sábado, 21 de setembro de 2024

Grande Angular - Os KAMOV: Incompetência ou corrupção

 Talvez tenham sido adquiridos em 2006. Foram seis e terão começado a chegar a Portugal em 2008. Um deixou de trabalhar em 2012. Dois foram para a manutenção em 2015 e nunca mais de lá saíram. Três foram postos fora de serviço em 2018! Entre este último ano e 2024, data da doação à Ucrânia, estiveram os seis KAMOV encostados, sem manutenção, nas instalações do aeródromo de Ponte de Sor. Verdade? Quanto custou tudo? Quanto falta pagar? Quem são os responsáveis?

 

A partir de certa altura, a Protecção Civil recusou os KAMOV e não mais quis saber deles. O governo ordenou que fossem entregues à Força Aérea, que exigiu uma auditoria prévia. Passado um tempo, a Força Aérea recusou os KAMOV. Depois, foi-lhes retirada licença de voo. Algures, por volta de 2020, os helicópteros não tinham dono. Uma reparação necessária foi avaliada em 40 milhões. Quase tanto quanto tinham custado! No total, entre custo, manutenção, contratos, reparações e tudo o resto, os KAMOV poderão ter custado ao Estado português cerca de 300 a 400 milhões e passaram os seus últimos anos, em fase terminal, sem licença e incapazes de funcionar. Diz-se que, enquanto estavam imobilizados, o Estado alugava outros KAMOV a outros países por 5 milhões por ano. Entretanto, Portugal comprou seis helicópteros americanos BLACK HAWK, em segunda mão, por 43 milhões de euros. Verdade? E prepara-se ainda para, a preços incertos e desconhecidos, alugar e comprar aviões CANADAIR, não se sabe se novos se usados.

 

A história dos KAMOV em Portugal parece ter terminado. Parece! Na verdade, ninguém sabe se sobraram “rabos de palha”, dívidas por liquidar, compromissos não respeitados, processos pendentes, despesas imprevistas ou juros e comissões em falta. Esperemos por tudo. De qualquer maneira, o essencial é conhecido: os KAMOV vieram para combater os incêndios. Estiveram mais tempo parados por avaria, impossibilidade de voar, falta de manutenção e indisponibilidade de tripulações habilitadas do que passaram a trabalhar ou disponíveis.

 

Os KAMOV são um tratado de comportamento comercial e político, inesgotável de informações sobre o que se não deve fazer para respeitar os interesses nacionais. E exaustivo em lições sobre o que se deve fazer para aldrabar o Estado, defraudar a lei e recompensar os intermediários.

 

Os KAMOV são um manual de aprendizagem para os doutorandos em minas e armadilhas, para quem prepara carreira na gestão de negócios especiais, para quem se candidata a assessor de gabinete e para quem se quer especializar em transacções nas zonas crepusculares da democracia e dos negócios.

 

Os KAMOV são lições práticas para quem, com boas ou más intenções, estuda para ingressar em carreiras da polícia judiciária, dos fiscais de contribuições e impostos, dos inspectores de finanças e das brigadas de anticorrupção.

 

Os KAMOV são lanterna que alumia o caminho para perceber as relações entre Portugal, a União Soviética, a Rússia e a Ucrânia.

 

Os KAMOV são uma pérola a revelar alguns traços essenciais da identidade nacional, designadamente nas áreas cinzentas da legalidade, da transparência e da complacência.

 

Reconstruir ou estudar a história dos KAMOV em Portugal é tarefa quase impossível, digna do que de melhor se premeia nas áreas especializadas do jornalismo, das relações internacionais e do comércio paralelo. Percorrem-se os jornais e os arquivos da televisão e encontram-se milhares de factos, de denúncias, de estatísticas. Quase sempre contraditórias. Por intermédio dos órgãos de referência da comunicação e da informação, não é possível saber o que se passou. O Estado não verifica, não controla, não produz números indiscutíveis. Acusados de incompetência, interesse, corrupção, ignorância e covardia, vários governantes, responsáveis por todos os actos de vida destes KAMOV em Portugal, escondem-se, assobiam para o ar, calam, disfarçam e coçam a cabeça.

 

Quase todas as fontes referem o valor de 8 milhões para o preço de cada KAMOV. Isto é, cerca de 48 milhões para o pacote. Os problemas vêm depois. Prestações, serviço da dívida, abatimento de dívidas soviéticas, contratos de manutenção, aquisição de peças, comissões de intermediação e contratos de prestação de serviços elevam os preços, após doze anos, a montantes próximos dos 300 ou 400 milhões de euros. Não se percebe como. Não há matemática que resista. Mas é assim. É certamente um dos mais escandalosos casos da história portuguesa. A possibilidade de as despesas, os prejuízos e as perdas poderem oscilar entre tão altos limites não suscita acções e reacções de investigação e contestação?

 

Quantos foram alugados e comprados? A que preços? Quanto custaram os serviços financeiros, de manutenção, de reparação e de serviço? Quanto falta ainda pagar? Prestaram serviço proporcional aos custos? Quanto tempo estiveram os KAMOV imobilizados no solo? Quanto tempo prestaram efectivamente serviço? Quantas horas de voo realizaram? Quem foram os intermediários, comissários, auditores, advogados e outros prestadores de serviços em todo este negócio? 

 

Os KAMOV parecem estar numa linha tradicional de negócios particularmente chorudos, incompetentes, viciados e de más consequências: é uma sequência fatal de aquisições, alugueres, trocas, compras e vendas de aviões de passageiros, aeronaves de luta contra os incêndios, submarinos, comboios e catamarãs. De comum entre eles? O comprador é o Estado. E há sempre uma zona escura e um capítulo de dúvida.

 

Se as autoridades não esclarecerem este caso dos KAMOV, poderão ser acusadas de má gestão política. De covardia governamental que não assume as suas responsabilidades. De intervenção ilegítima de agentes e intermediários. De pagamento de luvas excessivas. De desatenção com a manutenção. De desprezo pela utilidade social dos equipamentos comprados. De falta de respeito pelo erário público. De falta de controlo por entidades competentes. De falta de honestidade.

 

Não há responsáveis? Políticos? Governantes? Dirigentes de instituições públicas e de empresas privadas? Advogados? Intermediários? Peritos? Empresários? De uma coisa podemos estar certos: ninguém se assume como responsável por qualquer decisão relativa aos KAMOV durantes os últimos dezoito anos. É pelo menos suspeito.

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Público, 21.9.2024

3 comentários:

Carneiro disse...

Rocha Andrade, Lacerda Machado e António Costa (ministro administração interna na altura) foram os responsáveis pela compra dos Kamov e do SIRESP. Por isso a comunicação social, à excepção de alguma, nunca se interessou pela investigação dessa marmelada. Aliás, raro é o jornalismo que se dedica a investigar e divulgar os detalhes destas negociatas.

Do outro lado há o Ministério Público para investigar e acusar, mas também pouco ou nada se vê. Porque será? A recente audição de Lucília Gago no parlamento, mais aquela do “colocar ordem na casa” dão bons indícios: o MP deve “respeitinho” ao poder ou decisor político e o PGR com perfil deve travar os seus magistrados sempre que o caminho da investigação possa suscitar algum “irritante”.

Tudo demasiado maquiavélico!

Carneiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Jose disse...

Ignorantes e imbecis a decidirem em matérias que estão dispensadas de validação por gente designada como qualificada para o efeito, num quadro de funcionalismo público que é um mar de gente!!!