NÃO FORA A ANSIEDADE que aflige milhões de cidadãos, no Ocidente e no resto do mundo, e poderia dizer que vivemos momentos fascinantes. São momentos de transição. E tempos de síntese, esperemos. Temos, creio, a sensação nítida de que vivemos um momento inesquecível em que muitos dos erros cometidos se tornaram evidentes e muitas das necessidades do futuro parecem indiscutíveis. Em toda a Europa, mais de meio século de paz e de crescimento económico chega ao seu termo e parece exigir novos modos e novas ideias, que todos reclamam, mas que ninguém descobriu. Em Portugal, mais de trinta anos de crescimento, de reformas e de melhoramento da nossa condição, chegam igualmente ao fim, mas de modo brutal. Uma crise sem igual e uma incerteza sem equivalentes próximos tingem o quotidiano de apreensão.
Ao contrário de uma ilusão criada há algumas décadas, estamos sem consciência clara do que queremos, do que podemos e do que seremos. A crença na previsão e no planeamento cresceu e enraizou-se durante os anos serenos de desenvolvimento e de prosperidade. Mas agora que tais actividades seriam mais necessárias do que nunca, percebemos melhor a sua irrelevância em tempos difíceis. Prever e antecipar parecem hoje actividades fúteis. Com menos meios e recursos, com menor autonomia de decisão e com superior dependência, temos dificuldades em preparar o futuro. No que não estamos sós: outros, na Europa, conhecem uma condição igual ou parecida. O que em nada nos consola. Apenas nos revela que a situação é realmente difícil e complexa e que os problemas são de monta. Todos os dias procuramos soluções na Ciência e na técnica, mas não as encontramos. Tentamos saber o que vai ser dentro de anos, o que serão as gerações que vêm a seguir, e não conseguimos.
Certezas com as quais nascemos e vivemos são hoje restos de doutrinas impotentes. O Estado, como configuração política de uma nação e de uma vontade colectiva, é uma caricatura do que foi. O mercado, como lugar de troca, de progresso e de livre escolha, mais parece um embuste. Os direitos individuais, como fonte dos projectos colectivos, são quase esquecidos. Os direitos adquiridos, no que alguns têm de reserva de dignidade e de certeza, são cada vez mais considerados dispensáveis, obsoletos ou descartáveis. A relativa autonomia dos povos livres em combinação com uma razoável independência dos Estados nacionais: eis um equilíbrio delicado que está evidentemente hoje em mau estado. Estas realidades e estes valores estão em causa, fortemente em questão. Sabemos já que não permanecerão como sempre foram. Mas não fazemos a mínima ideia do que serão, naquilo que se transformarão. Não sabemos sequer se a transformação será um progresso. Aliás, esta última noção está ela própria em causa e as nossas gerações aprenderam, ao longo do século XX, que o processo histórico não é sempre progresso. Em tudo o que perdemos, em nome do progresso, incluem-se valores e tradições, culturas e liberdades, costumes e sentimentos cuja falta se faz sentir em permanência. A globalização, a metrópole, as massas, a rapidez, o automatismo, a competitividade e a uniformidade geraram valores contrários à comunidade humana, ao pensamento, à qualidade estética, ao brio e à compaixão. Nem sequer a dimensão do que se ganha é suficiente para esquecer o que se perde. Pode até ganhar-se mais, em proporção, do que se perde. Mas o que se perde é, muitas vezes, uma amputação de humanidade e de cultura.
Os Estados e as nações, tal como os conhecemos durante décadas ou séculos, deixam gradualmente de existir e cedem os seus lugares a conglomerados sociais, políticos e regionais em busca do seu nome.
Os dois grandes pensamentos únicos do século XX, o da glória do Estado e o do endeusamento dos mercados, depois de revelarem toda a sua extensão de malfeitorias e de êxitos, demonstram ser incapazes de resolver o presente crítico, quanto mais o futuro.
Os Estados, como expoente da organização política, esqueceram frequentemente os seus cidadãos. E mesmo quando lhes garantiram sobrevivência e segurança, nem sempre lhes protegeram os seus direitos individuais.
Os mercados, esse lugar de racionalidade implícita, passaram a reinar sobre tudo, não só sobre a economia e a produção, o que seria razoável, mas também, como diria Michael Sandel, sobre tudo o que não lhes diz respeito: o espírito, o amor, a arte, a moral, a cultura, a educação e a saúde. “Tudo se compra, tudo está à venda”, eis uma frase banal e caricatural que se transformou em dolorosa verdade.
Como disse no início: esta transição é fascinante! Poucas coisas são espiritualmente mais cativantes do que ver as sociedades mudar, os comportamentos alterarem-se e os valores evoluírem. Além de perceber, com certeza.
O problema é que esta transição é perigosa. Já tem deixado, pelo caminho, mortos e feridos, valores perdidos e espíritos destruídos. A certos preços, com determinados custos, as transições não valem a pena. Ou são condenáveis. Ou representam momentos negros na história da humanidade. As dezenas de milhões de mortos, a destruição de cidades, o assassinato de milhões de civis, a reinvenção da tortura e o totalitarismo como jamais se tinha conhecido foram, no século XX, preços elevados de mais, mesmo sabendo que depois vieram décadas de paz e de democracia a uma grande parte do mundo.
Sem comparar o momento actual com aqueles anos de horror, podemos reflectir no preço a pagar por mais uma transição de era e de ciclo. Depois do primado do pensamento dominante que elegeu o Estado como fonte e condição de bem-estar, chegou o domínio da ideia do mercado como fonte de liberdade. De ambos retirámos benfeitorias indiscutíveis. A segurança social e a protecção dos fracos, por um lado, a liberdade e a responsabilidade individuais, por outro. Mas também tivemos o império do colectivo, a opressão do indivíduo e o menosprezo pela liberdade, tal como tivemos, depois, o desprezo pelo sofrimento, o elogio do mais forte e a transformação em mercadoria de tudo quanto é humano.
Não soubemos, até agora, criar a síntese. Não é seguro que o saibamos fazer. Há quase cinco anos que, com as sucessivas crises financeiras, seguidas de graves perturbações sociais e políticas, os homens e as mulheres do nosso tempo vivem tempos de aflição, de insegurança e incerteza.
O desemprego a níveis jamais vistos, a pobreza em expansão, os sistemas de protecção em crise de recursos, os milhares de falências e insolvências e a iminente ruptura de serviços públicos estão aí a confirmar o realismo do veredicto acima resumido. Poupanças de vidas inteiras perdidas! Vidas activas terminadas aos quarenta anos! As políticas parecem recuar perante a enormidade. Os Estados revelam fragilidades insuspeitas. A União Europeia e outros arranjos internacionais, ainda há duas ou três décadas as partes mais visíveis do sonho optimista e voluntarioso, demonstram não estarem preparados para defrontar uma crise omnipresente.
Destes anos, um único valor parece ter saído fortalecido: ganhar, ganhar a todo o custo, vencer, vencer a todo o preço. Transformar o vizinho em rival e destruir o rival. A competitividade e a produtividade, necessárias, com certeza, importantes, certamente, deixaram de ser instrumentos para se tornarem fins em si próprias. A última palavra consiste em ganhar mais que todos. O que quer dizer ganhar à custa de todos.
A capacidade destas doutrinas para desumanizar a sociedade é ilimitada. A pobreza é agora um merecido castigo. A desigualdade, uma condição necessária à vitória dos melhores. A injustiça, uma desculpa dos fracos. A Europa, durante séculos relativamente imune a estes valores, deixou-se contagiar, talvez por uma certa lenda americana. É hoje frequente assistirmos a situações em que a mais dura eficiência e o mais ácido pragmatismo dominam qualquer veleidade humana de compaixão ou solidariedade. De beleza ou de cultura.
É verdade que aquelas ideias vieram corrigir graves defeitos na organização das sociedades. Com efeito, as doutrinas que defendiam o Estado como principal fonte de liberdade, de segurança, de bem-estar e de desenvolvimento, mostraram amplamente a sua perversa impotência. Não conseguiram escapar à corrupção, ao despotismo burocrático e à ineficiência. Por isso a confiança nos mercados e a fé nos direitos individuais pareciam marcar uma nova era. Mas aconteceu o pior: a desregulação, em vez de nos salvar da burocracia, da corrupção e da ineficiência, condenou-nos a novos males, os da impiedade e os do mercantilismo. E os de uma nova corrupção, a financeira e política, de dimensões inéditas na história recente da humanidade. É verdade que a massificação democrática de bens e serviços, a começar pelos low costs de toda a espécie, nasceu desta desregulação, de que resultaram benefícios indiscutíveis. Mas as crises financeiras e económicas que se seguiram têm igualmente de ser contadas. E a estas crises, uma sucede, a social, que agora temos diante de nós, com o seu pior emblema, o do desemprego crónico, praga maior cujas consequências a prazo são ainda inimagináveis.
É assim natural que, nestes tempos de crise, o termo, a ideia e a noção de coesão social se tenham transformado no denominador comum de muitas preocupações, de planos políticos e de esperança. Como sempre, sabemos do que se fala, mas nem sempre temos consciência das implicações.
A coesão social está no centro das preocupações dos sociólogos e dos filósofos desde o início do século XX. A questão é de facto essencial. Que permite que os cidadãos vivam juntos, em sociedade? O que agrega os indivíduos e os grupos e lhes permite encontrar e definir regras para a vida em comum? Que factores integram regras e normas, assim como hábitos e costumes, que definem e estabelecem uma ordem social, um modus vivendi em conjunto? Por que se acredita no Direito? Por que se respeita a Constituição? Por que se seguem códigos de conduta? Por que se acata livremente o poder político? Por que se respeita o vizinho e a propriedade? Poder-se-á responder que é o medo, a repressão e a força coerciva do Estado, mas não chega. A pergunta seguinte é óbvia: por que se aceita a força coerciva do Estado? A coesão social parece ser cada vez mais uma resposta adequada. Mas o que faz a coesão social? Como nasce? De que resulta?
Entre as muitas respostas que vão sendo dadas ao longo dos tempos, uma merece especial menção. A coesão depende do sentimento de pertença. Não se confunde, mas depende. A coesão social é a força que mantém um grupo humano ou uma comunidade ligada, mesmo em tempos de dificuldades. A coesão é uma espécie de força centrípeta que mantém pessoas e grupos ligados, mesmo quando forças centrífugas exercem pressão em sentido contrário. A coesão une quando outras forças afastam. A coesão aproxima, quando outros factores separam. Quer isto dizer que a coesão nasce onde existe um sentimento comum, uma história partilhada, uma tradição, um interesse e uma identidade. A coesão depende do sentimento de pertença a uma comunidade local, regional ou nacional. Mas também de sentimentos de pertença a agrupamentos de livre escolha. A questão não é apenas de tradição e de identidade. O sentimento de pertença tem mais valor do que isso. Traduz um conforto moral, mas também um interesse. Ao pertencer a um grupo ou uma comunidade, espero sempre deles a satisfação de alguns interesses e necessidades, a começar pela segurança. Ao sentir que pertenço a um grupo, predisponho-me a estabelecer um permanente comércio com e ele: a dar e a receber. Até porque, em geral, este sentimento está ligado não só a uma tradição e uma cultura, mas também a um quadro local e a um território, assim como a uma forma política de governo e administração. Ao pertencer a um grupo ou uma comunidade, estou preparado para respeitar os outros, desde que me sinta respeitado.
Muitas das dificuldades que a Europa atravessa hoje, mais propriamente a União Europeia, resultam da inexistência de sentimento de pertença europeia tão forte quanto o sentimento de pertença a um Estado nacional. Assim como do facto de as diferenças nacionais e regionais não serem entendidas como ameaças à coesão social.
Destes sentimentos ficaram inúmeros testemunhos culturais. Entre tantos outros, vale a pena recordar George Orwell e o seu orgulho em pertencer à comunidade inglesa, a uma sociedade onde se tinham reconhecido os direitos e as liberdades, a um povo culto e amante da Natureza. A uma sociedade, dizia, que permitia o orgulho, à direita e à esquerda, de a ela pertencerem. A um povo que bebia chá, apesar das diferenças de classes.
A coesão social está modernamente associada a conceitos de justiça, igualdade e solidariedade. São obviamente sinais dos tempos. Mas não se trata de conceitos semelhantes. Uns poderão ser instrumentos de outros, não mais do que isso. Coesão não é sinónima de justiça ou de igualdade. É possível que a injustiça ameace a coesão. Como é provável que a desigualdade em excesso ponha em causa a coesão. Mas são conceitos e realidades diferentes.
A coesão social está associada, isso sim, a conceitos de sobrevivência, reprodução, organização comum e costume. Coesão social pode conviver com liberdade ou não. Com democracia ou não. Com igualdade social ou não. Com liberdades individuais ou não. Que dizer da tribo amazónica que era de tal modo coesa que quando um indivíduo se perdia do grupo, inevitavelmente morria, sem capacidade para sobreviver, nem sequer, em geral, para encontrar o seu grupo? Aliás, o castigo máximo que o grupo administrava aos seus membros era o ostracismo, a expulsão do grupo. Não se pode negar a coesão a este grupo. Mau grado a inexistência da autonomia pessoal e da liberdade individual tal como as entendemos. Mas outra coisa é a coesão social em entidades complexas, em sociedades divididas em regiões, autarquias, classes sociais, etnias e instituições. Aqui, as regras são diferentes. A coesão e a liberdade, a coesão e os direitos individuais têm coexistência difícil e exigente. Nestas sociedades, a coesão necessita ser cultivada e alimentada. A coesão exige informação e explicação. A coesão exige cuidado e respeito.
Além de coesão social, é costume falar-se também de coesão regional ou até de coesão internacional. Creio tratarem-se de variantes da primeira. Ou de pretextos ideológicos. Não consigo imaginar outras formas de desenvolvimento que não sejam diferentes entre si, umas das outras. Não creio que o “desenvolvimento igual e harmonioso ” seja deste mundo. Assim sendo, as formas de coesão a cultivar entre várias regiões ou entre vários países são arquitecturas da coesão social. Ou são simplesmente ilusões e flores de retórica. O que hoje os países em dificuldade pedem aos países ricos da Europa e que designam por solidariedade é uma ficção. Os Estados servem para defender interesses nacionais e assim será por muito tempo. Os países menos desenvolvidos têm de defender a lógica da coesão internacional, isto é, a solidez da União. Portugal e outros países têm de defender os seus direitos e, em nome da União, compensar o egoísmo excessivo dos países mais afortunados.
Está ameaçada a coesão? Muito, a começar pela perda do sentimento de pertença. Tudo ou quase tudo nas modernas tendências de desenvolvimento parece contrariar este valor. As comunidades locais dispersam-se nas grandes áreas metropolitanas. Os subúrbios das grandes cidades criaram áreas em mosaico de indiferença e de contiguidade estanque: as micro comunidades não formam autarquias ou comunidades. As migrações misturam populações inteiras sem necessariamente as juntar. A globalização dos mercados retirou identidade e origem à produção, assim como defesa e segurança. A cultura global ou universal destrói as formas mais conhecidas de demarcação de identidades e de pertenças. A competitividade sobrepôs-se definitivamente aos valores de solidariedade. O mercantilismo deu valor monetário a tudo, consciência, beleza, sublime e sentimento. A gestão eficaz separou as gerações e as famílias. A ajuda funcional e a protecção institucional desumanizaram a solidariedade.
Todas estas grandes tendências contrariam a ideia herdada de coesão. Ou antes: evoluíram mais depressa do que as formas de coesão. A sociedade de informação, o comércio, as finanças e a economia avançaram rapidamente, depressa de mais, não foram acompanhadas pela evolução de formas sociais e políticas que garantissem a coesão e acompanhassem o desenvolvimento acelerado do mundo material e da informação. Da família ao bairro, do grupo à Igreja, do sindicato à empresa; do clube ao partido e à associação, da freguesia ao município; e da região ao Estado: eis uma sucessão de pertenças que estruturam um sentimento, definem referências, são servidas por uma linguagem e uma cultura e alimentam a coesão.
A coesão está ameaçada. Sim. Vemo-lo todos os dias. No desemprego, nas migrações de desespero, nas falências, no abandono e na desistência. A desigualdade, a injustiça e a pobreza podem ser sérios perigos. Tal como o desenraizamento, causa da quebra do sentimento de pertença. Contra esses, todos os meios devem ser utilizados. As políticas sociais possíveis. A informação permanente e honesta por parte dos governos e das empresas. A capacidade de explicar as políticas e os sacrifícios. A capacidade para ouvir. A vontade de diálogo com forças políticas, económicas e sociais. Eis hábitos e práticas actualmente em sério défice.
Existe uma real dificuldade em conceber a coesão, em tempos de crise, sem abdicar da diferença, dos conflitos e dos interesses contraditórios. Ora, a coesão pode ser compatível com a luta de classes, com a competição partidária e com a concorrência. A coesão social é isso mesmo, o que junta os diferentes, mantendo-os, não os eliminando. A coesão que destrói diferenças, esbate interesses e remove contradições é uma coesão imposta, isto é, uma forma de despotismo. A coesão não implica unanimidade, nem consenso absoluto. Coesão implica justamente a ligação de diferentes. E implica liberdade e direitos humanos que fortalecem a coesão. A solidariedade, a associação e a entreajuda são infinitamente mais fortes quando repousam numa cultura forte de direitos individuais. Por isso sentimos, com razão, que a coesão social é factor a preservar em tempos de crise e transição. Sem coesão, podemos esperar o pior. Com coesão, para a qual devem contribuir cidadãos e autoridades, indivíduos e empresas, seremos capazes de muito.
-Ao contrário de uma ilusão criada há algumas décadas, estamos sem consciência clara do que queremos, do que podemos e do que seremos. A crença na previsão e no planeamento cresceu e enraizou-se durante os anos serenos de desenvolvimento e de prosperidade. Mas agora que tais actividades seriam mais necessárias do que nunca, percebemos melhor a sua irrelevância em tempos difíceis. Prever e antecipar parecem hoje actividades fúteis. Com menos meios e recursos, com menor autonomia de decisão e com superior dependência, temos dificuldades em preparar o futuro. No que não estamos sós: outros, na Europa, conhecem uma condição igual ou parecida. O que em nada nos consola. Apenas nos revela que a situação é realmente difícil e complexa e que os problemas são de monta. Todos os dias procuramos soluções na Ciência e na técnica, mas não as encontramos. Tentamos saber o que vai ser dentro de anos, o que serão as gerações que vêm a seguir, e não conseguimos.
Certezas com as quais nascemos e vivemos são hoje restos de doutrinas impotentes. O Estado, como configuração política de uma nação e de uma vontade colectiva, é uma caricatura do que foi. O mercado, como lugar de troca, de progresso e de livre escolha, mais parece um embuste. Os direitos individuais, como fonte dos projectos colectivos, são quase esquecidos. Os direitos adquiridos, no que alguns têm de reserva de dignidade e de certeza, são cada vez mais considerados dispensáveis, obsoletos ou descartáveis. A relativa autonomia dos povos livres em combinação com uma razoável independência dos Estados nacionais: eis um equilíbrio delicado que está evidentemente hoje em mau estado. Estas realidades e estes valores estão em causa, fortemente em questão. Sabemos já que não permanecerão como sempre foram. Mas não fazemos a mínima ideia do que serão, naquilo que se transformarão. Não sabemos sequer se a transformação será um progresso. Aliás, esta última noção está ela própria em causa e as nossas gerações aprenderam, ao longo do século XX, que o processo histórico não é sempre progresso. Em tudo o que perdemos, em nome do progresso, incluem-se valores e tradições, culturas e liberdades, costumes e sentimentos cuja falta se faz sentir em permanência. A globalização, a metrópole, as massas, a rapidez, o automatismo, a competitividade e a uniformidade geraram valores contrários à comunidade humana, ao pensamento, à qualidade estética, ao brio e à compaixão. Nem sequer a dimensão do que se ganha é suficiente para esquecer o que se perde. Pode até ganhar-se mais, em proporção, do que se perde. Mas o que se perde é, muitas vezes, uma amputação de humanidade e de cultura.
Os Estados e as nações, tal como os conhecemos durante décadas ou séculos, deixam gradualmente de existir e cedem os seus lugares a conglomerados sociais, políticos e regionais em busca do seu nome.
Os dois grandes pensamentos únicos do século XX, o da glória do Estado e o do endeusamento dos mercados, depois de revelarem toda a sua extensão de malfeitorias e de êxitos, demonstram ser incapazes de resolver o presente crítico, quanto mais o futuro.
Os Estados, como expoente da organização política, esqueceram frequentemente os seus cidadãos. E mesmo quando lhes garantiram sobrevivência e segurança, nem sempre lhes protegeram os seus direitos individuais.
Os mercados, esse lugar de racionalidade implícita, passaram a reinar sobre tudo, não só sobre a economia e a produção, o que seria razoável, mas também, como diria Michael Sandel, sobre tudo o que não lhes diz respeito: o espírito, o amor, a arte, a moral, a cultura, a educação e a saúde. “Tudo se compra, tudo está à venda”, eis uma frase banal e caricatural que se transformou em dolorosa verdade.
Como disse no início: esta transição é fascinante! Poucas coisas são espiritualmente mais cativantes do que ver as sociedades mudar, os comportamentos alterarem-se e os valores evoluírem. Além de perceber, com certeza.
O problema é que esta transição é perigosa. Já tem deixado, pelo caminho, mortos e feridos, valores perdidos e espíritos destruídos. A certos preços, com determinados custos, as transições não valem a pena. Ou são condenáveis. Ou representam momentos negros na história da humanidade. As dezenas de milhões de mortos, a destruição de cidades, o assassinato de milhões de civis, a reinvenção da tortura e o totalitarismo como jamais se tinha conhecido foram, no século XX, preços elevados de mais, mesmo sabendo que depois vieram décadas de paz e de democracia a uma grande parte do mundo.
Sem comparar o momento actual com aqueles anos de horror, podemos reflectir no preço a pagar por mais uma transição de era e de ciclo. Depois do primado do pensamento dominante que elegeu o Estado como fonte e condição de bem-estar, chegou o domínio da ideia do mercado como fonte de liberdade. De ambos retirámos benfeitorias indiscutíveis. A segurança social e a protecção dos fracos, por um lado, a liberdade e a responsabilidade individuais, por outro. Mas também tivemos o império do colectivo, a opressão do indivíduo e o menosprezo pela liberdade, tal como tivemos, depois, o desprezo pelo sofrimento, o elogio do mais forte e a transformação em mercadoria de tudo quanto é humano.
Não soubemos, até agora, criar a síntese. Não é seguro que o saibamos fazer. Há quase cinco anos que, com as sucessivas crises financeiras, seguidas de graves perturbações sociais e políticas, os homens e as mulheres do nosso tempo vivem tempos de aflição, de insegurança e incerteza.
O desemprego a níveis jamais vistos, a pobreza em expansão, os sistemas de protecção em crise de recursos, os milhares de falências e insolvências e a iminente ruptura de serviços públicos estão aí a confirmar o realismo do veredicto acima resumido. Poupanças de vidas inteiras perdidas! Vidas activas terminadas aos quarenta anos! As políticas parecem recuar perante a enormidade. Os Estados revelam fragilidades insuspeitas. A União Europeia e outros arranjos internacionais, ainda há duas ou três décadas as partes mais visíveis do sonho optimista e voluntarioso, demonstram não estarem preparados para defrontar uma crise omnipresente.
Destes anos, um único valor parece ter saído fortalecido: ganhar, ganhar a todo o custo, vencer, vencer a todo o preço. Transformar o vizinho em rival e destruir o rival. A competitividade e a produtividade, necessárias, com certeza, importantes, certamente, deixaram de ser instrumentos para se tornarem fins em si próprias. A última palavra consiste em ganhar mais que todos. O que quer dizer ganhar à custa de todos.
A capacidade destas doutrinas para desumanizar a sociedade é ilimitada. A pobreza é agora um merecido castigo. A desigualdade, uma condição necessária à vitória dos melhores. A injustiça, uma desculpa dos fracos. A Europa, durante séculos relativamente imune a estes valores, deixou-se contagiar, talvez por uma certa lenda americana. É hoje frequente assistirmos a situações em que a mais dura eficiência e o mais ácido pragmatismo dominam qualquer veleidade humana de compaixão ou solidariedade. De beleza ou de cultura.
É verdade que aquelas ideias vieram corrigir graves defeitos na organização das sociedades. Com efeito, as doutrinas que defendiam o Estado como principal fonte de liberdade, de segurança, de bem-estar e de desenvolvimento, mostraram amplamente a sua perversa impotência. Não conseguiram escapar à corrupção, ao despotismo burocrático e à ineficiência. Por isso a confiança nos mercados e a fé nos direitos individuais pareciam marcar uma nova era. Mas aconteceu o pior: a desregulação, em vez de nos salvar da burocracia, da corrupção e da ineficiência, condenou-nos a novos males, os da impiedade e os do mercantilismo. E os de uma nova corrupção, a financeira e política, de dimensões inéditas na história recente da humanidade. É verdade que a massificação democrática de bens e serviços, a começar pelos low costs de toda a espécie, nasceu desta desregulação, de que resultaram benefícios indiscutíveis. Mas as crises financeiras e económicas que se seguiram têm igualmente de ser contadas. E a estas crises, uma sucede, a social, que agora temos diante de nós, com o seu pior emblema, o do desemprego crónico, praga maior cujas consequências a prazo são ainda inimagináveis.
É assim natural que, nestes tempos de crise, o termo, a ideia e a noção de coesão social se tenham transformado no denominador comum de muitas preocupações, de planos políticos e de esperança. Como sempre, sabemos do que se fala, mas nem sempre temos consciência das implicações.
A coesão social está no centro das preocupações dos sociólogos e dos filósofos desde o início do século XX. A questão é de facto essencial. Que permite que os cidadãos vivam juntos, em sociedade? O que agrega os indivíduos e os grupos e lhes permite encontrar e definir regras para a vida em comum? Que factores integram regras e normas, assim como hábitos e costumes, que definem e estabelecem uma ordem social, um modus vivendi em conjunto? Por que se acredita no Direito? Por que se respeita a Constituição? Por que se seguem códigos de conduta? Por que se acata livremente o poder político? Por que se respeita o vizinho e a propriedade? Poder-se-á responder que é o medo, a repressão e a força coerciva do Estado, mas não chega. A pergunta seguinte é óbvia: por que se aceita a força coerciva do Estado? A coesão social parece ser cada vez mais uma resposta adequada. Mas o que faz a coesão social? Como nasce? De que resulta?
Entre as muitas respostas que vão sendo dadas ao longo dos tempos, uma merece especial menção. A coesão depende do sentimento de pertença. Não se confunde, mas depende. A coesão social é a força que mantém um grupo humano ou uma comunidade ligada, mesmo em tempos de dificuldades. A coesão é uma espécie de força centrípeta que mantém pessoas e grupos ligados, mesmo quando forças centrífugas exercem pressão em sentido contrário. A coesão une quando outras forças afastam. A coesão aproxima, quando outros factores separam. Quer isto dizer que a coesão nasce onde existe um sentimento comum, uma história partilhada, uma tradição, um interesse e uma identidade. A coesão depende do sentimento de pertença a uma comunidade local, regional ou nacional. Mas também de sentimentos de pertença a agrupamentos de livre escolha. A questão não é apenas de tradição e de identidade. O sentimento de pertença tem mais valor do que isso. Traduz um conforto moral, mas também um interesse. Ao pertencer a um grupo ou uma comunidade, espero sempre deles a satisfação de alguns interesses e necessidades, a começar pela segurança. Ao sentir que pertenço a um grupo, predisponho-me a estabelecer um permanente comércio com e ele: a dar e a receber. Até porque, em geral, este sentimento está ligado não só a uma tradição e uma cultura, mas também a um quadro local e a um território, assim como a uma forma política de governo e administração. Ao pertencer a um grupo ou uma comunidade, estou preparado para respeitar os outros, desde que me sinta respeitado.
Muitas das dificuldades que a Europa atravessa hoje, mais propriamente a União Europeia, resultam da inexistência de sentimento de pertença europeia tão forte quanto o sentimento de pertença a um Estado nacional. Assim como do facto de as diferenças nacionais e regionais não serem entendidas como ameaças à coesão social.
Destes sentimentos ficaram inúmeros testemunhos culturais. Entre tantos outros, vale a pena recordar George Orwell e o seu orgulho em pertencer à comunidade inglesa, a uma sociedade onde se tinham reconhecido os direitos e as liberdades, a um povo culto e amante da Natureza. A uma sociedade, dizia, que permitia o orgulho, à direita e à esquerda, de a ela pertencerem. A um povo que bebia chá, apesar das diferenças de classes.
A coesão social está modernamente associada a conceitos de justiça, igualdade e solidariedade. São obviamente sinais dos tempos. Mas não se trata de conceitos semelhantes. Uns poderão ser instrumentos de outros, não mais do que isso. Coesão não é sinónima de justiça ou de igualdade. É possível que a injustiça ameace a coesão. Como é provável que a desigualdade em excesso ponha em causa a coesão. Mas são conceitos e realidades diferentes.
A coesão social está associada, isso sim, a conceitos de sobrevivência, reprodução, organização comum e costume. Coesão social pode conviver com liberdade ou não. Com democracia ou não. Com igualdade social ou não. Com liberdades individuais ou não. Que dizer da tribo amazónica que era de tal modo coesa que quando um indivíduo se perdia do grupo, inevitavelmente morria, sem capacidade para sobreviver, nem sequer, em geral, para encontrar o seu grupo? Aliás, o castigo máximo que o grupo administrava aos seus membros era o ostracismo, a expulsão do grupo. Não se pode negar a coesão a este grupo. Mau grado a inexistência da autonomia pessoal e da liberdade individual tal como as entendemos. Mas outra coisa é a coesão social em entidades complexas, em sociedades divididas em regiões, autarquias, classes sociais, etnias e instituições. Aqui, as regras são diferentes. A coesão e a liberdade, a coesão e os direitos individuais têm coexistência difícil e exigente. Nestas sociedades, a coesão necessita ser cultivada e alimentada. A coesão exige informação e explicação. A coesão exige cuidado e respeito.
Além de coesão social, é costume falar-se também de coesão regional ou até de coesão internacional. Creio tratarem-se de variantes da primeira. Ou de pretextos ideológicos. Não consigo imaginar outras formas de desenvolvimento que não sejam diferentes entre si, umas das outras. Não creio que o “desenvolvimento igual e harmonioso ” seja deste mundo. Assim sendo, as formas de coesão a cultivar entre várias regiões ou entre vários países são arquitecturas da coesão social. Ou são simplesmente ilusões e flores de retórica. O que hoje os países em dificuldade pedem aos países ricos da Europa e que designam por solidariedade é uma ficção. Os Estados servem para defender interesses nacionais e assim será por muito tempo. Os países menos desenvolvidos têm de defender a lógica da coesão internacional, isto é, a solidez da União. Portugal e outros países têm de defender os seus direitos e, em nome da União, compensar o egoísmo excessivo dos países mais afortunados.
Está ameaçada a coesão? Muito, a começar pela perda do sentimento de pertença. Tudo ou quase tudo nas modernas tendências de desenvolvimento parece contrariar este valor. As comunidades locais dispersam-se nas grandes áreas metropolitanas. Os subúrbios das grandes cidades criaram áreas em mosaico de indiferença e de contiguidade estanque: as micro comunidades não formam autarquias ou comunidades. As migrações misturam populações inteiras sem necessariamente as juntar. A globalização dos mercados retirou identidade e origem à produção, assim como defesa e segurança. A cultura global ou universal destrói as formas mais conhecidas de demarcação de identidades e de pertenças. A competitividade sobrepôs-se definitivamente aos valores de solidariedade. O mercantilismo deu valor monetário a tudo, consciência, beleza, sublime e sentimento. A gestão eficaz separou as gerações e as famílias. A ajuda funcional e a protecção institucional desumanizaram a solidariedade.
Todas estas grandes tendências contrariam a ideia herdada de coesão. Ou antes: evoluíram mais depressa do que as formas de coesão. A sociedade de informação, o comércio, as finanças e a economia avançaram rapidamente, depressa de mais, não foram acompanhadas pela evolução de formas sociais e políticas que garantissem a coesão e acompanhassem o desenvolvimento acelerado do mundo material e da informação. Da família ao bairro, do grupo à Igreja, do sindicato à empresa; do clube ao partido e à associação, da freguesia ao município; e da região ao Estado: eis uma sucessão de pertenças que estruturam um sentimento, definem referências, são servidas por uma linguagem e uma cultura e alimentam a coesão.
A coesão está ameaçada. Sim. Vemo-lo todos os dias. No desemprego, nas migrações de desespero, nas falências, no abandono e na desistência. A desigualdade, a injustiça e a pobreza podem ser sérios perigos. Tal como o desenraizamento, causa da quebra do sentimento de pertença. Contra esses, todos os meios devem ser utilizados. As políticas sociais possíveis. A informação permanente e honesta por parte dos governos e das empresas. A capacidade de explicar as políticas e os sacrifícios. A capacidade para ouvir. A vontade de diálogo com forças políticas, económicas e sociais. Eis hábitos e práticas actualmente em sério défice.
Existe uma real dificuldade em conceber a coesão, em tempos de crise, sem abdicar da diferença, dos conflitos e dos interesses contraditórios. Ora, a coesão pode ser compatível com a luta de classes, com a competição partidária e com a concorrência. A coesão social é isso mesmo, o que junta os diferentes, mantendo-os, não os eliminando. A coesão que destrói diferenças, esbate interesses e remove contradições é uma coesão imposta, isto é, uma forma de despotismo. A coesão não implica unanimidade, nem consenso absoluto. Coesão implica justamente a ligação de diferentes. E implica liberdade e direitos humanos que fortalecem a coesão. A solidariedade, a associação e a entreajuda são infinitamente mais fortes quando repousam numa cultura forte de direitos individuais. Por isso sentimos, com razão, que a coesão social é factor a preservar em tempos de crise e transição. Sem coesão, podemos esperar o pior. Com coesão, para a qual devem contribuir cidadãos e autoridades, indivíduos e empresas, seremos capazes de muito.
Encontro Nacional de Fundações / CPF – Centro Português de Fundações
Lisboa, 13 de Abril de 2012
7 comentários:
Essas novas ideias já andam por aqui.....a geração de surdos e instalados na vida, de que o António faz parte, é que teima em adiar a mudança.
Felizmente, no meio desta tragédia toda, o António Barreto é agora marçano de um merceeiro que lhe arranjou um belo tacho.
Parabéns.
Infelizmente, as mercearias de bairro estão em vias de extinção.
Nestes tempos de crise, nem a ortografia escapa e aquilo que é um violento crime de aculturação e de agressão ao património cultural com dimensões stalinianas é encarado com uma indiferença inexplicável por quem devia condenar este estulto exercício de construtivismo, inédito na história da humanidade - ainda por cima motivado por absurdos.
Portugal éum país onde tudo é possível, onde nada estabiliza e sedimenta senão a arbitrariedade.
Que coesão poderia florescer aqui?
Nestes tempos de crise, nem a ortografia escapa e aquilo que é um violento crime de aculturação e de agressão ao património cultural com dimensões stalinianas é encarado com uma indiferença inexplicável por quem devia condenar este estulto exercício de construtivismo, inédito na história da humanidade - ainda por cima motivado por absurdos.
Portugal éum país onde tudo é possível, onde nada estabiliza e sedimenta senão a arbitrariedade.
Que coesão poderia florescer aqui?
Fala-se muito e faz-se pouco. Concordo com tudo o que está aqui dito e ainda acrescentaria outras coisas. O sistema de justiça, a falta de interesse dos cidadãos pelas coisas da política, os media entregues aos interesses do vil metal, etc... Tudo isto e muito mais impede a "Coesão Social" e consequentemente a existência de uma Sociedade propriamente dita.
Já está tudo identificado, debatido e reflectido.
Está na altura de se começarem a fazer coisas, a exigir coisas concretas.
Perante este cenário em que tanta coisa está mal e precisa de mudança, não podemos ficar petrificados com a magnitude do problema geral. Vamos começar pelos problemas mais pequenos, mais fáceis de solucionar, e a partir destes partimos para os mais difíceis.
Criamos assim uma cultura de auto-reflexão, auto-responsabilização e de auto-mudança.
Que tal esta ideia?
Já chega de resignação e fatalismo. Vamos puxar pela carola caramba!
Por exemplo: As políticas europeias praticamente nos impedem de produzir no sector Agrário. Todavia não nos obrigam a importar, basta saberem que o ser humano precisa de se alimentar para sobreviver e pensam que têm essa garantia. Muito bem, se cada um de nós tiver uma pequena horta, estamos a reduzir o défice. Basta uma varanda.
CM, concordo em aboluto com o que disse sobre mais esse atentado ao nosso património. Aliás vim aqui parar na esperança que o António Barreto se pronunciasse sobre esse assunto...
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