As políticas públicas têm, entre nós, resultados muito variados. Há, ao longo dos anos, êxitos indiscutíveis, como nos casos dos serviços domésticos, da mortalidade infantil, da alfabetização e do desenvolvimento da ciência. Vamos admitir que os responsáveis por estes feitos são os governos (uns mais do que outros), as autarquias (com diferenças entre elas), a Administração Pública, as empresas e os cidadãos. É o que se chama uma história feliz. Todos contribuíram para o bem de todos.
Mas também há resultados negativos. Ou seja, erros, falhanços, ineficácia, injustiça e corrupção. Os responsáveis serão mais ou menos os mesmos, dos cidadãos aos governos, passando pela empresas e pelas autarquias. Só que há algo mais a dizer. Cada um culpa os outros pelos erros e atrasos. Cada partido, com anos de governo, culpa os anteriores e os sucessores. Os partidos sem experiência de governo culpam os outros. As autarquias culpam os governos e a Administração central, além dos partidos das suas oposições. Os cidadãos culpam quase todos: “eles”.
Será sempre assim. É muitas vezes assim. O eleitorado lá vai fazendo distinções, por vezes acertadas, por vezes ilusórias, mas sempre verdadeiras pois são as suas escolhas. É frequentemente difícil apurar quem foi responsável pelos erros e pela inércia. A democracia é assim. Por isso a “não democracia” culpa tudo e todos, com os chavões habituais: “são uns inúteis”, “ladrões” ou “corruptos”. Não se vai lá muito longe com esta disposição de espírito, mas a democracia é assim. Bom é saber guardá-la, com as suas imperfeições e as suas insuficiências.
Este relativismo sereno não pode ocultar os casos mais sérios. Há na verdade situações e falhanços que merecem análise atenta. Não propriamente para designar o culpado e encostar o responsável no pelourinho. Mas para perceber porquê. Só depois disso será possível fazer melhor.
É difícil eleger os casos mais graves e que melhor nos podem servir para aprender. Mas, nos tempos que correm, o primeiro parece ser o Serviço Nacional de Saúde. Aquele que foi, para muitos e durante anos, a pérola da democracia portuguesa e o caso mais brilhante das políticas públicas, transformou-se, diante de todos, com notícias sucessivas, no caso mais flagrante e no insucesso mais cruel. O fiasco das urgências, das maternidades, da obstetrícia e das cirurgias ultrapassa os limites do entendimento. Dinheiro? Investimento? Previsão? Organização? Vencimentos? Ganância? Concorrência? Mudança de costumes? Alteração da procura? Tudo pode ser invocado. Mas tudo era previsível. E para tudo havia recursos. O que faltou? O que falhou? Por que razão PS e PSD, ao longo de décadas de governo, não souberam gerir, não conseguiram corrigir, falharam as previsões, descuraram o sistema e deixaram o SNS entregue ao acaso e aos profissionais que, contra o vento, tentam fazer muito mais do que os seus deveres?
Segundo caso de incompreensível incompetência, o do aeroporto de Lisboa. Após dez, vinte, trinta anos de hesitação, de promessas, de estudos, de contradições, de certezas, de garantias e de demagogia, ainda estamos nas vésperas das decisões, na antevéspera dos concursos e longe de certezas sobre a dimensão, a localização, o equipamento e a modalidade. Ao longo das décadas, vários líderes do PS e do PSD, Primeiros-ministros dos dois partidos e diversos ministros de ambos, anunciaram convicções e tomaram decisões. Contradisseram-se e desmentiram-se. Negaram o que fizeram e mudaram de opinião. E não foram só os partidos, os governos e a Administração pública, foram também as mesmas empresas de auditoria, de projecto, de consulta, de advogados, de engenharia e de lobby. O aeroporto já teve pelo menos cinco localizações, três variantes e quatro modalidades. Com frequência, as mesmas pessoas ou as mesmas instituições disseram, em poucos anos, o que se devia fazer e o seu contrário.
Terceiro caso de inegável incompetência, de absoluta insensatez e de incompreensível falhanço: o caminho-de-ferro, a rede de comboios, o sistema antigo, as novas linhas e o famigerado TGV. O que se passou realmente nestes trinta anos durante os quais todos os governos e os seus dois grandes partidos, PS e PSD, prometeram renovar, revalorizar, equipar, modernizar, aumentar e melhorar as redes existentes e construir novas e todos, sem excepção, fizeram exactamente o contrário? Fecharam centenas de quilómetros de linhas. Apodreceram outros tantos. A “grande velocidade” foi adiada décadas. Os equipamentos ficaram obsoletos. O sistema actual é um verdadeiro escândalo de desconforto, de insegurança e de ineficácia.
Quarto caso a merecer análise, o estado a que a justiça chegou. A morosidade é proverbial. A tendência para a prescrição inscreveu-se nas tradições nacionais. A luta entre corpos profissionais, agressivos e auto-suficientes, atingiu cumes inéditos. O uso e abuso de escutas telefónicas e a gestão das mesmas ao longo do tempo e em conformidade com as qualidades dos “escutados” ou de suas vítimas desesperam qualquer pessoa ciosa do Estado de direito e dos direitos dos cidadãos. A divulgação de segredos e de conteúdos de escutas é hábito que distorce o direito e o sentimento de justiça. A evidente desigualdade social que a justiça portuguesa confirma e dilata é indiscutível. A corrupção continua a minar impunemente os alicerces da democracia. A incapacidade de adiantar e terminar processos que envolvam muito dinheiro, políticos reputados e ricos poderosos começa a ser lendária. A perda de confiança na justiça, por parte de tantos cidadãos, é notória e perigosa. A justiça vive em desequilíbrio profundo, favorecendo alguns profissionais, certos corpos e os poderosos. Com uma característica especial: como toda a gente depende da justiça, como quase todos aspiram a justiça e como muitos receiam represálias, estabelece-se uma crença: não é assim tão grave, a justiça ainda faz muito, são só uns casos excepcionais… Verdade é que parece ser o caso mais flagrante de impotência do legislador, de fraqueza do soberano e de incapacidade dos reformadores.
PS e PSD têm de comum uma história de serviços prestados ao país e à população. Essa história é indiscutível. Mas também têm de comum uma enorme ineficácia e um estranho hábito de uso e abuso do poder político. Como têm de comum terem deixado decapitar a inteligência e a capacidade técnica do Estado, deixando-o à mercê da demagogia e dos vampiros habituais.
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Público, 10.8.2024
3 comentários:
É isso a democracia?
Não, é a obra típica de treteiros.
“ deixando-o à mercê da demagogia e dos vampiros habituais” - se algo nos tem sido servido nestes últimos 50 anos, em doses cavalares e de forma transversal a todo o espectro político, é demagogia e vampiragem.
A triste realidade é que há 50 anos não se vislumbra um único projecto/ideia de horizonte colectivo capaz de agregar e fazer prosperar enquanto Sociedade.
Tirando e esgotado o espantalho ditadura, de forma generalista a única ideia colectiva semeada. Todas as políticas públicas têm sido pensadas e executadas numa perspectiva corporativista, soberba, controladeira e até sectária. Quase toda a fabricação mediática e produção académica uma torrente ilusões e disfunções.
O bem-comum e o sentido de legado simplesmente parece não existir. Basta ver todo este abandono e desertificação do território. Toda essa desigualdade e desvalorização económica entre cidades, entre o mundo rural e urbano.
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