domingo, 24 de novembro de 2019

Grande Angular - Proximidade democrática

A ideia de que a democracia é um antídoto eficaz contra as aventuras antidemocráticas, sejam elas populistas, fascistas ou comunistas, tem-se revelado infelizmente pouco segura e até, por vezes, errada. Ou antes, a democracia é insuficiente para assegurar a democracia e pode mesmo, em processo demagógico, transformar-se em instrumento de ratificação de déspotas. Aliás, os verdadeiros ditadores deste mundo quiseram sempre, um dia, levar a cabo processos eleitorais de fantasia e nunca lhes faltou atrevimento para anunciar vitórias a 90% ou 95%. Todos os ditadores comunistas mandaram fabricar eleições. E Franco e Salazar também não resistiram às tentações eleitorais.
Mas o problema não é só esse. As farsas eleitorais para confirmar os ditadores são de tal modo grosseiras que já não enganam ninguém. A questão mais delicada é a das eleições genuínas, por vezes até honestas, de que resultam ditadores, psicopatas narcisistas e déspotas demagogos imprevisíveis. Na verdade, alguns dos mais ameaçadores dirigentes populistas e não democráticos ou mesmo anti-democráticos contemporâneos foram eleitos pelos cidadãos. Uns tantos foram confirmados e reeleitos, até em processos eleitorais vagamente supervisionados. Noriega, Chavez, Morales, Ortega e Maduro foram eleitos. Trump e Putin eleitos foram. Orbán, Erdogan, Salvini e Kascinscki devem à democracia eleitoral os seus cargos. Bolsonaro e Duterte cumpriram, para ascender à presidência dos seus países, as regras dos processos eleitorais. E não é muito difícil pensar em chefes políticos que, sem serem ditadores, se aproximaram muito de demagogos oportunistas, a quem a democracia nada deve, mas que pela democracia foram ungidos para o exercício do seu espalhafatoso poder político: Fujimori, Berlusconi, Sócrates e Lula, tão diferentes, são bons exemplos.
É verdade que há exemplos de derrotas de populismos e de ditaduras às mãos dos democratas e através de eleições. O caso português, o do 25 de Abril e da revolução que se seguiu, é o melhor exemplo. Vencidos no Estado, nas empresas e nos sindicatos, nas instituições e nas autarquias, nas forças militares e nas polícias, os democratas confiaram nas eleições e acertaram: revolucionários, civis e militares, comunistas e outros aventureiros foram derrotados nas eleições e de tal modo destroçados que nunca mais voltaram, quarenta anos depois, a constituir verdadeira ameaça às liberdades.
Mais do que nunca, vivemos tempos difíceis para as liberdades e a democracia. Habituámo-nos a recear os despotismos e as ditaduras vindos de fora da democracia, por vias da conquista ou graças ao declínio democrático, como dizia Ignazio Silone (“As democracias caem por dentro…”). Os grandes ditadores que tinham conquistado o poder fizeram-no em geral por assalto. O que nos deixava tranquilos, se assim se pode dizer. Bastava proteger a democracia dos seus inimigos externos. Agora que percebemos que as democracias também produzem os seus ditadores, déspotas, líderes irracionais, aldrabões e predadores, a democracia deixou de ser suficiente.
Também se tem pensado que a “proximidade” é uma verdadeira panaceia. Saúde, educação, polícia, segurança, justiça e política: de tudo, de todas as áreas da governação e da administração se diz que a “proximidade” é uma virtude, um trunfo democrático, uma garantia das liberdades e uma certeza da humanização. Nada mais errado. A “proximidade”, com todas as suas virtudes, é quase regra para o populismo e para os déspotas que não acreditam nas instituições. O populismo irascível, quase violento, geralmente impaciente, não acompanha a distância, mas sim a proximidade. A proximidade cria familiaridade e esta permite todas as formas de tratamento, todos os atrevimentos. Castro e Péron sabiam bem ao que andavam.
Os grandes demagogos sabem que é a proximidade que lhes traz vantagens. São excelentes a explorar a insatisfação das promessas não cumpridas pela democracia e pelos partidos clássicos. São também excelentes a fazer as suas próprias promessas, sobretudo as impossíveis de cumprir. Procuram sempre a proximidade, o contacto directo com as massas, as pessoas, o povo, porque é assim que se dá o salto por cima das instituições. Os demagogos são excelentes nas manifestações sem partido nem sindicato, nos movimentos sem estrutura nem organização. Até porque sabem que esses movimentos e essas manifestações têm origens, têm causas: o falhanço da democracia, os privilégios da democracia, o não cumprimento de promessas e a mentira das democracias.
A proximidade é uma ilusão perigosa. Em Portugal, os políticos mais próximos do povo foram Vasco Gonçalves, Sá Carneiro, Mário Soares, José Sócrates e António Costa. Pouco ou nada de comum entre eles. E não foi com certeza a proximidade que lhes trouxe êxitos e garantiu justeza aos seus governos. Não é evidente que Costa e os seus ministros são os políticos mais próximos do povo, que mais frequentemente aparecem nos comícios de sexta-feira, nas inaugurações de sábado e nas sessões de esclarecimento de domingo? Não é cristalinamente exacto que Marcelo é de longe o Presidente mais próximo do povo e dos eleitores, da televisão, dos telejornais e dos corações dos Portugueses?
A proximidade é efémera, falsa, fictícia e ilusória. A transparência é mítica, aparente e falaciosa. A política que está em crise é a política demagógica e mentirosa. A que promete e negoceia tudo. A que dá tudo até ao endividamento. A que beneficia quem chega primeiro, quem tem amigos do sindicato, na confederação ou no partido. A que privilegia quem dá mais votos, os funcionários públicos ou os pensionistas, por exemplo. A que traça bissectrizes entre os lóbis. A que se limita a ser o lugar geométrico dos interesses e das corporações. A que se desdiz com naturalidade e talento. A que mente com atrevimento e encanto. A que deixa arrastar uma justiça incapaz, mas inaugura auto-estradas. A que permite o declínio do serviço nacional de saúde, mas subsidia a Web e os jogos digitais. A que deixa aumentar a desigualdade no sistema universitário e recompensa os ricos. A que procura subsidiar os mais pobres, mas não se importa com o demérito nem a falta de esforço. A que exige frugalidade dos trabalhadores do sector privado, mas privilegia os funcionários públicos.
Salvar a democracia obriga a ser muito exigente com a democracia. Preservar a democracia obriga-nos a ser impiedosos, não com os demagogos, o que é fácil, não com os populistas, o que é simples, mas com os democratas.
Público, 24.11.2019

1 comentário:

Para a Posteridade e mais Além disse...

uma democracia com tremendas desigualdades sociais não se aguenta