sábado, 30 de julho de 2022

Grande Angular - Nada está perdido

É difícil escolher a frase mais adequada. “Nada está perdido”? Ou “nem tudo está perdido”? O futuro dirá. Mas há aqui qualquer coisa. Apesar das sombras, o governo e a legislatura ainda têm futuro. E trabalhos. E obra a fazer.

Algo parece ou está errado. Nasceu o sentimento de que a legislatura pode durar menos do que previsto. E que o governo não está à altura da necessidade. Ainda o governo não tem seis meses e já se fala de crise. A legislatura fica vulnerável quando meia dúzia de deputados de esquerda e uma dúzia de direita conseguem condicionar a assembleia. A verdadeira ameaça europeia é a do fascismo russo, mas o governo e os socialistas vivem aterrorizados com o fascismo do Chega, que incomoda muita gente, mas não mete medo a ninguém. E já o governo sente a necessidade de fazer “reuniões de reflexão” especiais para relançar e coordenar. O governo revela cansaço de ideias e vacuidade de projectos. Anda à procura de segundo fôlego, quando nem sequer mostrou o primeiro.

Sem que se perceba exactamente porquê, o governo dá repetidos sinais de fraqueza. Insiste nos bons resultados da sua gestão, mas todos os dias é desmentido pela realidade. A autoridade do “chefe” não é posta em causa, mas é deficiente o seu papel de orientador, de coordenador e de piloto.

O partido do governo vive eufórico com o seu papel, surdo com a sua força e desnorteado com a enormidade das tarefas. Tem orgulho na maioria absoluta, mas é incapaz de governar democraticamente, em diálogo, com eficácia e respeito pelas instituições. Vive obcecado com os ataques do Bloco, ínfima parcela da legislatura, mas potente propagandista de causas fracturantes. O PS não resiste à vaga das “questões de sociedade”, o aborto, a eutanásia, a adopção e o casamento de homossexuais, as minorias, o racismo, a imigração e as questões de género. Os governos socialistas hesitam entre ocupar-se seriamente dessas questões ou deixar correr as bases do partido que assim não se envolvem em política. O problema é que os dirigentes socialistas começam a acreditar nessas estranhas questões.

Todas as semanas, os governantes se multiplicam em aparições públicas. Começa a ter-se a impressão de que os seus gabinetes têm sucursais nos canais de televisão. Cada vez que surge novo problema, vacinas ou incêndios, fecho de maternidade ou falta de abastecimentos, o governo responde da mesma maneira: são problema estruturais, para os quais são necessárias respostas estruturais. Para todos e cada um desses problemas, das filas de espera aos preços dos combustíveis, da falta de comboios ao inferno dos aeroportos, o governo mostra ou promete planos estruturais, globais e integrados, a médio e longo prazo, sustentáveis, transversais e consistentes. Para já não dizer consolidados e resilientes. Nenhum desses planos resolve coisa alguma, a começar pela porta da maternidade, os transportes ferroviários e os professores nomeados a tempo e horas.

O governo e o seu partido sabem que não têm desculpas. A pandemia, a crise energética e a guerra na Ucrânia tornaram tudo mais difícil, mas não são motivos para baixar os braços. Pelo contrário, são fortes razões para lutar, insistir e realizar. O governo, o seu partido e o seu grupo parlamentar repetem, sem aparente convicção, os mesmos argumentos e desculpam-se com as crises internacionais. Mas já poucos acreditam. A não ser os próprios.

O governo tem o que tanta falta faz, em todos os tempos e circunstâncias. Tem trunfos que cheguem. Tem maioria absoluta. Tem a benevolência presidencial. Tem uma oposição fraca à procura de si própria. Tem uma extrema-esquerda reduzida a duas brigadas sem peso nem futuro. Tem um mundo sindical relativamente sossegado, com trabalhadores preocupados com a inflação, os empregos precários e os baixos salários. Tem um patronato enfraquecido e dependente. Tem tempo. Tem meios e fundos europeus. Se tem isso tudo, por que razão não age? E por que dá esta sensação ou certeza de inabilidade e imperícia?

A situação na saúde pública é de tal modo grave que se chega a pensar em requisição civil ou em estado de emergência. As urgências de obstetrícia, os blocos de parto e as maternidades fecham por períodos de horas ou dias, num indecoroso espectáculo inédito em Portugal e na Europa. É patético ver, nas televisões, quase todas as noites, os anúncios das horas de fecho das urgências. A esperança dos governantes é de que a população esteja anestesiada com os bombardeamentos na Ucrânia, os doentes de COVID e os incêndios nas florestas. Sem qualquer dúvida, estamos perante uma das mais graves falhas da Administração Pública portuguesa das últimas décadas. E certamente diante de um desastre sanitário e social nunca visto. Sem hesitação, trata-se de uma profunda crise de gestão, de política pública, de coordenação, de previsão e de organização. Não há explicação “estrutural” que defenda as autoridades sanitárias e políticas.

A decisão sobre o aeroporto transforma-se no caso mais absurdo da vida pública portuguesa. O governo e os seus ministros mostram-se de tal modo enredados nos processos de decisão e de contradição que o caso ficará na história com todos os títulos adequados: o mais longo, o mais contraditório, o mais dispendioso, o de maior prejuízo, o de mais envolvimentos de interesses ilegítimos, o de maior incompetência técnica e científica, o de maior ineficácia e o de maior desperdício directo e indirecto. Já com enormes responsabilidades históricas do seu partido neste processo, o governo saltou para o aeroporto a pés juntos, com a graciosidade de um elefante e a aparente competência de um mastodonte. Por mais que nos habituemos a lembrar os trinta anos de planos e estratégias, não se consegue ficar calmo. A simples enumeração das sucessivas escolhas, OTA, Portela, Alcochete, Montijo, Rio Frio e Beja, mostra a evidência deste desastre.

Como a Justiça entrou de férias, só lá para Outubro teremos novamente a crónica e as notícias dos grandes casos, do crime de corrupção e colarinho branco, das “causas célebres”. Mas a passividade do Parlamento e a abstenção do Governo persistem neste sector crítico.

Entretanto, lá fora, na rua e na vida, a inflação cresce a níveis há muito esquecidos. A desigualdade e a pobreza mantêm a sua tendência crescente. E o governo prepara mais planos sustentáveis, resilientes e transversais.

Nem tudo está perdido. Ainda há tempo e meios. Mas é difícil perceber a miopia.

Público, 30.7.2022 

2 comentários:

Jose disse...

Quando a Política e os políticos se movem pelo poder como primeiro e mais premente impulso, as questões associadas ao serviço público são instrumentais a um tal propósito.
Alcançado o poder, se estabelecido sem ameaças próximas previsíveis, qual atleta que termina árdua prova, todo o esforço adicional se apresenta excessivo; diferentemente, se o ideal de serviço público fosse o impulsionador da acção, todo o empenho, todo o entusiasmo, estaria para lá do alcançar o poder, que não estando sob ameaça, mais recursos disponibilizaria para a acção de bem servir.

Nisto estamos, num regime político acomodado à mediocridade e ao usufruto das vantagens do poder, que só rituais lutas para o alcançar mobiliza para a acção.


Bmonteiro disse...

Et pourtant...se um semanário quiser:
UM PSEUSOCIALISTA TRANQUILO EM DEMOCRACIA LIBERTINA

«Elites negligentes, pouco industriosas e pouco cultas» "O Atraso Português/ Modo de Ser ou Modo de Estar?" De João Brás
e a fechar:
Escorados num sistema político cristalizado, os pp a tudo fazer para manter os interesses dos seus membros e dirigentes, razão para em dias como o do passado 30 J de eleições legislativas, ficar em casa. Bem acompanhado pela desiludida simpatizante do PS, como eu, a socióloga e historiadora Maria Filomena Mónica.