e de pavor. Foi o fim exacto de uma era, de uma época. Até então, pensava-se que o mundo caminhava lentamente para um universo de cooperação. Com enormes dificuldades e negras surpresas, mas a ideia de progresso parecia estar presente. Verificou-se que não. Foi neste ano que morreram esperanças, nasceram medos, se forjaram novas energias e se prepararam novos combates que se julgava desnecessários.

Na Europa, praticamente sem guerra há mais de setenta anos, tinha-se uma enorme esperança no entendimento continental e, para além disso, na convergência transcontinental. Não obstante a Chechénia e a Geórgia, mau grado a Sérvia, a Bósnia, o Kosovo e a Herzegovina, apesar disso tudo, procurava-se o equilíbrio e a coexistência continentais. Além disso, sem esquecer a Síria, o Iraque e o Afeganistão, a Europa tecia redes sólidas e aparentemente duráveis com a América, a África e a Ásia. A paz parecia instalar-se. A paz tinha uma oportunidade.

Libertada do comunismo, tal como uma mão cheia de países satélites, a Rússia parecia querer aprender os passos e os caminhos da liberdade. Apesar da corrupção, a níveis quase desconhecidos na história da humanidade, a Rússia dava sinais de que era possível criar laços permanentes de entendimento e colaboração. Os vínculos económicos, dupla e reciprocamente vantajosos, com os países ocidentais, criavam alicerces em que poderia confiar-se.

Longe, no Oriente, a China tinha-se transformado numa das maiores potências económicas e políticas mundiais. Apesar de firme ditadura política, a liberdade económica e a vida capitalista e empresarial prometiam liberdades, competição e tolerância. Mas ficavam desmentidos todos quantos pensavam que a liberdade económica exigia a liberdade política. A China conseguiu o milagre dos opostos, capitalismo e comunismo na mesma nação, no mesmo Estado. Na Austrália, a democracia fazia parte da génese continental. Outros países, no Oriente, sugeriam a ideia liberal.

Mesmo em África, o mais desolado e explorado de todos os continentes, surgiam indicações de que talvez fosse possível, um dia, a prazo, mas um dia certamente, o Estado de direito ter uma hipótese e a paz ter uma possibilidade. 

Na América Latina, apesar de desmandos populistas e de excentricidades ditatoriais, viviam-se décadas de relativa paz, de estabilidade e de duração inédita de regimes e governos.

O Próximo e o Médio Oriente eram as áreas mais problemáticas, com nações enredadas nos seus conflitos seculares, ricas de recursos, eternamente avessas à democracia, envolvidas em lutas com e por causa de potencias estrangeiras: eram as regiões que constituíam a zona mais frágil e a fonte de maior inquietação do mundo.

A globalização, sobretudo económica, comercial, financeira, mas também turística, levava a melhor por todos os cantos do mundo. Apesar da sua força destruidora, nem sempre bem-vinda, a globalização abria portas fechadas e criava oportunidades onde antes só havia rivalidades e fricção. Mais do que nunca antes, os adversários eram obrigados a chegar a acordo sobre comércio e economia.

O mundo progredia economicamente como nunca se tinha visto antes. Centenas de milhões de novos empregos, criados sobretudo na Ásia, eram a tradução de uma nova redistribuição económica.

As guerras religiosas ou de religião pareciam estar contidas e dominadas pela política e pela economia.

Ainda longe de se ter encontrado um estado satisfatório, algumas chagas indeléveis da sociedade, como a desigualdade de género, o racismo e a xenofobia, tinham conhecido décadas de melhoria e esclarecimento. Em contrapartida, a democracia parecia estar em recuo em quase todos os continentes. 

Novos problemas, de grande acuidade e urgência, tinham surgido diante de todos e eram objecto das maiores preocupações: a conservação e a renovação de recursos naturais e as alterações climáticas. Eram questões tanto ou mais graves do que as ameaças de guerra entre os Estados, mas não tinham a imediata configuração da violência e do massacre.

Neste mundo, os mais ingénuos sonhavam com certeza com a Paz perpétua e outros devaneios. Mas, com realismo, mesmo com cepticismo, era possível imaginar um mundo de aproximação, de convergência e de cooperação.

O ano de 2022 vai marcar a diferença. Ainda é cedo para conhecer o futuro imediato, muito menos os anos a seguir. Mas já sabemos que o mundo ficou diferente. Para pior. A globalização foi interrompida. A disseminação dos direitos humanos travada. A liberdade de comércio suspendida. E renasceu a ameaça nuclear, química e biológica.

A Rússia está a levar a cabo uma das mais sujas e cruéis guerras que se pode imaginar. Mesmo em situação de guerra declarada, a destruição de cidades e a agressão contra populações civis é um dos mais baixos pontos a que a humanidade chegou. Nas circunstâncias da Ucrânia, sem estado de guerra, é uma verdadeira selvajaria. A Rússia reintroduziu a força e a guerra nas relações entre Estados europeus. 

É verdade que os principais contributos da Rússia para a humanidade, nestas últimas décadas, com comunismo ou com o regime excêntrico que o substituiu, foram de guerra, de uso e abuso da força, de censura, de prisão e de liquidação dos adversários. Tanto dentro do seu território, entre os seus povos, como com os países vizinhos ou com Estados clientes em África, no Próximo Oriente e na Ásia. A Rússia acaba de alterar, por muitos anos, o clima político e económico do mundo, assim liquidando o quadro geral de paz que gradualmente se construía.

Ainda não se conhece o resultado da guerra. Mas já sabemos que a paz, a democracia e a justiça foram atacadas. Já sabemos que o progresso económico e social foi interrompido.

O cepticismo é obrigatório e de regra. Sobra-nos a “pequenina luz bruxuleante, trémula e muda, que vacila, mas brilha”! A liberdade. A ideia de liberdade. O amor pela liberdade.

Público, 26.3.2022

1 comentário:

Jose disse...

Sobra uma lição que o conforto de crescimento económico vem fazendo esquecer: a corrupção é ameaça maior à liberdade.
A corrupção é a negação da lei, sem lei não há ordem, sem ordem não há liberdade.

O chefe de um Estado corrupto, formado no serviço e adoração do poder, dizem ter estudado a história em busca de fundamento para acrescer poder sem cuidar de leis, negando a ordem internacional.

A tolerância à corrupção está por todo lado, e a mesquinha, a dos pequenos poderes, está por cá configurada em praga endémica.
A odem mundial constrói-se somando...