Muitos democratas têm medo do Chega. Têm medo de ver este partido aumentar a sua popularidade e ganhar importância. Têm medo do fascismo e do populismo. Receio de que o Chega utilize sentimentos comuns de insatisfação perante realidades bem conhecidas. Medo de que o Chega utilize o descontentamento de muitos para dar corpo e voz às suas elucubrações demagógicas.
Os democratas sabem que há corrupção, favoritismo e desigualdades a mais. Mas entendem que eles e só eles podem denunciar tais fenómenos. E não querem que “outros” o façam.
O medo é mesmo mau conselheiro. Em vez de combater os populistas com argumentos, melhores políticas e bom comportamento moral, em vez dessas armas, os democratas recorrem ao insulto, às tentativas de exclusão do espaço público e à discriminação. Quem toma esta iniciativa são radicais de esquerda, mas os democratas aderem a essa retórica destituída de razão.
Os democratas sabem que o Chega (tal como os seus similares na Europa) invoca argumentos verdadeiros (corrupção, nepotismo, desigualdades, burocracia…) para defender as suas ideias fantasmagóricas. Ou tão só para seduzir pessoas que sintam os mesmos problemas. Mas os democratas não admitem que sejam outros a reclamar.
Os democratas escondem os erros de que são responsáveis. Ou entendem que podem ser denunciados, desde que por eles. O que mais custa aos democratas não é que os populistas sejam demagogos. O que lhes custa é que por vezes denunciam factos reais.
A democracia é o regime de todos. Mesmo dos não democratas. Estes não podem ser excluídos, marginalizados ou proibidos a não ser por crime ou violação de lei. Mas a demagogia não é crime. A xenofobia não é crime. O nacionalismo não é crime. Por isso o Chega e afins devem ser derrotados nas eleições e no debate, não através de procedimentos anti-democráticos. Devem ser democraticamente derrotados, por mais excêntricas que sejam as suas ideias. Perante o recurso à violência, ao crime ou a ilegalidades, devem ser castigados pela lei e pela democracia.
Há pessoas que entendem que as democracias são os regimes exclusivos dos democratas. E que os não democratas ou anti-democratas devem ser excluídos! Mas não se conhece nenhum meio democrático de o fazer. A não ser, uma vez mais, através do combate político, das eleições e do argumento parlamentar. Nas democracias não vivem só democratas encartados. Vivem também antidemocratas. Da esquerda ou da direita.
A democracia é o regime de toda a gente. Os democratas podem defender-se. A si e ao regime das liberdades. Para isso, devem utilizar todos os métodos democráticos, o debate, as eleições e a justiça… Todos menos a expulsão, a prisão, a proibição e a censura.
As democracias não têm fronteiras. Não é admissível que os democratas estabeleçam fronteiras para além das quais não são aceites certos cidadãos, partidos ou movimentos. Evidentemente, ninguém é obrigado a entender-se com os não democratas e os antidemocratas. Talvez não sejam boas companhias. Mas não podem ser expulsos das instituições. A não ser que não respeitem a lei.
O Chega tem o direito de apresentar um candidato à vice-presidência da Assembleia da República. Esse direito está protegido pela Constituição e pela lei. Qualquer partido tem o direito de apoiar ou reprovar essa candidatura. Mas não há certeza da eleição. A opinião de um partido não implica que os deputados a sigam. A eleição é secreta e individual. Se a maioria dos deputados considerar que um certo candidato não serve para o cargo, o seu direito é o de votar contra. Se a maioria dos deputados não aceita um candidato, é lá com eles. E as direcções dos partidos, podem tentar influenciar, mas não impor disciplina numa votação secreta.
Aliás, várias vezes candidatos aos cargos da Assembleia ou a funções em que a Assembleia se faz representar não foram eleitos à primeira volta ou mesmo nunca foram eleitos. O voto secreto e individual, mesmo numa Assembleia dominada pelas direcções partidárias, ainda vale alguma coisa.
Parece por outro lado que o Chega deseja alterar profundamente a Constituição. Os democratas consideram antidemocrático esse desígnio. É uma patetice. Há partidos que votaram contra a Constituição e as suas revisões. Há deputados que chegaram a sugerir que a Constituição fosse substituída por outra. E há centenas de deputados que votaram sete revisões, duas das quais alteraram os equilíbrios políticos do país. Para tudo isto, foi necessário querer alterar a Constituição, sem que daí viesse mal ao mundo, a não ser os eternos comunistas que alertavam contra os “golpes constitucionais”.
O êxito, aliás muito relativo, do Chega tem de ser entendido no quadro das crises que as democracias atravessam. Estas estão na origem de uma deriva populista, não democrática ou antidemocrática, de esquerda ou de direita. No mundo inteiro, a democracia é contestada pelas aspirações insatisfeitas, pela desigualdade crescente, pela sociedade digital, pelos valores dominantes do efémero e pelo produto mercantil. Os sistemas democráticos não encontram soluções para os problemas que levantam e não estão à altura das forças que desencadeiam. Os sistemas democráticos fizeram explodir as aspirações e os desejos, que depois não conseguem satisfazer. É possível que, um dia, estas insuficiências sejam ultrapassadas. Talvez. Mas, para já, vivemos em crise.
A democracia parece ter deixado de ser uma aspiração e um objectivo de luta e de vida. Para muitos, a democracia transformou-se num obstáculo, seja à riqueza e à ganância, seja ao poder. Os milionários e os políticos poderosos querem a democracia quando esta lhes dá meios. O novo tribalismo de que tantos falam faz com que as sociedades ocidentais estejam divididas como raramente na história. Nuns casos, países divididos ao meio. Noutros, fragmentados por autênticas guerras civis locais, como dizia Enzensberger.
Os partidos radicais de direita e de esquerda nunca fizeram a democracia. Destroem-na, com certeza, mas não a constroem. Fazem parte da democracia, mas não a consolidam. Antes pelo contrário. Mas a democracia é o regime de todos eles. A democracia é o regime de poucas dezenas de países e não o é de mais de uma centena. Em África e na Ásia e até por vezes na América Latina e na Europa, o regime prevalecente não é a democracia. Em Portugal, também não era. Talvez agora possa começar a ser gradualmente…
Público, 12.2.2022
1 comentário:
A cerca totalitária sempre se diz democrática.
Conhecemo-la bem desde 1975 e a novilíngua do corretês é a sua continuação.
O Chega seguramente agradece vê-la claramente exposta.
Aos votantes do Chega nada mais os conforta do que vê-lo não absorvido por um tal Sistema.
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