Sob, em cima ou no sopé do vulcão. As imagens são conhecidas. Nem as variações adoçam o significado: a proximidade do vulcão é sempre má conselheira. Pior ainda: quando o fenómeno está adormecido, é enganador. É atraente, fascinante e tentador. Mais uma razão para ser perigoso. E tem consequência: pode nunca acordar, mas leva as pessoas a ter medo.
Vem isto a propósito do tempo que vivemos e do debate sobre o “estado da nação” realizado esta semana. O governo está satisfeito, sobretudo consigo próprio. As oposições estão quezilentas, como o governo as quer. Todos usam factos e recorrem a números, só em parte verdadeiros, disponíveis para mostrar o optimismo e o cepticismo, conforme as necessidades.
Ouvir o governo é escutar um conto de fadas. Muito corre bem, tudo vai correr melhor. Ouvir as oposições é ter uma percepção do inferno. Muito está mal e vai ser ainda pior. Montenegro e o poder do dia têm a situação a seu favor, mas sabem que estão com enormes dificuldades. O que é paradoxal: a situação favorável contrasta com os ventos adversos. É uma espécie de paz sob o vulcão.
O que está a correr bem e parece ser a favor do governo? O que aconselha a uma acção determinada de reforma e progresso? Uma situação social calma, com as guerras das classes em pousio. As oposições estão impotentes. Não sendo famosas, as finanças estão aparentemente sob controlo, aliviadas pelos fundos do PRR, mãe de virtudes e fonte de milagres. A agressão russa à Ucrânia e o massacre israelita de Gaza, assim como o alargamento da guerra ao Irão, à Síria e ao Líbano, estão longe, vão durar anos, ameaçam a paz e a estabilidade na Europa, mas não se fazem sentir em Portugal. Para já. O turismo não dá sinais de enfraquecer e continua a produzir os seus lucros e rendimentos fáceis. Alguns Estados, incluindo a China, a Rússia, Angola, os Emiratos e até Estados Unidos estão interessados em Portugal, se não em desenvolver, pelo menos em comprar. A economia, a viver cada vez mais de mão de obra barata e dependente, em grande parte ilegal, parece florescente, com as exportações a portarem-se bem. Os cidadãos parecem cansados da política e da instabilidade.
Mas também há argumentos a desfavor do governo e da energia reformadora. Sem referir a primeira deficiência, a falta de apoio parlamentar, sublinhe-se a incapacidade de gestão dos grandes serviços públicos. Designadamente da saúde e da educação, incluindo o atendimento noutros serviços, como sejam os impostos e a segurança social. Após duas ou três décadas de permanentes progressos tecnológicos, com toda a espécie de novos dispositivos, há milhares de pessoas maltratadas, a quem não se responde, que têm de ficar horas e dias à espera do telefonema, há milhares de enganos e atrasos por culpa do “sistema”. A eficiência e a afabilidade no atendimento são deficitárias, a ponto de configurarem desprezo social pelos cidadãos em geral e pelos trabalhadores e pensionistas especialmente. O desastre absoluto que tem sido a impossibilidade de prever a demografia e a evolução dos serviços de saúde, com milhares de enfermeiros e de médicos a emigrar para o estrangeiro. O sistemático erro de gestão e de previsão que, todos os anos, uns maus outros piores, deixam milhares de alunos sem aulas durante uns tempos e a várias disciplinas, que podem ser muitas. A radical incompetência para a decisão política e económica, assim como para a gestão dos serviços de transportes públicos, com relevo para o comboio, o avião e o metropolitano, o que deixa visível a imagem real do que é a opressão social, o desprezo por quem trabalha. A total ignorância e a criminosa negligência relativamente à habitação social, ao alojamento público e à habitação. Aumenta a emigração, alastram as barracas e cresce o número de imigrantes baratos e ilegais: são sinais inconfundíveis.
O que depende directamente do governo, deste, do anterior de Montenegro e do anterior de Costa, está a correr mal, cada vez pior. A gestão da saúde, da habitação social, da educação e dos transportes públicos, assim como do atendimento nas administrações, é incompreensivelmente má e deficiente. É visível a degradação das capacidades do governo, dos governos, que não sabem e não conseguem ir mais longe ou melhor do que distribuição de dinheiros. Tira um imposto, reduz uma taxa, dá um subsídio, oferece um bónus…. Aonde está a política consistente, a prazo? É a terceira ou quarta vez que, em vésperas de eleições, os governos (Costa e Montenegro) distribuem prémios. Há qualquer coisa de humilhante nesta distribuição, nestas dádivas que tresandam a compra de votos. Não é, evidentemente, a maneira mais nobre de governar. Distribuir bónus extraordinários, dinheiro, subsídios e bonificações, cria dependências e agradecimentos, sem ligar ao mérito. Distribuir benefícios quando interessa a quem dá é geralmente por motivos eleitorais. Transformar as pessoas em mendigos ou gratos dependentes do governo não é o que há de mais nobre e civil.
“Deixem-me trabalhar”, “deixem-nos governar quatro anos”, permitam o governo trabalhar para ganhar mais votos, até à maioria absoluta, poupem as alianças ou as negociações maçadoras com o Chega e com o PS, dêem tréguas e sossego. “Dêem-nos tempo e ver-se-á como cumprimos os nossos deveres, ganhamos a população e os portugueses agradecerão”.
É bem provável que o desconforto do PS e a estridência do Bloco e do PCP, assim como o desatino demagógico do Chega, sejam factores favoráveis ao governo e suficientes para que este, sem maioria parlamentar permanente, se aguente muito mais tempo do que se imagina. É bem possível que a incapacidade das oposições recompense a mediocridade do governo.
Não foi bem este o debate do estado da nação. Foi mais o debate do estado da oposição, cujo comportamento, no parlamento, foi um lenitivo inesperado para um governo que parece ser perito em distribuição de subsídios e bónus, mas incapaz de voar alto na política e de realizar na vida real. Foi um debate ácido e pouco educado entre dois partidos que lutaram pelo segundo lugar mais do que pela governação.
Etna ou Vesúvio, Krakatoa e Pinatubo… Os nomes despertam medos e fantasias. São atraentes e ameaçadores. Ao contrário destes desastres, inevitáveis e incertos, as desgraças sociais são, em grande parte, previsíveis. E podem ser prevenidas. Se houver sabedoria humana, claro.
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