Como se vota? Que motivos levam um cidadão a votar num ou noutro partido? Por que razão se vota num candidato em vez de outro? Fidelidade, rotina, ideologia, oportunidade, obra feita ou prometida, pessoa, carácter, cara bonita, vingança, castigo, agradecimento…. É um nunca mais acabar de causas. Há estudos e sondagens que, há décadas, dão respostas e hipóteses. Mas, realmente, na verdade, não se sabe muito bem o que leva a votar, caso a caso, pessoa a pessoa, no momento da urna. É possível que uma parte do eleitorado, um terço, metade, vote de maneira previsível. Sempre no mesmo, dizem, orgulhosos, os fiéis. É a minha gente, a minha classe, o meu partido, garantem os que têm certezas. Mas há tanta gente a votar por outras razões! Ainda bem. Se assim não fosse, não haveria alternância, castigo, recompensa, mudança e progresso. Nem pessoas iguais a votar diferente. Nem diferentes a votar o mesmo.
Vem isto a propósito das próximas eleições autárquicas. Estas são, na verdade, ainda mais delicadas do que todas as outras. Há independentes. Há alianças e coligações. Há interesses regionais e locais. Há dissidências partidárias. Ao contrário das legislativas, há personalidades e indivíduos, pelo menos para presidentes de freguesia e de câmara. Tudo nos obriga a reflexão e a esquecer os preguiçosos automatismos, sejam estes de classe ou de ideologia.
Tendo o que precede em mente, já decidi. Vou votar no Jardim. No Jardim da Estrela. Neste jardim que frequento amiúde há mais de quarenta anos. Em todas as estações. A todas as horas. Com todas as companhias e sobretudo comigo próprio. Este jardim que teve momentos áureos de conservação e beleza, mas também períodos negros de desleixo. Este Jardim que me deu alguns dos melhores momentos de paz da minha vida, que me permitiu ver evoluir a população portuguesa, do bairro, de Lisboa e do país. A presença de estrangeiros mudou muito. O número de bebés e crianças aumentou também, não que haja mais natalidade, mas foi o hábito de passear crianças nos jardins públicos que se desenvolveu. A idade média dos velhos, cortesmente chamados de idosos, aumentou incrivelmente, mas também os seus modos de locomoção. Hoje há mais cadeiras de rodas, bengalas, andarilhos e canadianas do que há quatro décadas. Bom sinal de que há mais velhos e com mais idade. E com mais hábitos de passeio.
Mas isso de sociologia ou de observação é pouco. O que realmente importa é o sentimento e a emoção. A paz de espírito, que, se não se tem, ali se ganha depois de chegar. O convívio com as árvores, um dos mais belos produtos da criação, quando não massacrados pela humanidade. O som dos sinos da Basílica, companheiros dos quartos de hora, das vésperas e das matinas, a recordarem a certeza do tempo e da sua amiga crueldade.
Dizem que o Jardim da Estrela foi feito, entre 1842 e 1852, segundo o modelo inglês dos jardins românticos, em contraste com a tradição presunçosa francesa, mais pomposa. Os seus últimos responsáveis foram D. Maria II e Costa Cabral. Tem quase 5 hectares. O seu verdadeiro nome é Jardim Guerra Junqueiro, mas ninguém liga: é da Estrela e da Estrela será.
O Jardim da Estrela tem um companheiro, pequeno, modesto, quase secreto, ali ao lado: é o encantador Jardim da Burra, que saúdo com frequência. O seu nome deve-se a uma formidável estátua da “Santa Família” (camponês a pé com enxada ao ombro, acompanha mulher sentada em burro, bebé ao colo dela). A inauguração, nos primeiros anos do século XX, mereceu honras de reportagem da Ilustração Portuguesa. O seu autor foi o escultor Costa Motta. Também o Jardim da Burra tem outro nome, Jardim 5 de Outubro, mas ninguém quer saber: é da Burra e da Burra será.
O Jardim da Estrela já foi “chique”, já foi burguês, já foi de jovens e de várias iniciações, de idosos a jogar às cartas e ao dominó, de mães a amamentar bebés, de grupos de adolescentes a estudar matemática… Tem, numa tão pequena área, uma variedade incrível de árvores de médio e grande porte, vindas de climas longínquos e das nossas zonas temperadas. Tem arbustos e flores. Tem bancos públicos, dos antigos, daqueles de madeira e de encostar. Tem um maravilhoso coreto feito de pedra, madeira e ferro forjado, que tinha vivido, no século XIX, no Passeio Público, lá para os Restauradores, e para aqui veio em 1936. É um dos mais bonitos de Lisboa e do país. Tem quiosque e café bar. Tem, raridade notável, um quiosque-livraria da biblioteca municipal onde se pode ler e requisitar livros e revistas. Tem estátuas, do “Cavador” à “Fonte da Vida” e de “Antero de Quental” a “João de Deus” e ao “Actor Taborda”. Tem, de vez em quando, “feira de velharias” e de “artesanato urbano”. Já teve aulas de dança e exercícios de meditação ao ar livre e no coreto.
Sempre teve namorados. Tem uns fanáticos a ouvir relatos de futebol. Raras vezes se vêem zangas de amigos, familiares ou namorados. Tem jardim infantil. Tem casa de banho. Hoje, o Jardim da Estrela é isso tudo. Mas também é sinal de desleixo e de um processo de abandono que nunca se sabe se e quando vai acabar. Começou um dia a ter placas de identificação de cada árvore, mas os poderes devem ter-se arrependido, pois tal prática, doce e inteligente, desapareceu. Teve patos, cisnes e carpas nos lagos, hoje já não tem, vá lá saber-se porquê. Aliás, um dos dois lagos está seco. Já teve pavões, hoje já não tem. Há passarinhos exóticos e papagaios de passagem, mas pavões é que não. Nas últimas semanas, em vez das dezenas do passado, vi um pato magricelas e duas tartarugas pachorrentas.
Em numerosos lanços dos caminhos o pavimento está em vias de destruição, há alguns anos esburacado e em levantamento. Os canteiros, meu Deus, os canteiros! Relva queimada e erva seca. Flores murchas e mortas. O coreto está entaipado, tapado, para obras, com anos de atraso, já tiveram mesmo de mudar os tapumes. O desmazelo e o desprezo tomam conta da Estrela. Ainda há partes do jardim em bom estado. Mas pressente-se o triste declínio.
Não tenho dúvidas! Voto em que trate do Jardim da Estrela. Em quem demonstre que está realmente interessado nos serviços municipais, no espaço público, na beleza das cidades, no conforto dos cidadãos, na paz e no sossego das pessoas, no descanso de quem trabalha, na alegria de viver em comunidade. Voto em quem prometa recuperar o Jardim da Estrela, deixá-lo viver, respeitá-lo e, sobretudo, respeitar os cidadãos.
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Público, 5.7.2025