domingo, 21 de dezembro de 2008

Tudo como dantes, nada como dantes

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A TURBULÊNCIA FINANCEIRA que atravessou o mundo e está longe de se dissipar, já provocou a mais completa série de verdades definitivas e sobretudo contraditórias. Têm de comum o disparate e a inabalável certeza dos seus autores. “Marx tinha razão”; “É o fim do capitalismo”; “Acabou a hegemonia americana”; “Nada será como dantes”; “O Estado tem de tomar conta da economia”; “Vão mudar os padrões de consumo”... Em sentido contrário, também temos: “O capitalismo vai recuperar”; “A iniciativa privada vai ultrapassar a crise”; “Vamos refundar o capitalismo”; “A crise gera novas oportunidades de negócio”; “A União Europeia vai liderar a recuperação das economias”... Sem comentários.
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Mais uma vez, anuncia-se um “novo paradigma”. Não se sabe o que quer dizer, mas é “chique”. E misterioso. Mais poder político? Mais supervisão e regulação? Mais justiça? Mais ética? Novos padrões de consumo? Mais Estado? As únicas certezas são o menor crescimento, o desemprego e a redução do conforto. O resto é uma incógnita. Até porque as mudanças de comportamentos demoram décadas. E as mudanças de leis e de instituições exigem políticos e legisladores à altura, com autoridade e legitimidade. O que também é uma incógnita.
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A regulação falhou. É o que todos dizem, menos os reguladores. Convinha saber por que falhou a regulação. Os vigaristas têm meios mais sofisticados. Os reguladores, a justiça e as polícias estão atrasados. Estas são as razões superficiais. Mas há outras. Os reguladores e os políticos conhecem intimamente os especuladores e os predadores. Não só se conhecem, como se estimam e convivem. Têm mesmo, simultânea ou sucessivamente, interesses comuns. O triângulo formado pelos políticos, os reguladores e os especuladores constitui um percurso pessoal que muitos fazem airosamente nas suas carreiras. Muitos políticos e muitos reguladores consideram que os predadores e os especuladores têm o direito de se entregar às suas actividades, de operar no mercado livre, de ter sucesso e de vencer nos negócios. Se é verdade que houve Estado a menos, também é certo que Estado a mais não é a resposta. Pois o Estado é... os políticos!
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POR UMA VEZ, os políticos deste mundo não parecem ser os principais responsáveis. Mas não estão isentos. Falharam na regulação, na fiscalização e na inspecção. Falharam na justiça, na investigação e na penalização. São, frequentemente, parceiros, cúmplices e amigos dos bilionários e dos predadores. Os governos, a começar pelo português, têm dado lições inesquecíveis que todos os manipuladores do mercado usam como inspiração. Mentira, leis retroactivas, mudança inesperada de regras, intrusão na vida privada dos cidadãos, instabilidade fiscal, falta de cumprimento de cláusulas contratuais, adjudicações de favor, licenças sem concurso público, favoritismo e nomeações de altos dirigentes por confiança partidária, tudo tem justificação, tudo se explica pela necessidade de vencer, de crescer e de ganhar eleições. Os políticos, tanto de esquerda como de direita, contribuíram decisivamente para a criação deste clima doutrinário e espiritual. O poder político, entre nós como no resto do mundo, não revelou ter padrões morais superiores aos dos predadores. Não mostrou ser mais digno de confiança. Não garantiu que impede a promiscuidade e o livre enriquecimento dos políticos. Não tornou evidente seguir uma regra ética superior à que tem guiado os especuladores e seus amigos.
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As doutrinas da força, do líder, da vitória, do condicionamento da informação e da propaganda impuseram a “visão” positiva” do mundo e das coisas, consagraram o “optimismo” como dogma de atitude. Os que duvidam foram definitivamente arrumados na categoria de pessimistas e frustrados. A ideologia do sucesso, a qualquer preço, com qualquer lei, domina a cena pública há anos. As ideias, os valores e as normas que regem a vida dos capitalistas e dos gestores responsáveis pelas crises e pelas fraudes são o resultado de uma consolidação doutrinária e moral com meia dúzia de décadas.
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POR ISSO não é realista esperar pela “mudança de paradigma”. Alguém pensa que é possível as famílias decidirem por si próprias diminuir o consumo? Renunciar às segundas casas? Deixar de passar férias no Brasil ou no México? Abdicar de ter um ou dois carros, dois ou três computadores, três ou quatro televisões? Desligar o aquecimento e o ar condicionado? Reduzir o consumo de máquinas de lavar, de frigoríficos e de Bimbys? Abandonar o carro particular e utilizar os transportes públicos? Ninguém o fará. A não ser que a isso sejam forçados pelo desemprego, pelo corte de crédito, pelos aumentos de preços e pela diminuição de rendimentos.
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As pessoas mudam por consciência e esforço voluntário, quando têm real interesse nisso. Interesse material ou espiritual. Mas não mudam voluntariamente para diminuir o seu conforto e as suas aspirações. Mudam quando não têm alternativas. Por necessidade. Ou por imposição. Quem vai fazer mudar os comportamentos? As forças do mercado? Será doloroso. A necessidade? Ainda mais. Os políticos? Não têm vontade, nem legitimidade para o fazer. Eles aplicam à política os mesmos valores que os especuladores, as mesmas regras que os predadores, os mesmos critérios que os aldrabões aplicam às finanças internacionais.
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Há trinta ou quarenta anos que as populações aspiram às delícias da vida moderna. Os que já lá chegaram querem mais e não renunciam. Os que ainda não chegaram consideram uma suprema injustiça serem agora travados. Foram condicionados pelos mais poderosos aparelhos de publicidade e informação que a humanidade jamais conheceu. A propaganda política deu uma ajuda poderosa. Há décadas que os governos, as televisões, a imprensa e os grandes grupos económicos comungam um punhado de ideais que presidiram à nossa vida colectiva. Para usar o lugar-comum conhecido, o ter substituiu o ser. O critério de vida é vencer. Sempre, a qualquer preço. Vencer significa derrotar e liquidar os outros. Quem vence tem razão. E tem razão porque vence. É a democracia no seu pior. Maior. Mais alto. Mais depressa. Mais pesado. Mais forte. Mais rápido. Já não se trata de jogos olímpicos, eles próprios transformados em feira de animais. Trata-se da vida quotidiana. Para se chegar lá, ao “topo”, para se ser “líder”, tudo o que se pode fazer deve ser feito. Incluindo aldrabices, ilegalidades, golpes, mentira, publicidade enganosa e corrupção. Tudo o que justifique ganhar votos, vender mercadoria e eliminar os rivais não só pode ser feito, como deve ser feito. Sob pena de ser designado na praça pública por perdedor, incapaz ou parvo. E ninguém quer ser parvo!

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«Retrato da Semana» - «Público de 21 de Dezembro de 2008

10 comentários:

Anónimo disse...

Começou o inevitável confronto de gerações.
Para que uns permanecessem na Terra do Nunca, a geração seguinte viu-se exilada na Terra do Nunca mais...
A civilização regride.
Em Portugal desfrutou-se de um curto período de suposto bem estar, apoiado na ilusão do crédito, misturou-se liberdade com livre circulação dentro de um centro comercial, não investimos nem educação nem em cultura e imaginaram alguns que assim sem estrutura se poderia avançar só por existirem auto-estradas...
Para a minha geração servem para nos levar para bem longe...
Saiu cara a adolescência tardia e a maturidade adiada de uma geração que tendo estabilidade buscou a ruptura para se divertir e agora não se reconhece no monstro nascido das suas aspirações.
Lembro que alguns slogans do Maio 68 eram. Trabalho nunca mais, Rotina nunca mais, Família nunca mais.
Obrigado pela Terra do Nunca Mais.

joshua disse...

Obrigado pelo papel de Cassandra, António, e pelo serviço público: ambos nos servirão de âncora para uma Saída, um Êxito-Êxodo, impossível de vislumbrar neste momento para Portugal.

Abraço
joshua

Nuno Castelo-Branco disse...

Pois sim, mas qual a saída para tudo isto? É que esta classe política já é de segunda geração. São aqueles que há 30 anos colavam cartazes nas campanhas da AD e de uma certa "FRS" de conveniência. O que fazer? Onde foi parar a "educação fascista" que conseguia fazer com que as crianças chegassem à 2ª classe a ler e a escrever e que ao terminar a 4ª, já tinham noções de história, geografia e ciências naturais?
O que fizeram das escolas comerciais e industriais?

O que andam a ensinar acerca de Portugal e do seu lugar no mundo? Há 30 anos que existe uma campanha que mina a consciência nacional, deturpa a história factual, humilha a a própria razão de existir deste país. Para o chamado "espírito cívico", nada pior podia ter acontecido, D. Barreto! E chamam a isto o políticamente correcto?

O que estudaram antes de assinar de cruz a papelada de adesão à CEE? Uma vez perguntei isso mesmo ao dr. Medeiros Ferreira, que me respondeu ter sido uma adesão "sobretudo por razões políticas do momento". Isto diz muito. E foi a geração anterior que preparou o actual estado de coisas.

Não viajam para onde interessa, não conhecem quem importa conhecer, não convivem com quem nos garante a permanência na história: sabem lá onde fica o Ceilão e a existência de milhões de Silvas, Pereiras ou Menezes lá na Taprobana. Interessa-lhes lá saber o papel fundamental desempenhado pelo nosso país na Tailândia, Birmânia ou Indonésia? Vêem o passado através de negócios com certos potentados dos PALOP e descuram tudo o resto. Perdão, nem isso fazem! Não podem descurar aquilo que simplesmente não conhecem.

Sabe o que me parece? Sinceramente, devíamos cortar cerce o problema e começar de novo. Nova bandeira, novas instituições - constituição, organização do sistema eleitoral e parlamentar, liquidação de todo o lixo remanescente dos interesses instalados (Supremos e Procuradorias, por exemplo), uma decidida aproximação ao nosso espaço natural no além-mar e disciplina na escola, sentido de hierarquia. Tudo isto é possível em liberdade. Mas sem república. Aliás, 98 anos de insucesso, para não dizer colossal desastre, devem bastar. Fora!

Anónimo disse...

Infelizmente, não é de agora. Tem séculos. Apenas piorou e atingiu níveis intoleráveis.
Pena serem poucas vozes como a sua.
Bom dia.
( Cito-o muitas vezes e só hoje descobri o blogue. Pois ).
www.bandeiranegra1.wordpress.com

Goretti disse...

O blog O Cartel deseja a todos um Bom Natal e um Feliz 2009.

Anónimo disse...

FELIZ NATAL E BOM ANO DE 2009!

Uma fã dos jacarandás de Lisboa,

Cristina garcia- Objectiva3

Nuno Castelo-Branco disse...

Dr. António Barreto

Não costumo rever o que escrevo, coisa que por vezes causa alguns embaraços. Neste caso, inadvertidamente tratei-o por D. Barreto, pois faltou-me o r. Compreenda, não tive qualquer intenção oculta. Como "isto" anda e o seu magnífico texto o demonstra, pode até considerar o lapso, como uma prova de respeito!

José Carlos Mendes disse...

Cristina Garcia,
Boas Festas de outro amante dos jacarandás de Lisboa.

(E a todos: Bom Ano).

Anónimo disse...

Leio o que o antónio barreto escreve, e fico pensativo:

1) o António faz parte da elite política e académica que comando os destinos do país nos últimos 30 anos.

2) Por mais que tente não pode colocar-se de fora: faz parte deles.

3) O António foi o célebre ministro da agricultura que liquidou a "reforma agrária". e agora temos a terra ocupada pelos espanhóis porque a elite alentejana que endeusou o antónio meteu ao bolso o dinheiro da UE e depois vendeu a terra a quem a sabe trabalhar: os espanhóis, os holandeses, os ucranianos, etc.

4)Por isso, as lamúrias do antónio, são pelos erros dele também.

5) Faz parte da elite de estrangeirados que só sabe dizer mal do país.

6)Quase todos ocuparam cargos públicos e recebem reformas avultadas do estado, sem o merecerem.

joshua disse...

Quem lr o Toupeira fica com a sensação que a breve passagem do António pela Agricultura o responsabiliza pela volição alienadora dos que alienaram a terra: na verdade é injusto e intelectualmente desonesto condensar no António, um espírito livre, responsabilidades no mínimo difusas.

É uma pena que os avençados do Poder prefiram reincidir na cegueira que abrir os olhos e VER.