O acordo a que os europeus chegaram esta semana agrada a toda a gente. Aos defensores do Estado de Direito, mas também aos que descaradamente violam alguns princípios, direitos e garantias. Aos países que formam uma maioria estável europeia, mas também aos que procuram excepções, como sejam os do Sul, os do Leste, os “Frugais” e os “Despesistas”. Aos que detêm o poder do livro sagrado dos valores europeus, mas também aos que criam regimes de excepção fundamentados em traços nacionais e na tradição. Mais um fim feliz para esta União, prodígio florentino de arranjos e rendilhados. É possível que assim consigamos viver mais um tempo, anos talvez, mas sabemos que se trata de novo adiamento.
No âmago dos problemas, estão, evidentemente, a questão nacional, a autonomia política dos Estados e a interpretação do ideal democrático que cada país ou família política defende. Nas principais crises europeias dos últimos anos, esteve sempre presente a questão nacional. Na Grã-Bretanha, a independência, como fundamento ou pretexto, está no centro do Brexit. Assim como com as Irlandas e a Escócia. Na Grécia, a nação foi factor de crise iminente. Na França e na Itália, os poderes nacionais estão no centro, real ou retórico, dos conflitos. Agora, na Hungria e na Polónia, os seus dirigentes tão pouco democratas recorrem ao argumento nacional, para contrariar as tendências dominantes da União. No Norte da Itália e na Catalunha, conhecem-se os contornos nacionais e regionais do problema.
Os mais importantes países europeus, assim como a União no seu todo, não souberam tratar deste tema convenientemente. E cada vez que julgam que está resolvido, regressa sempre. A galope! O êxito da direita e dos radicais franceses, italianos, austríacos, alemães e outros ficou sempre ligado à retórica nacional. E entre os radicais de esquerda, comunistas ou não, nunca falta o patriotismo: “cá em casa mandamos nós…”
Actualmente, esta espécie de patriotismo americano de Trump, que nos aflige há quatro anos, foi um bálsamo para as direitas europeias e os “nacionais” de qualquer bordo. Trump ajudou tudo e todos. Ajudou Boris Johnson e o Brexit. Ajuda a Irlanda se esta estiver contra a Europa. Ajudou os iliberais. Ajudou Orban e Morawiecki. Como apoiou Erdogan e Putin. Ajudou os que querem partir a União e enfraquecer a Europa.
Verdade é que a Europa e a UE andam a esticar há vários anos. O establishment europeu limita-se a condenar os patriotas e os nacionalistas, negando o problema. Foi o que fez com os italianos e os gregos. Com alguns espanhóis. Com os húngaros e os polacos. Com os franceses da Frente Nacional. O que é certo é que tudo quanto é antidemocrático na Europa aproveitou a oportunidade para fazer prova de vida.
É bem provável que já não seja possível classificar de plenamente democráticos os regimes em vigor na Hungria e na Polónia. Se admitirmos que a democracia e a liberdade podem ter graus, esses dois países estão certamente em défice. Os sistemas eleitorais, a liberdade de expressão e os sistemas judiciais, pelo menos, revelam já feridas indiscutíveis. Apesar de a União Europeia não ter uma medida nem um medidor, é razoável que os Estados membros e a União possam advertir esses países, dizer-lhes que passaram as marcas e ameaçá-los de represálias. Podem mesmo suspender os seus estatutos ou até expulsá-los. Tudo isso é grave, mas nada disso é surpreendente. A UE tem uma estrutura mais ou menos democrática, mas apoia-se ou reúne países democráticos. A democracia é a sua inspiração. Quem não a respeita vai-se embora, sai ou é expulso.
A imposição de regras de direito, de normas políticas e de procedimentos democráticos aceites pelos membros da UE, em países que têm uma versão própria da democracia, que tolhem a justiça, que condicionam a magistratura independente, que limitam as liberdades de informação e de expressão, é legítima e bem-vinda, mas totalmente absurda! A UE não pode vender nem impor democracia, a não ser por medidas de suspensão e expulsão. A Europa tem experiência suficiente para saber que a imposição de regras democráticas à força, com dinheiro ou exércitos, é uma receita desastrosa. Em África, na América Latina e na Ásia, nunca resultou.
Cada vez que os nossos aliados americanos, alemães ou ingleses têm uma qualquer reticência relativamente à política portuguesa e à nossa concepção de justiça, logo se ouvem reclamações de dignidade nacional e de independência. Protestamos contra a imposição de qualquer regra vinda do exterior, mesmo da União, mas, se nos faz jeito impor regras a outros, nomeadamente para receber fundos, não nos importamos com a ideia de exportar ou impor a democracia.
A UE e os seus países mais fortes não podem pretender trocar liberdades por dinheiro, democracia por fundos. As violações à liberdade ou à democracia pagam-se politicamente, não financeiramente. Acertem-se os sistemas de votação e revejam-se as condições de permanência, mas não se tente impor o direito e a democracia à força, com dinheiro.
É bom que os portugueses percebam que, se e quando chegar a nossa vez, teremos perdido a legitimidade para invocar a “dignidade nacional”. Se os países da Europa do Norte ou os países ricos da União ou qualquer outro grupo de países entende pôr em causa o valor do Estado de Direito em Portugal a tarefa é fácil. Os atrasos da justiça, especialmente em casos de corrupção; a prática impune de violação do segredo de justiça; a desigualdade de tratamento, pelo sistema judicial, dos pobres e das mulheres; o primado do Estado em qualquer processo entre os cidadãos e a Administração Pública; o mais desbragado machismo em casos de violência doméstica; a distorção, sempre desfavorável ao cidadão, do processo judicial fiscal; a existência de cláusulas secretas em alguns contratos de parceria público privada; as regalias e os privilégios de que gozam os arguidos muito ricos; estes factos chegam para pôr em causa o Estado de direito em Portugal e seriam suficientes para interromper os fluxos de fundos da União!
Ao mesmo tempo que a União deu prova de resposta concertada, no caso da pandemia, esta crise veio mostrar a fragilidade da construção europeia. Ora, mais uma vez se comprova que a Europa foi longe de mais. A União foi longe de mais. Recuar é difícil, mas vai ser necessário. Como é evidente, compete aos povos polaco e húngaro, assim como aos vizinhos do grupo dito de Visegrado e aos bálticos, guardar e enriquecer a democracia local. Como fizeram os americanos com o seu ameaçador presidente.
Público, 12.12.2020
2 comentários:
Caro António Barreto. A UE é um falhanço total. Existem demasiadas diferenças, seja a nível económico,social,cultural ou até mesmo de índole geográfica para uma união exigida. As inconsistências estão bem à vista e a UE, criada e pensada para resolver esses problemas, ou pelo menos minimizá-los, nunca o vai conseguir fazer. O problema essencial, na minha opinião, nada tem a ver com défice democrático de determinado(s) país(es), tem a ver muito naturalmente com a forma diferente em que os diversos Estados se revêm nas políticas contraditórias de uma União que não consegue unir nada nem ninguém. Como pensam que tudo se resolve com dinheiro, como muito bem frisou, os problemas e as contradições continuarão. As necessidades dos países mais fortes e dos menos fortes da União são diferentes, muito diferentes, e querer aplicar a mesma bitola e a mesma pauta interpretativa a todos é um erro colossal. Posso estar enganado, mas parece-me que esta União não tem futuro e se vivermos anos suficientes ainda veremos o seu desmembramento. Os meus respeitosos cumprimentos.
Caro António Barreto. O país é um falhanço total. Existem demasiadas diferenças, seja a nível económico, social, cultural ou até mesmo de índole geográfica para uma união exigida. As inconsistências estão bem à vista e a UE, criada e pensada para resolver esses problemas, ou pelo menos minimizá-los, nunca o vai conseguir fazer.
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