A moção aprovada há dias pelo Parlamento Europeu e apenas contrariada, ao que parece, por simpatizantes do comunismo e do fascismo, condena um e outro, quase os equipara, de ambos diz que massacraram milhões, o que é verdade, mas cuja equiparação é absolutamente inútil e patética. Sabe-se hoje que, sem contar as vítimas da guerra, o Nazismo alemão causou a morte de dez milhões de pessoas e o comunismo russo perto de vinte. Fazer um “ranking” destas mortandades é ridículo. Estabelecer qual deles é pior é obtuso. Ambos são hediondos, ponto final. Equipará-los é inculto. São muito diferentes nos seus propósitos, mas são ambos medonhos nos meios e nos resultados. Declarar que o capitalismo é muito pior, pois desde há trezentos anos já morreram, nas fábricas e na guerra, com a indústria e a escravatura, muitas centenas de milhões de pessoas, é ignorante. E também não nos ajuda a compreender o mundo, mas tão só a odiá-lo e a descrer da humanidade. Anunciar que são iguais é tão idiota quanto afirmar que são radicalmente diferentes.
Julgar e condenar ou absolver a história parece inútil. Mas não é. Há sempre uma “agenda oculta” e um propósito implícito. Aqueles que, hoje, em Portugal e no mundo, lutam para culpar os homens, os brancos, os adultos, os ocidentais, os cristãos, os ricos, os heterossexuais, os democratas, os capitalistas e os militares estão evidentemente a tentar criar uma ortodoxia, uma cultura predominante e, sobretudo, a construir um “credo” que permita condenar e proibir, assim como limitar a liberdade de expressão. Fazem-no com a mesma intolerância e o mesmo preconceito com que outros, há bem pouco tempo, desprezavam os negros, consideravam as mulheres inferiores, garantiam que os jovens eram estúpidos, que os pobres eram culpados da sua condição, que os homossexuais eram doentes, que os chineses cheiravam mal, que os árabes matavam e que os ciganos roubavam.
Julgar a história, condenar o passado e condicionar o pensamento: eis três objectivos dos virtuosos do presente. A discussão sobre o alegado Museu Salazar foi, à nossa escala, um tema que permitiu exibir os mesmos reflexos condicionados. As polémicas à volta do Museu dos Descobrimentos tiveram o mesmo sentido. Curiosamente, nestes dois casos, tal como no resto do mundo e para outras matérias, os intolerantes estão a levar a melhor.
Decretar que não houve massacre de Arménios perpetrado por Turcos, proibir que se diga que o Holocausto não foi assim tão mau como dizem, culpar os Judeus pela morte de Jesus Cristo, garantir que não houve na Polónia massacres de comunistas e de Judeus e negar que tenha existido o Gulag na União Soviética são gestos prepotentes, mas muito em voga. Proibir o estudo de Darwin revela estupidez, mas é o que se faz em várias latitudes. Substituir o estudo, o debate público e a liberdade de expressão pelo decreto-lei é atitude hoje louvada por muitos, sempre com intuito oportunista de estabelecimento de um poder autoritário.
Ao mesmo tempo que os decretos que definem o que foi e não foi na história, surgiu também, nas últimas décadas, o imperativo do pedido de perdão. Pessoas, povos, Estados, políticos e Igrejas pedem perdão. Pedem perdão por todos os males e por factos de há dez, cem ou mil anos. Reinterpretam a história, inventam culpados, identificam os maus e as vítimas e pedem perdão a quem lhes convém.
Papas já pediram perdão aos Judeus. Alemães também, mas por outras razões. Muitos europeus pediram perdão aos árabes, aos muçulmanos e aos negros pelo colonialismo e pela escravatura. Americanos pediram perdão aos Índios. Espanhóis pediram perdão aos Incas, aos Azetecas e aos Maias. Portugueses ainda não pediram perdão aos Africanos, aos Indianos e aos Índios, mas vai acontecer em breve. Já houve Portugueses que pediram perdão aos Judeus. Franceses pedem perdão aos africanos, aos árabes e aos vietnamitas. Há Ingleses que se preparam para pedir perdão ao mundo inteiro, dos Índios aos Indianos, dos Negros aos Muçulmanos.
Já se pede perdão aos negros pela escravatura, aos índios pela conquista, aos indianos pelas descobertas, aos chineses pelas guerras, aos mouros pelas expulsões e aos árabes pelos massacres. E também está nas cartas que se vai pedir perdão aos republicanos pela monarquia e aos socialistas e comunistas pelo Estado Novo.
Por que diabo hei-de pedir perdão aos escravos, aos Índios, aos Indianos, aos Egípcios, aos Judeus e aos Mouros? É que se as culpas não forem minhas, são objectivas e históricas. Se não foste tu, foram os teus avós. Ou tetravós. Se não foste tu, foram os cristãos. Ou os brancos. Ou os Portugueses. Ou os europeus. Ou quem quer que seja. Mas de uma coisa podes estar seguro: és culpado, deves ter remorsos, tens de pedir perdão e, eventualmente, pagar reparações, conceder privilégios, bater no peito, deixar passar à frente e recolher-te à tua insignificância dado que alguém, algures e em qualquer tempo, maltratou, roubou, oprimiu e torturou. Evidentemente, as culpas têm momentos históricos e objectos precisos. Hoje, por exemplo, pedir-se-á perdão aos negros africanos e aos muçulmanos (desde que não sejam ricos…), mas não aos retornados, aos repatriados, aos frades, aos monges, aos aristocratas e aos proprietários.
Decretar o bem e o mal, condenar a história com cem ou mil anos, culpar por lei acontecimentos históricos e pedir perdão por factos longínquos: é estúpido, mas é moda. Vai ser difícil afastar esta praga: estabelecida uma ortodoxia do pensamento, dura sempre anos. Pena é que o pluralismo e a liberdade fiquem a perder. Mas ganha a moda que é a de pedir perdão pelo que outros fizeram. Pedir perdão pelo que antepassados, não importa quão remotos, fizeram ou beneficiaram com o mal e o sofrimento de outros. Pedir perdão a escravos que serviram mestres, a negros usados pelos brancos, a soldados que obedeceram a oficiais, a trabalhadores explorados por patrões, a mulheres batidas pelos homens, a jovens frustrados por adultos, a judeus queimados por arianos, a árabes humilhados pelos cristãos, a alunos dominados por professores…
Aos espíritos intolerantes não interessa saber que a culpa, o castigo e o perdão se dirigem aos indivíduos, por vezes associações ou grupos, nunca povos ou etnias.
Fernão Lopes garante que Álvaro Pais disse ao Mestre de Avis que uma das receitas para se ser rei e exercer o poder consistia em “perdoar a quem nunca te fez mal”! Esta agora é uma nova versão: “peço perdão a quem nunca fiz mal”!
Público, 27.10.2019
1 comentário:
já não há assim tantos índios no brasil a quem pedir perdão fizemos um bom trabalho nesse sentido
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