sábado, 6 de dezembro de 2025

Grande Angular - A escuta em vez de justiça

A divulgação, pela imprensa, das escutas telefónicas efectuadas durante anos a várias pessoas, incluindo ministros, empresários e funcionários, e aos seus correspondentes (entre os quais o Primeiro-ministro) deixou, mais uma vez, uma parte da opinião pública estupefacta. Por que razão se fizeram aquelas escutas, em que condições de legalidade e por que se guardaram tanto tempo? Todas parecem triviais, sem ilegalidade e crimes aparentes, mas todas deixam transparecer um teor de conversas hediondo, ridículo e trivial. Era seguramente isso que desejava quem efectuou a “fuga” de informação: “aquela gente”, que fala assim sobre estes assuntos, não é de confiança!

 

O problema é que, cada vez mais, quem facilita as “fugas” ainda merece menos confiança e seu comportamento começa a parecer-se com crime puro e simples. Não é a sua publicação que está em causa: desde que as informações chegam, por meios legítimos, às mãos dos jornalistas, estes têm a obrigação de as publicar. O problema está em quem as entrega ou deixa correr. Esse é o responsável e o seu comportamento merece censura e castigo.

 

As escutas telefónicas continuam, assim, a dar que falar. E a retomar sempre a ideia de que o mais simples e mais seguro será simplesmente a sua condenação e a sua interdição. Ninguém está seguro, nem os próprios agentes de Justiça, de que as escutas acatam os requisitos processuais. Quem escuta quem? Porquê? Quando? Durante quanto tempo? Em que condições? O que é que se escuta? Ninguém está seguro de que quem escuta esteja pessoalmente certificado para tal. Ninguém está seguro de que determinadas escutas não vão servir para processos ilegítimos.

 

Mesmo quando são legais, o que nem sempre será o caso, os processos de escuta são cada vez mais ilegítimos e mais orientados contra pessoas e organizações. A sua utilização é evidentemente discricionária e ilegítima. Não há escuta cuja revelação ou divulgação seja legítima. Ora, não há divulgação que não seja obra de juízes, oficiais ou procuradores. Ou por sua iniciativa. Ou por sua responsabilidade, isto é, deveria ter sido mantida em segredo e alguém, ilegitimamente, a desviou: disso, juiz ou procurador são responsáveis, sejam ou não autores.

 

A escuta telefónica, sua obtenção e sua utilização transformaram-se num sucedâneo para a Justiça, ou antes, para a investigação e o processo judicial. Até já terá havido um caso em que o Primeiro-ministro se demitiu, forçado pela denúncia de prováveis escutas. Ainda hoje não se esclareceu este caso. 

 

Não tenhamos dúvidas: as escutas telefónicas são o recurso de facilidade, a sarjeta, a arma do ignóbil e o veneno da Justiça. Há quem considere a escuta telefónica (e sua circunstância que ultrapassa, muitas vezes, em legalidade e odioso, a estrita prescrição judicial) como instrumento de investigação absolutamente legítimo. Não se perdoa, e muito bem, a tortura, os “bofetões”, os “safanões, a vigilância indevida ou o interrogatório fora de horas. Mas aceita-se a escuta. E assim se fere um dos princípios mais importantes da democracia: o respeito pelos cidadãos e pelos seus direitos.

 

Procure-se nos Evangelhos ou nos gregos, em Adam Smith ou Jefferson, em 

Albert Camus ou John Rawls: a Justiça em primeiro lugar! Para George Washington, é mesmo o mais firme pilar da democracia. É tão simples quanto isso: não há democracia sem Justiça. E não há Justiça sem respeito pela lei, pela moral e pelos cidadãos.

 

Os defeitos e a incompetência da Justiça, quando existem, podem ferir a democracia. Podem transformar-se em faltas de defesa dos direitos dos cidadãos, em ausência de protecção das liberdades. Mas tudo fica muito pior, quando a Justiça, ou quem quer que seja em seu nome, abusa dos seus poderes para procurar visar certas pessoas com intenções estranhas à Justiça e às suas obrigações. Com a Justiça orientada e selectiva, tudo é possível. Ameaças políticas, privadas ou comerciais. Chantagem pessoal, extorsão, armadilha política e posse de “segredos” a fim de condicionar o comportamento de outrem. Aproveitamento político e partidário das informações e dos segredos assim recolhidos. Lucros e negócios pessoais. Tudo o que deveria ser estranho à Justiça.

 

Quais são as grandes ameaças contra a democracia? A desigualdade? A pobreza? O nacionalismo? Parece cada vez mais ser a falta de justiça. A ausência de justiça como base do bom governo. As deficiências da justiça como alicerce da liberdade. A Justiça em Portugal não é o pilar de democracia, o chão das liberdades, nem a garantia dos direitos individuais. Já não é o instrumento de lisura dos processos políticos e democráticos. Já não é um código de honra dos seus agentes para defender as liberdades e a democracia com isenção. 

 

É verdade que a Justiça portuguesa, terá à sua conta, com honra e merecimento, investigações fulcrais de factos, pessoas e organizações. Mas também é certo que, noutros casos, os atrasos, as falhas processuais, as incompetências e o enviesamento deliberado se transformaram em serviços prestados a pessoas e organizações.

 

A luta, o confronto e a rivalidade entre grandes corpos de Justiça, magistrados judiciais, magistrados do Ministério Público, oficiais de Justiça e agentes das polícias judiciárias, são tais que se sentem e presentem no espaço público: razão para mais uma falta de confiança na Justiça. 

 

É verdade que houve, aqui e ali, juízes e desembargadores postos em tribunal, arguidos e julgados ou em vias de julgamento. Veremos em que resultam, se é que resultam nalguma coisa. Mas tais factos não bastam para incensar uns corpos profissionais, de soberania, cujos comportamentos deixam a desejar. 

 

Não é a direita contra a esquerda. Nem a esquerda contra a direita. Não são os privilegiados contra os desapossados. Ou os destituídos contra os poderosos. Ou os letrados contra os incultos. Tem-se a nítida impressão de que, entre nós, são todos contra todos, cada qual com os seus casos, as suas oportunidades, os seus pontos de ataque.

 

Não haverá quem, em Portugal, queira fazer estudo sério e isento sobre a Justiça? Quem se proponha fazer, estimular ou proporcionar a elaboração de um “livro branco” sobre a Justiça? Quem se proponha estudar, seriamente, sem preconceito, os feitos e defeitos da Justiça, os seus números e os seus factos, os seus êxitos e os seus falhanços? Seria livro fascinante.

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Público, 6.12.2025

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