O orçamento está aprovado. Mais ou menos. O essencial está feito. Nem o governo, nem o PS, podem voltar atrás, esquecer o dito e fazer exigências. Ambos garantiram aos eleitores que estavam de boa fé. Nenhum pode agora inventar questões. Já se sabe que vão tentar, na especialidade, mostrar ao bom povo que foram eles que deram, aumentaram, duplicaram, abateram e subsidiaram. Irão mesmo até ao ponto de tornar impossíveis certas disposições na especialidade e introduzir outras. Mas o essencial está feito, o resto é coreografia. As responsabilidades de cada um são claras. Quem voltar atrás com a palavra dada será vítima de castigo do eleitorado.
Não há que contrariar. O que os dois fizeram, governo e primeiro partido da oposição, merece aplauso e nota alta. Podendo perder alguma coisa, podem também ganhar. Parece certo que os eleitores, em proporções consideráveis, seguramente maioritárias, ficariam zangados se não houvesse resolução deste problema orçamental e regozijar-se-iam com uma aprovação. Mesmo se sem entusiasmo, mesmo se sem causas ou horizontes, mesmo se sem plano e estratégia, os cidadãos preferem assim. Não se trata só de uma percepção superficial. É vantajoso que assim seja. Quem fica fora desta aprovação conta pouco. Os partidos de esquerda de causa e ideologia, PCP, Bloco, Livre e PAN contam tão pouco para a maioria do eleitorado, pouco mais de 10%, que é mais ou menos indiferente que aprovem ou não. No centro direita, a IL, com menos de 5%, não pesa. São todos partidos importantes, mas não constituem massa crítica de relevo. Já com o partido Chega, as coisas são diferentes. Os seus 18% e os mais de 1 milhão e 100 mil eleitores são argumentos sérios. É destituído de ideias e programas, mas o seu vozeirão desordenado e demagógico tem eco junto de muita gente. Na verdade, o partido não ajuda nem ensina, não forma nem contribui, apenas traduz a desordem das ideias e dos pensamentos. O problema é que este partido quer entrar para perturbar e abrir crise, ou ficar fora para abrir crise e perturbar.
Assim sendo, convocar novas eleições seria acto nefasto para a democracia. Seria gesto de enfraquecimento adicional de um país em dificuldades numa Europa perturbada e num mundo a viver com ansiedade. Ninguém, a não ser as minorias de causas ideológicas, perceberia que, por razões menores, fictícias ou superficiais, se dissolvesse o Parlamento, se convocassem eleições e se tentasse, provavelmente sem resultados, novas soluções. Os dois partidos que resolveram a questão, mesmo se a contragosto e com mau jeito, fizeram bem e merecem aplauso.
Convém recuar um pouco para ter melhor perspectiva. O orçamento é uma folha de mercearia. Ou lista de compras de supermercado. Não é um plano, uma estratégia, um programa. Além do mais, este orçamento é uma folha de benesses e benefícios. Há descontos, isenções, aumentos, reduções, alívios, subvenções e privilégios para muita gente. O que essencialmente distingue os dois principais partidos é o elenco de beneficiários, mais para uns do que para outros, mais para outros do que para uns. Mesmo quando se toca na estrutura fiscal, nas taxas, nos escalões, nas isenções e nos benefícios, a diferença entre os dois partidos, que eles próprios sobrevalorizam, é de menor importância e de redúzios efeitos. Na verdade, a luta de classes, a alternativa política e a oposição programática não residem nem se resolvem com o orçamento do Estado.
É pena que assim seja, mas é assim. O rol de mercearia e a lista de compras destinam-se a aguentar o barco, a tratar da tesouraria, a pagar dividas e a respeitar compromissos, não servem para reformar, investir, relançar, programar, orientar e planear. Sabe-se que estas últimas são necessidades prementes, mas não é aqui, no orçamento, que se resolvem. Algo parecido com um plano a três, cinco ou dez anos seria mais adequado às urgências nacionais. Um programa dito de “grandes opções”ou de “estratégia de desenvolvimento” seria bem mais necessário, mais importante, eventualmente mais fracturante politicamente, mas muito mais urgente, até porque só produziria efeitos a dez ou vinte anos. Certamente que um plano destes exigiria muito mais trabalho de convergência partidária, no caso de não haver alianças ou maiorias. Mas esse é o trabalho que se pede aos partidos, da situação ou da oposição. É sinistra a ideia de que o eleitorado quer e exige oposição e berraria. A primeira necessidade é a da convergência e do entendimento. Só se tal se verificar impossível é que as almas, os corações e as cabeças preferem contestação
Verdade é que a vida económica e social de Portugal, nas últimas décadas, oferece alguns bons resultados e motivos para satisfação. Nas áreas das contas públicas, do endividamento, do emprego, da actividade turística e das exportações, há resultados à vista, fonte de contentamento. Mas temos de verificar também que no crescimento económico, nos rendimentos das famílias, na produtividade e nos níveis de rendimento, Portugal tem um comportamento medíocre. Pior ainda: é dos piores da União Europeia e não consegue recuperar atrasos. Há mais de vinte anos que Portugal marca passo e se deixou ultrapassar por quase todos os países com os quais se compara. Há mais de vinte anos que se assiste a uma gradual degradação da qualidade e da eficiência dos grandes serviços públicos de saúde, de educação, dos transportes, da formação profissional e do atendimento geral aos cidadãos. Há mais de vinte anos que Portugal tem perdido força e qualidade nalgumas das suas mais importantes empresas, públicas ou privadas, assim como tem perdido autoridade sobre empresas estratégicas e de grandes serviços. Há vinte anos que Portugal vive prisioneiro da emigração dos seus cidadãos, sobretudo os mais jovens, para a Europa e o resto do mundo, ao mesmo tempo que depende da imigração de trabalhadores desqualificados com os mais baixos rendimentos e salários de toda a Europa ocidental.
Ao lado disto tudo, o orçamento é milho miúdo. As cenas políticas a que assistimos nestes últimos dias são, do ponto de vista do que é essencial e urgente, patéticas. Serviram tão só para que não se pense mal dos dois partidos. Para que o governo não perca a face. E para que o PS não fique com o ónus de ter colaborado com o governo e não ter sido uma verdadeira oposição. Coisas menores de actores secundários.
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Público, 2.11.2024