Um novo Parlamento merece ser saudado! Deve receber votos de uma longa vida, mais ou menos quatro anos. Mas também se lhe pode recordar as suas responsabilidades. E exprimir a esperança que este Parlamento dê passos para aumentar a sua autonomia. Até hoje, esta instituição vive sobretudo dependente dos partidos e do governo e muito pouco da sua identidade, que já poderia ter construído nestas quatro décadas. O “Parlamento arena” sempre levou a melhor sobre a instituição com carácter próprio. A disciplina de voto, o papel das comissões de inquérito e a falta de tradição de actividade de cooperação interpartidária são factores que atenuam a dignidade parlamentar. Até o papel individual do deputado traduz essa diminuição: um deputado é um membro de um grupo parlamentar, não é em primeiro lugar um membro da instituição. A sua liberdade individual e a sua dignidade dependem mais do partido do que do Parlamento. Será que vamos conhecer alguns progressos nos próximos tempos? O grande aumento do número de partidos representados pode criar condições para o reforço da instituição.
Os deputados eleitos já deviam estar sentados nas suas cadeiras. Uma semana depois da eleição, o Parlamento já devia estar a funcionar. Se faltassem uns deputados, os da emigração, por exemplo, a Assembleia poderia reunir e organizar-se. Os deputados da emigração já deviam estar eleitos logo no dia da eleição. É este um dos mistérios da vida democrática portuguesa: o Parlamento não reúne por direito próprio, fica à espera das mesas, das comissões, dos tribunais, do Ministério da Administração Interna, da Comissão Nacional de Eleições, de recursos e Deus sabe de que mais!
Compreende-se que a formação de um governo, especialmente quando se trata de coligações, acordos e alianças, demore dias ou semanas. Tem-se visto como o processo negocial pode durar meses. Na Espanha, na Itália ou na Bélgica são conhecidos casos extraordinários, até mais de um ano. Mas as negociações são uma coisa, os procedimentos burocráticos são outra. Em Portugal, nada justifica os prazos e as chicanas existentes, a não ser a submissão da democracia a regras que lhe são exteriores.
Fez muito bem o Presidente da República em acelerar tudo, fazer mais depressa o que dele depende (além do Primeiro-ministro e de Rosa Mota, dez partidos recebidos num só dia, é obra!) e tentar estimular os outros a fazer o mesmo. Fez muito bem o Primeiro-ministro em despachar as primeiras reuniões entre partidos. É bem possível que as negociações demorem tempo, mas o ritmo de urgência está criado. Pode até ser necessário que o Parlamento assuma muitas das suas funções antes de o novo governo estar em exercício. Daí não vem mal ao mundo, desde que o mais importante esteja a funcionar. Um Parlamento não pode estar condicionado pelos outros órgãos de soberania, muito menos pela minúcia jurídica processual obsessiva.
O novo Parlamento bem pode organizar uma sessão de homenagem à obra de Diogo Freitas do Amaral. Liderou, com Amaro da Costa, o trânsito da direita portuguesa para a democracia. O seu contributo para a Constituição, mesmo votando contra, foi valioso. Também o foi para a elaboração de outras leis que marcam o nascimento da democracia, como a Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas. Esta lei, aprovada em 1982, juntou-se à revisão da Constituição do mesmo ano. A natureza democrática do Estado português foi consolidada nessa altura. Se quiserem designar Freitas do Amaral como um dos quatro “pais da democracia”, com Mário Soares, Francisco Sá Carneiro e Ramalho Eanes, há razões para o fazer.
Outra obra que poderia ocupar o Parlamento, desde já, seria a de acabar com a vedação do Palácio de São Bento. Na verdade, o Parlamento está cercado por um estendal de barreiras à sua volta! Umas móveis e outras amarradas. Para proteger o Parlamento de manifestantes, alguém entendeu ser ideia brilhante proteger a instituição da liberdade e da democracia! Vai daí, cercou-a! É esteticamente horroroso. Politicamente desprezível. Presta-se a todos os sarcasmos, incluindo o de que o Parlamento receia o povo!
Até hoje, as ameaças físicas contra o Parlamento não foram muitas. Umas fotografias dos anos 1920 mostram as polícias a fechar as portas de São Bento! Também se conhecem imagens de Abril de 1974, quando militares do MFA tomam posição à volta do Palácio, o que aliás nem sequer era necessário, dado que ali não se passava nada. Depois existem fotografias do famoso cerco à Assembleia Constituinte de 1975: camionistas pesados, sindicalistas da CGTP igualmente pesados, comunistas, esquerdistas e alguns militares mais ou menos à civil mantiveram o cerco de muitas horas.
Durante as décadas de democracia que vivemos depois desse cerco, várias vezes se viram manifestações diante do Parlamento, umas mais atrevidas do que outras, umas com polícias a proteger, outras nem sequer. Mas em geral o ambiente era pesado, sem ser ameaçador. Até que um dia, uma manifestação de polícias ultrapassou os limites. Vários agentes, treinados para o efeito, fizeram um simulacro de invasão, para mostrar à população e ao poder político que eles entrariam se quisessem. E pararam à porta, depois de terem derrubado as vedações e afastado os piquetes de polícia destacados. Desde então, o Parlamento ficou protegido de modo permanente. Haja ou não manifestação, comício ou concerto de protesto, as vedações metálicas estão ali para ficar. Presas umas às outras, disfarçam um ar provisório, mas a verdade é simples: o Parlamento está protegido dos manifestantes. A coisa é esteticamente desastrada. Do ponto de vista da qualidade do urbano, um pavor. Mas pior do que tudo, do ponto de vista político, moral e cultural está ali um horror! O Parlamento exibe fragilidade e medo!
Nestes dias excepcionais de comemoração da democracia, uma alusão vem a propósito. O Tribunal Constitucional considerou inconstitucionais várias cláusulas de uma lei que conferia aos serviços de informações excepcionais poderes de vigilância e escuta dos cidadãos, nas redes de telecomunicação e na Internet. Uma declaração de voto de um juiz, aliás vice-presidente, João Pedro Caupers, devolve-nos algum orgulho! Diz o Juiz, exprimindo-se como toda a gente, em bom português simples e claro: “E não me venham dizer que a intromissão dos serviços de informações (…) é indispensável para que o Estado possa defender a minha segurança. Já ouvi isso, noutros tempos e em outros contextos. Se tivesse de escolher entre defender a minha segurança ou proteger a minha liberdade (…) optaria, sem hesitar, pela liberdade. Não me encerrem numa masmorra – ou numa torre de vidro – para me proteger. Como alguém disse, viver é sempre perigoso”.
Público, 13 de Outubro de 2019
1 comentário:
exibe fragilidade e medo
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