Como é sabido, as razões pelas quais um cidadão vota e escolhe os seus eleitos são muito variadas. Instinto de classe, cor da camisola ou rotina atávica são algumas delas. Também há quem se queira vingar e castigar quem está no poder. Ou quem queira prejudicar e votar contra. Há quem vote na esperança de ter emprego. Como há quem escolha pela cara, pelo nome e pela personalidade. E certamente outras razões. Mas podemos ter a certeza de que, em tempos de democracia de massas, de privilégio da imagem, de promoção de produto e de propaganda desenfreada, o conteúdo das políticas é um dos menores critérios de escolha. Muitas vezes, o nome é o mais importante. Vota-se em alguém, pessoa ou partido, porque é alguém que queremos que governe. E não há mal nisso.
Os debates públicos ou televisivos estão praticamente mortos, perde-se dinheiro e tempo, os políticos estão ali com mais cuidados e receios do que com intenções e ideias. Todos querem mais ou menos tudo e o seu contrário. Naquelas dezenas de minutos automáticas e cronometradas, sem conteúdo nem improviso, com pouca sinceridade e muito fingimento, os chefes marcam pontos se não fizerem asneira. Mais do que a democracia, a honra e a competência, são as agências de comunicação que tratam das eleições e das campanhas.
Estas próximas eleições são muito interessantes. E decisivas. Como todas as outras… Os candidatos pensam que se trata de eleições essenciais. Os cidadãos que votam, cerca de metade, também. A outra metade nem se preocupa. Na verdade, são eleições que vão ditar o destino das alianças das esquerdas e das direitas. Assim como a capacidade que o nosso país tem para enfrentar graves problemas imediatos da União Europeia, da democracia, da aliança ocidental, do endividamento e do crescimento económico. Mas, pela sua urgência e pelas suas consequências na vida dos cidadãos, a grande questão actual é a dos serviços públicos. De todos os serviços e de todo o atendimento dos cidadãos pelas estruturas da Administração.
Os serviços públicos têm vindo, há quase uma década, a decair de modo sustentado. Como sempre, nestas coisas, as causas são várias. A dívida do Estado contribuiu de modo decisivo. Demagogia política e corrupção ajudaram. A atracção de profissionais pelo estrangeiro ou pelos sectores privados aumentou de modo significativo. A primeira fase da política de austeridade, com assistência internacional, provocou enorme desgaste. A segunda fase de austeridade, já sem assistência e com algum crescimento, não deixou de criar dificuldades e sobretudo de impedir a recuperação da qualidade e da eficiência. A incompetência de alguns dirigentes políticos e mesmo de altos funcionários de certas administrações ajudou ao declínio. As medidas de reversão parcial de rendimentos poderão ter aliviado a situação económica de bom número de pessoas, mas desviou recursos. A redução dos horários de trabalho de algumas categorias de funcionários, em particular de médicos e enfermeiros, criou uma situação de real carência, não compensada pelo recrutamento necessário de uns milhares de funcionários.
Ao lado de êxitos e melhoramentos indiscutíveis, assim como de bastante sorte com a conjuntura europeia, o presente governo não conseguiu melhorar a qualidade e a eficiência dos serviços públicos. Perdeu muito tempo a queixar-se do governo anterior, mas não conseguiu fazer melhor. Interessou-se pela política pura, com resultados positivos, mas não teve engenho nem competência para acudir aos serviços públicos, à saúde, à educação, à segurança social, ao atendimento público em serviços notariais e de registo e a toda uma longa série de serviços para os quais as filas de espera são hoje uma realidade generalizada.
Em número, comprimento e duração crescentes, as filas de espera constituem supostamente um mecanismo igualitário, isto é, colocam todas as pessoas em condições iguais perante o serviço ou a instituição. Sabemos que é uma expectativa errada. As filas de espera prejudicam toda a gente, muito especialmente quem trabalha, quem vive longe, quem tem pouca instrução, quem não conhece “pessoas” e quem não sabe os circuitos. Mais ainda: hoje, as posições em fila de espera são negócios. Compram-se e vendem-se senhas para obtenção de números. Quem pode pagar a secretários, empregados, criadas, dependentes em geral e desempregados em particular consegue evidentemente lugar na fila mais depressa e em melhores condições. Como se sabe, as filas de espera para a maior parte dos serviços públicos são hoje frequentadas desde muito cedo, às primeiras horas da madrugada, seja por quem precisa, seja por quem vai buscar senhas para vender. Mais do que da ineficiência, as filas de espera são hoje o pior retrato da desigualdade.
Pode pensar-se que existem, socialmente, questões muito mais importantes. Mas é difícil ver quais. As dificuldades dos serviços públicos e a ineficácia do atendimento ao público são actualmente factores de desigualdade social e de opressão do mais fraco. Ter acesso rápido, pronto e eficiente aos serviços de saúde, de educação, de segurança social, de licenciamento, de identidade e outros é um critério de qualidade da democracia. Ser atendido de modo simples e humano pelos serviços públicos significa muitas vezes ter meios de defesa da sua dignidade.
O problema é que governos e partidos têm geralmente preferência por tratar do acesso e do atendimento de grupos profissionais concretos. Ou de empresas e instituições com poderes e importância. Mais negativas ainda são as políticas e as medidas orientadas para resolver problemas de quem já tem força ou privilégios. Um governo que responde a sindicatos e confederações, em detrimento das populações, é um governo que, por razões eleitorais ou de interesses, prefere as corporações, em prejuízo dos cidadãos. Um governo que deixa deteriorar os serviços públicos, o atendimento e a resposta a todos os cidadãos está a aumentar a desigualdade social e a agravar a condição do mais fraco. Um governo que se interessa mais e ouve melhor os funcionários e a Administração e que não resiste a quem se manifesta está a contribuir para a desigualdade social. Um governo que escolhe as políticas de classe e de corporações lesa os cidadãos, sobretudo os mais fracos. Um governo que privilegia quem vocifera prejudica quem sofre.
Público, 8.9.2019
1 comentário:
num país onde a maioria não vota, seria mais interessante saber porque não vota
Enviar um comentário