sábado, 14 de setembro de 2024

Grande Angular - Valores mais altos do que telemóveis

 Há mais de cinquenta anos, um estranho acontecimento ocupou as primeiras páginas dos jornais de todo o país. Em Lamego, no Liceu, um aluno tinha sido apanhado a copiar, num exame, de maneira especialmente original e moderna. Não propriamente a copiar, mas sim a burlar com métodos criativos. Aparentava sinais de ferimentos na cabeça, por cima dos quais uma ligadura dava o toque realista. Na verdade, o truque escondia um minúsculo receptor de rádio que recebi indicações para resolver as questões do exame. Em casa, seu irmão, pequeno génio de tecnologia, tinha desenvolvido um transmissor artesanal de grande eficácia. Cinco minutos depois de começada a prova, dirigia-se ao Liceu, pedia uma cópia do enunciado, corria para casa e ditava ou inspirava as respostas. Um comerciante vizinho, no seu rádio, ouviu vozes que identificou como respostas a um exame. Foi ao Liceu e denunciou a marosca. Os professores foram ver e rapidamente detectaram a aldrabice. O aluno chumbou, mas foi reabilitado no ano seguinte. O irmão foi rapidamente recrutado por uma empresa especialista naquelas técnicas. Toda a gente compreendeu o castigo do burlão, mas o país inteiro simpatizou com os irmãos e seu feito. A tal ponto que, nessa noite, a loja do denunciante foi apedrejada e vandalizada. Nunca mais reabriu.

 

Esta pequena história serve, entre outros usos, para perceber o imenso abismo tecnológico, pedagógico e moral que nos separa daqueles dias. Os telemóveis de hoje, ou antes, os smartphones são poderosas armas ao alcance de toda a gente, que servem para todos os fins imagináveis: burla, jogo, invenção, cultura e lazer. Investigação, cálculo, informação, espionagem e roubo. Meditação, namoro, organização, controlo e gestão. Banditismo, terrorismo, filantropia e solidariedade. Os smartphones são portas abertas de cada um para o mundo e deste para cada um.

 

A discussão actual sobre o uso dos telemóveis nas escolas não é mais do que a repetição, actualizada, da mesma questão debatida há vinte anos. Pode ou deve proibir-se ou admitir os smartphones nas escolas? A sua proibição não vai atentar contra direitos fundamentais, a liberdade de expressão e o direito à informação? A sua admissão, pelo contrário, não vai liquidar o espírito da escola, a autoridade dos professores, o esforço de aprendizagem e o recato necessário para pensar e estudar? Convém notar que, há trinta anos, estes aparelhos pouco mais eram do que telefones e canais de mensagens escritas. Hoje, são tudo o que se sabe e ainda se não conhece.

 

O dilema não se limita à alternativa habitual, sim ou não. Na verdade, o problema é muito mais complexo. Todas as questões particulares são pertinentes. Quem deve ou pode ter a autoridade para tomar esta decisão? O Parlamento, o Governo, o Ministério, a Escola ou o professor?

 

A que se deve circunscrever a decisão? À escola no seu todo? Às salas de aula? Aos recreios e cantinas? Às salas de estudo e convívio?

 

As decisões sobre os smartphones são equiparáveis às que dizem respeito às tabletes, aos computadores e outros dispositivos? Que fazer com as necessidades evidentes de utilização destes para mil e uma funções educativas? Mesmo admitindo que a qualidade e a beleza das aulas magistrais são insubstituíveis, é evidente que há muitas outras formas de aprendizagem que não se limitam às aulas.

 

Além de troca de correspondência e de comunicação verbal, o smartphone também pode servir de dicionário, vocabulário, máquina de calcular, biblioteca, máquina de fotografia e cinema, reprodução musical, arquivo, compra e venda do que se quiser, actividade bancária e bolsista, aposta e vidência. Sem falar nas redes sociais e em todas as funções (saúde, estacionamento, informações, turismo, horários, mercado, etc.) essenciais para a vida quotidiana. É possível proibir umas funções e admitir outras?

 

Nada se passa sem que atravesse também os smartphones. Tudo o que é importante e tudo o que não é importante começa, acaba ou passa pelos smartphones. É o mais esplendoroso instrumento de liberdade, de morte, de conhecimento e de destruição. Faz algum sentido tomar uma qualquer decisão sobre o uso destes aparelhos nas escolas?

 

Faz todo o sentido. O uso intensivo e permanente do smartphone é absolutamente destruidor do que de melhor se pode passar na escola. O ensino, o diálogo e o debate são incompatíveis com o smartphone. O recato, o silêncio e a reflexão são destruídos pelo smartphone. A imaginação, a criatividade e o esforço pessoal são substituídos por todos os recursos “fast” que os smartphones proporcionam. O processo educativo inclui dimensões, qualidades e métodos não substituíveis por ciência esquemática, ensino plastificado e cultura empacotada.

 

Sei bem que a liberdade de expressão e o direito à informação, as duas flores mais frágeis da democracia, também estão ligadas ou podem beneficiar dos smartphones. Como sei que os ataques contra as redes sociais e o uso doloso das mesmas são ameaças contra as liberdades. Mas também sei que, tal como tantos outros instrumentos, aparelhos e funções, também estes podem e devem ser regulados. Guiar automóveis, usar armas, pilotar barcos e aviões, beber álcool ou consumir certas substâncias medicinais ou recreativas, exigem autorização, têm regras, só estão acessíveis em certas condições, segundo os locais e as idades. Regular o uso dos smartphones nas escolas, eventualmente também noutros locais de carácter reservado ou privado, é aceitável do ponto de vista da liberdade, desde que não seja instrumento de opressão de qualquer espécie (por exemplo, proibir uns e permitir outros). Nas escolas, muito especialmente nas salas de aula, os smartphones são instrumentos de perturbação e de destruição de valor superior, naquele momento e naquela ocasião, o da aula. A sua proibição nas salas de aula, com ressalvas excepcionais, justifica-se do ponto de vista da liberdade individual, do pensamento e do conhecimento.

Permitir ou proibir crianças de dez anos ou adolescentes de quinze de usar smartphones onde quiserem e quando quiserem são prerrogativas e deveres dos pais e dos familiares. Mas, nas salas de aulas, não são eles que têm autoridade para tanto. Nenhuma máquina desempenha com vantagem as funções da aula e do ensino. Nenhuma cópia é superior ao diálogo e ao estudo. Nada substitui o carácter humano do processo educativo.

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Público, 14.9.2024