segunda-feira, 4 de junho de 2012

Estudar em tempos de crise (*)

TENHO GRANDE prazer e honra em estar convosco neste dia tão especial para os antigos estudantes e futuros profissionais. Em muitos países, este dia é considerado um dos mais importantes da vida de cada um. Desejo-vos felicidades e um longo percurso profissional e pessoal!

Não vou ao ponto de considerar a juventude ou o estudo como período de quarentena ou de estágio, mas há algo disso. Quarentena, como disse um historiador francês, ao falar daquele período em que se não está cá nem lá... Ou estágio, como dizem os vinicultores, quando deixam os seus vinhos a preparar... Mesmo sabendo que os estudantes trabalham cada vez mais e que os trabalhadores são obrigados a estudar, a verdade é que a partir de agora a vida para muitos de vós vai mudar. A vossa participação na vida colectiva adquire hoje novo sentido. A responsabilidade para com a vossa comunidade assume nova feição. A assunção de uma ideia de estratégia e de construção do futuro é agora definitiva e premente. Apesar de saber que a vida adulta e profissional é, para muitos, feita de mudança, pode ligar-se o dia de hoje ao fim de uma longa transição. Os sentimentos essenciais de preparação, investimento, urgência, esperança e independência vão evoluir, conhecer novas formas.

Para alguns, o estudo foi um prazer. Para outros, um sacrifício. Para uns foi fácil. Para outros, uma corveia, um fardo a exigir árduo esforço. Quase todos se terão sentido adiados, em preparação, em permanente processo de diferimento. A todos direi o mesmo: foi uma decisão justa! Estudar e aprender é certamente o que de mais certo fazem e fizeram até hoje.

Já ouço vozes que murmuram nesta sala. Então e o desemprego? E a crise económica? E a falta de saídas profissionais? Só vos posso dizer em palavras simples: sem estudos, sem diploma, sem grau, seria pior. E quem o não tivesse, arrepender-se-ia toda a vida.

Apesar das frustrações actuais, mau grado o desemprego de milhares de licenciados e graduados, não obstante a incerteza que parece dominar a nossa existência contemporânea, uma preparação cultural, profissional e técnica é de indiscutível valia. Tiveram razão os que insistiram e persistiram. Sabe-se hoje que um graduado ou titular de um qualquer diploma superior tem muitas mais possibilidades de encontrar emprego, de formar uma empresa ou de criar a sua própria actividade independente, do que outra pessoa sem grau ou diploma. Há países em que a razão é de um para cinco, isto é, o diplomado tem cinco vezes mais possibilidades de encontrar o seu emprego do que o que não fez estudos superiores.

Vale a pena determo-nos um pouco mais nesta questão do emprego e do desemprego dos universitários e dos titulares de diplomas de estudos superiores. Que pensar do desperdício de recursos e da frustração dos licenciados que, um ano depois do seu grau, ainda hoje trabalham em “call centers”? Como olhar para esta enorme despesa, seja das famílias, seja do Estado, com uma preparação que nem sempre tem saída? Qual a racionalidade deste investimento que tantas vezes parece não ter retorno? É imaginável, em tempos de crise, baixar drasticamente o esforço de estudo e aprendizagem? É aconselhável, em tempos normais ou de dificuldades, planificar os estudos, isto é, formar e preparar apenas as pessoas que poderão ter emprego e que correspondam às necessidades da sociedade, das empresas e das instituições?

As minhas respostas a estas perguntas são todas negativas. Por várias razões. A primeira é porque se trata de tarefa absolutamente impossível. Por mais sofisticadas que sejam as técnicas de previsão, por mais rigorosos que sejam os métodos de ponderação da incerteza, nunca foi possível prever as necessidades profissionais com dezenas de anos de antecedência. Ora, é disso que tratamos: das necessidades económicas, sociais e técnicas de uma geração em relação à seguinte. Em educação, quando planificamos, é para gerações, não para dois ou três anos. Regimes ditatoriais, Estados que se julgavam omniscientes e governos convencidos que dominavam o futuro tentaram, mas nunca conseguiram. Ao decretar hoje que precisamos, dentro de vinte ou trinta anos, de dois mil médicos, três mil advogados ou quatro mil engenheiros, estamos a fazer o necessário para cometer um erro difícil de corrigir. Nenhum dos métodos seguidos até hoje, seja a planificação central, seja a total liberdade de escolha (ou a “mão invisível”, como se poderia dizer...) produziu uma qualquer solução para este problema. Mesmo em Portugal, que não tem ditadura, planificação ou omnisciência, podemos comparar duas tradições. A do planeamento, como é o caso da Medicina e da Enfermagem; e as da “mão invisível”, nos casos de muitos cursos como sejam o ensino, a sociologia, a comunicação social, as relações internacionais, o jornalismo, os recursos humanos e a gestão de empresas. No primeiro caso, a insuficiência é absurda e o recurso a profissionais estrangeiros é permanente. No segundo caso, o desemprego é abundante e a frustração quase geral.

Que fazer então? A meu ver, simplesmente deixar a sociedade ajustar-se, permitir que as decisões sejam tomadas pelos próprios, fazer com que a formação seja a mais aberta possível e a mais flexível que se imagina. Ao mesmo tempo, organizar o acesso aos estudos e às profissões de modo a não deixar degradar a qualidade das formações e a promover o rigor. Estudar é certamente um direito social; mas também é uma faculdade ligado ao mérito. E não esqueçamos nunca que a formação técnica e cultural é ela própria geradora de novas aspirações e novas necessidades.

De qualquer maneira, o critério essencial para a organização dos estudos superiores não é para mim o da adequação às necessidades económicas e empresariais do futuro. Muito mais importantes são os critérios ligados ao progresso humano, à liberdade e à autonomia dos cidadãos; ao desenvolvimento da ciência e da cultura; e à promoção do conhecimento e da procura da verdade.

Por outro lado, o desígnio essencial, o objectivo mais importante do ensino e da formação superior não é o da aprendizagem de uma profissão e de uma técnica, critérios certamente interessantes, mas não suficientes. O decisivo numa formação superior é a cultura geral, o raciocínio e o método. Numa expressão simples: aprender a pensar! Por mais sofisticadas e operacionais que sejam as técnicas aprendidas e dominadas, é a capacidade de raciocínio, de relação entre disciplinas e abordagens, de análise e de crítica, de adaptação a novas situações, de inovação e de interrogação, que dá conteúdo e missão ao ensino superior. Qualquer ofício, qualquer profissão aprendida com o enquadramento da cultura geral e da interdisciplinaridade própria do ensino superior adquire uma versatilidade e uma polivalência de incalculável valor.

Esta linha de pensamento conduz-nos a outro aspecto bem actual. Na Europa em geral e em Portugal em particular (tal como em mais dois ou três países mediterrânicos), vivemos um tempo de crise e dificuldade que tem levado a políticas de austeridade, de poupança e de contenção de despesas. Tanto despesas públicas, como privadas. Tanto despesa como crédito. O endividamento das famílias, das empresas, dos bancos e das Administrações Públicas é de tal monta que ninguém escapa aos programas ditos de austeridade e de contenção. Portugal é um dos países mais atingidos e mais empenhados nesse esforço. A este propósito, convém perguntar: como administrar esse programa de austeridade? Que sectores devem ser mais atingidos e mais poupados? Será que a educação e a formação devem estar incluídas nos sectores onde a austeridade se faz sentir? Será que todos os sectores da vida colectiva devem ser atingidos por igual? Será que faz sentido poupar alguns sectores? Quais? Com que critérios?

A minha resposta é a seguinte.  Tal como os grupos humanos, as classes sociais, as instituições e as empresas, todos os sectores devem ser objecto de poupança e austeridade. Todos os sectores devem sobretudo ser objecto de reforçada luta contra o desperdício. Mas alguns sectores devem ser protegidos de um excesso de austeridade. Sem privilégios, devem ser objecto de algum esforço. Entre esses, a educação sem qualquer dúvida. Porquê? Porque é, a prazo, um sector com capacidade reprodutiva e com potencialidade para proporcionar um retorno. Direi também o mesmo na sua formulação negativa: porque é um dos sectores em que um recuo geracional mais desgaste ou mais estragos produziria. Um excesso de austeridade, em tempos de crise, pode simplesmente ser irrecuperável na geração seguinte. Pode deixar cicatrizes que dificilmente saram. E diminuirá seguramente as próprias capacidades e energias para ultrapassar a crise.

É possível que outras pessoas digam algo de parecido a propósito de outros sectores, da saúde à segurança social, do emprego à segurança pública, do ambiente à energia ou da indústria à produção alimentar. É possível, sim. Isso faz parte do debate democrático a que só uma decisão informada e pública pode dar continuidade e solução. Ora, a verdade é que não sentimos isso neste nosso actual tempo de crise. Que se saiba, que seja conhecido e partilhado por muitos, os Portugueses não realizaram nem assistiram a um debate sobre as alternativas e as prioridades. Têm assistido, isso sim, a uma sucessão de decisões e medidas destinadas a poupar e conter a despesa em todos os sectores imagináveis, sem que haja, a meu ver, a perspectiva que aqui sublinhei, a de preservar as situações que podem melhor permitir a recuperação ulterior.

Gostaria ainda de alertar para um segundo ponto: esta ideia de que estudar em tempos de crise é aconselhável, recomendável e ainda mais necessário do que habitualmente parece aplicar-se exclusivamente às autoridades e aos poderes públicos. A maneira como exprimi o meu ponto de vista pode sugerir isso. Se é esse o caso, aproveito para corrigir. Esta ideia, na minha opinião, diz respeito a toda a gente, públicos e privados, pais e filhos, escolas e famílias, empresas e instituições. Incluindo estudantes. Em tempos de crise, o melhor que podem fazer, para além de procurar e encontrar soluções de sobrevivência própria e dos seus, o melhor que podem fazer, dizia, é estudar e preparar o futuro, seja este o tempo de duração da crise, sejam os tempos que virão depois. E, para isso, o esforço público não é suficiente. O contributo das famílias é indispensável. Não só em termos quantitativos, mas também qualitativos. Na verdade, a decisão de cada um é mais inteligente e mais sensível do que a regra burocrática e administrativa, universal e abstracta. A regra, do ponto de vista dos direitos, é fundamental. Mas, vistas as coisas do lado da vida real e dos percursos familiares e pessoais, a decisão individual e concreta é essencial.

A este propósito, desejo referir uma outra questão relativa ao contributo das famílias. Não se pense que este é apenas ou deve ser apenas financeiro. A participação das famílias na vida escolar e académica deveria ser muito superior à que é actualmente. Mais eficiência, mais rigor e menos desperdício seriam talvez de esperar. Mas também escolhas mais certeiras. E organização de cursos com mais racionalidade. A este propósito, sabemos que a situação em Portugal não tem evoluído bem, nem no melhor sentido. O sistema escolar português tem uma tendência acentuada para expulsar da escola os pais, tal como as comunidades e as empresas. Ora, essa evolução, sobretudo em tempos de crise, é negativa. O envolvimento das comunidades e o empenho permanente dos pais são, a meu ver e de acordo com experiências conhecidas em outros países ou em certos estabelecimentos privados portugueses, essenciais para estruturar escolas com melhor performance e mais adequadas às necessidades reais das pessoas. Devo dizer mesmo, no que aos pais diz respeito, que em Portugal é desconhecida a cultura dos “deveres dos pais” perante a escola dos filhos. Parece que a pressão se faz no sentido de que a escola os deve substituir em todas as tarefas e missões. Os próprios pais, muitas vezes, pretendem delegar a totalidade dos processos educativos na instituição. Chega-se mesmo a falar da “formação integral do cidadão” como missão da escola, o que me parece errado sob todos os pontos de vista. À escola compete muito, mas não tudo. E talvez nem sequer a maior parte.

Como dizia no início desta exposição, não acredito na capacidade política de prever as necessidades profissionais, técnicas, culturais e económicas para as próximas gerações. Mas acredito na capacidade humana de decidir sobre a sua própria vida e as suas expectativas. Uma experiência que conhecemos bem é a do “numerus clausus” para os estudos de Medicina. Por um lado, creio que o princípio do dispositivo do “numerus clausus” é positivo. Com efeito, o acesso ao ensino superior, ainda por cima a estudos especialmente caros, condicionado pelo mérito parece-me certo. É necessário merecer frequentar os graus mais elevados de formação e ensino, não se trata meramente de um direito de cidadão ou de um direito social. O “numerus clausus” é um dos mecanismos conhecidos para submeter o acesso às escolas superiores a um critério de mérito.

Por outro lado, o dispositivo, tal como o conhecemos, levou a consequências desastradas. Falta de médicos em vários sectores. Dificuldade em expandir tanto a saúde pública como a medicina privada. Partida para o estrangeiro de centenas de estudantes de medicina. E problemas muito sérios com a acumulação de vínculos profissionais públicos e privados. Mas sobretudo criou uma situação insustentável: estudantes da categoria de “Muito bom”, dezassete ou dezoito valores, são recusados à entrada da faculdade da sua escolha! Um país que assim procede não está bem! Como é sabido, o que acontece em Medicina pode acontecer também noutras áreas académicas. Muito está em causa. É dificultada a reposição de uma geração de cientistas e profissionais. Ficam em crise o direito e as expectativas de quem merece ter acesso às instituições de formação superior. É desvalorizada a ideia de justiça e de recompensa para quem cumpre os seus deveres e alimenta fundadas esperanças. Sem esquecer que o acto de formação e aprendizagem cria por si uma dinâmica de crescimento e progresso. Desengane-se quem pense, por exemplo, que Portugal fica a ganhar com os que vão estudar Medicina para Bucareste, Salamanca, Barcelona ou Praga. Desse modo, alegadamente, poupar-se-iam recursos portugueses, ficando o país a lucrar, depois, com o respectivo regresso. Na verdade, além das frustrações e do desperdício de tempo, o país perderia os efeitos muito positivos de uma disciplina em expansão e desenvolvimento. Sem falar, com certeza, no improvável regresso de muitos desses emigrantes.

Volto ao ponto de partida. Deixo-vos os meus votos de felicidade e de bom trabalho. A maior parte dos vossos estudos superiores desenrolaram-se em pleno clima de crise e de dificuldades. Não sei quais foram os sentimentos predominantes durante estes anos. Imagino que tenham sido de incerteza. É natural. Mas quero dizer-vos mais uma vez: tiveram razão! Parabéns e felicidades.
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(*) - ISLA – Lisboa, 30 de Maio de 2012

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