sábado, 5 de fevereiro de 2022

Grande Angular - O que quiser

O PSD perdeu, não muito, de acordo com os números, mas muitíssimo politicamente. Vai demorar anos a recompor-se. Sobretudo se o PS governar bem. O mais provável é que haja metamorfose. Até porque a inexorável derrota do CDS, assim como as vitórias do Chega e dos Liberais, abriram a questão da reorganização das direitas. A direita está fragmentada e anémica, à procura de rumo. Sem base social, descrente, o centro-direita está incapaz de iniciativa. Quanto à direita radical, nacionalista e reaccionária, é menos ameaçadora do que se temia. E parece estar pronta a ser integrada no sistema.

Os partidos mais radicais da esquerda, o PCP e o Bloco, sem esquecer o PAN e Os Verdes, estão derrotados e aparentemente sem remissão. Pode haver transfiguração, mas, no essencial, estes partidos pertencem ao passado.

As facções radicais do PS ficaram desarmadas. O eleitorado condenou as aspirações a mais esquerda e aprovou uma política moderada e independente.

Aquilo a que se chama vulgarmente a co-habitação, isto é, a cooperação honesta entre o Presidente da República e o Governo, parece estar assegurada. Nenhum dos dois tem interesse em hostilizar o outro. Só não colaboram se não quiserem. Esta cooperação não depende de grupos de interesses, nem está condicionada por intrigas. Nas actuais circunstâncias, só depende dos dois e do seu sentido de dever e de serviço público.

As organizações de classe, federações, sindicatos e associações já perceberam que têm todo o interesse em usufruir da estabilidade, em proporcionar crescimento à economia e em abrir as portas a novos esforços. O percurso que levou o país de Sócrates à bancarrota, da crise financeira à Troika e da coligação das esquerdas à pandemia deixou as instituições e as empresas exangues. É evidente que todos devem defender os seus interesses, ainda bem. Mas todos sabem que uma nova turbulência destruirá o nervo do país.

A reputação internacional de Portugal, do governo e do Primeiro-ministro está em níveis elevados. Na União, na OCDE, no FMI, na NATO e na CPLP, o país e os seus dirigentes são geralmente bem acolhidos. O que também é verdade nos continentes americano e asiático. Nas últimas décadas, nem sempre foi assim. É bom e útil aproveitar o clima.

Há sinais de recuperação económica e de melhorias na exportação, no desemprego e no consumo. E talvez no turismo, a breve prazo. As perspectivas de apoio financeiro europeu são, como se sabe, excelentes, apesar do perigo que representa mais esta hipótese de financiar o país com recursos externos. Globalmente, a conjuntura económica e financeira, nacional e internacional, não é desfavorável, desde que, evidentemente, seja aproveitada com as boas políticas e com sinais de seriedade nas contas e nos projectos.

Nem tudo é possível. E é quase tudo difícil. Na economia, na sociedade e nas políticas públicas. O volume colossal de endividamento é impeditivo de muitos projectos e condiciona as políticas. A fraqueza dos recursos financeiros nacionais limita o campo do possível. O envelhecimento da população constitui factor condicionante ameaçador. A desigualdade social é factor de desmoralização. O desolador estado em que se encontra a justiça destrói as instituições e o espaço público. Tudo isso é verdade. Mas as dificuldades são menores quando se sabe que as condições políticas são favoráveis. Quando se conhece a disposição de grande parte do eleitorado. E quando é alta a probabilidade de paz institucional.

O Primeiro-ministro pode ter a certeza de que, por um tempo, o vento sopra a favor e as ameaças de tempestade são irrisórias. Os partidos que perderam (PCP, Bloco e PAN) já anunciaram o reforço das lutas de massas, o regresso à rua e a contestação de classe. Só que as massas, a rua e as classes não estão dispostas a isso. Um dia, talvez, caso o governo revele tibieza e desonestidade. Mas, para já, os eleitores e os contribuintes, assim como os profissionais, os funcionários e os pensionistas, querem paz e desenvolvimento.

Parece uma ironia. Muitas vezes, um político quer mas não pode. Está convicto do que quer, das suas boas políticas e dos objectivos, mas não tem condições. Não tem votos nem aliados, a luta de classes impede e as circunstâncias internacionais são desfavoráveis. Perante isto, ou muda de intenções ou abandona. Com António Costa, com o seu governo, acontece o contrário. Pode fazer o que quer, pode fazer quase tudo o que deve, pode levar a cabo um enorme plano de reformas e pode pôr em prática as políticas públicas mais necessárias. Pode. Mas não sabemos se quer.

Se quiser encaminhar os esforços para promover o investimento, para atrair financiamentos externos, para entusiasmar a empresa privada e para fomentar o crescimento, sobretudo o das exportações, pode fazê-lo.

Se estiver disposto a repensar as condições de coexistência da saúde pública e da privada, e da educação pública e da privada, conseguirá reunir as condições necessárias para reformar estes sectores em situação tão frágil.

Se quiser, poderá combater a desigualdade com o crescimento, a produtividade, o investimento, o controlo da imigração e a política fiscal. E se quiser também, poderá repensar o Estado social, com menos burocracia e com especial cuidado para a pobreza.

Se quiser manter altas as expectativas e elevada a atenção que lhe dedicam, o Primeiro-ministro terá de finalmente levar a cabo uma longa e paciente demolição das condições de corrupção e nepotismo e terá de reduzir à ínfima espécie a nomeação de correligionários. Raramente se viveu uma situação como esta, tão propícia à moralização da vida pública. O facto de o partido lhe dever mais do que ele ao partido faz com que tenha as mãos livres para a boa causa da isenção e da decência na Administração Pública. Se quiser, evidentemente.

O Primeiro-ministro sabe que a distância aos interesses organizados e aos grupos de pressão lhe permitirá, se quiser, encontrar a sabedoria suficiente para tentar resolver os “bicos de obra” que já envergonham o país: o aeroporto de Lisboa, a rede ferroviária, a CP e a TAP.

António Costa sabe que muito do que deve e pode fazer para acudir aos problemas actuais entra em contradição com muito que fez anteriormente, nestes últimos quinze anos. Se ele quiser vencer, perceberá depressa que tem de se dissociar e distanciar dos seus próprios erros. Como ele soube tão bem fazer com o legado de Sócrates e de Passos Coelho. É o que ele terá de fazer com o seu próprio legado. Se quiser.

Público, 05.2.2022

2 comentários:

bono disse...

Mas não quer

Jose disse...

«Como ele soube tão bem fazer com o legado de Sócrates e de Passos Coelho.»

Aí reside todo o mal possível de esperar, pois sempre este advém da irresponsabilidade e da mentira.