quarta-feira, 5 de novembro de 2008

“Cidades sem nome”

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Fernanda Câncio - Edições Tinta da China
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O LIVRO É MAGNÍFICO! Interessante, pertinente, racional! Sem facilidades. Sem pieguice, mas comovedor.
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A Fernanda Câncio correu os riscos de um estilo difícil, de uma narrativa complicada, tentando colocar-se ora dentro, ora fora, destes bairros, destes sítios e destas comunidades. O livro está a meio caminho de vários géneros, da reportagem, do estudo, do ensaio. Este cruzamento nem sempre é fácil. Creio que a Fernanda soube resolver os problemas de estilo e de narração.
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Deu a palavra a muitas das pessoas que visitou ou com quem conviveu, mas nunca foi condescendente. Ela parece saber que “as coisas” e “os factos” não falam por si próprios. E que a palavra das pessoas, mesmo sendo genuína, mesmo sendo verdade, não é toda a verdade. Não estou a insinuar, generalizando, que as pessoas mentem. Podem mentir, claro, mas esse não é o ponto. O que as pessoas sentem e dizem, se for genuíno, é sempre verdade. Mas apenas uma verdade. Um ponto de vista. Uma versão. Como uma carta. Como uma fotografia. Apenas uma parte da verdade.
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O livro é sobre as periferias. Os subúrbios. Os arredores. “Cidades sem nome” é um belo título. Belo e real.
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São as periferias das áreas metropolitanas. Eu creio que a Fernanda quer dizer que ali se vive “normalmente”, como ela defende nos seus programas em exibição na RTP2 a horas inadmissíveis.
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Apesar de tudo nos levar a pensar e dizer a dizer que as periferias são uma espera, um espaço adiado, um local de passagem, um sítio para dormir, apesar disso, ela diz-nos que ali está também uma comunidade, ou parte dela. Suspensa, talvez. Destroçada, por vezes. Resignada, geralmente. Resistente, também. Mas tudo isso faz uma vida. Uma comunidade.
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Mais do que locais, os bairros são gente. Boa e má. Bem comportada e delinquente. Corajosa e desistente. Mas gente como todos nós.
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Apesar disso, apesar da normalidade, apesar do habitualmente, há qualquer coisa de especial nas periferias. De adiado ou de suspenso. Por vezes de provisório. Quando as pessoas, algumas das quais falam neste livro, afirmam insistentemente que o bairro é uma comunidade, que não é uma periferia, que não é um subúrbio... Quando o fazem com essa insistência, é porque o problema existe. É talvez porque se trata mesmo de uma periferia. Afirmar que esta não existe é uma maneira de lhe garantir existência. Mas também um modo de sobreviver e de se atribuir a si próprio uma identidade. Do que as pessoas não abdicam.
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São quatro as periferias escolhidas pela Fernanda Câncio: a Brandoa, a Bela Vista (em Setúbal), o Clube de Campo de Belas (um condomínio fechado) e Vila Franca de Xira. Por esta lista se vê que se trata de realidades bem diferentes. Mais ou menos comunidades à parte, mais ou menos de populações especiais, mais ou menos territórios com umas vagas fronteiras (quando não fechados, uma espécie de gueto da classe média e média alta, como o Clube de Campo). Têm de comum pertencerem ou serem tratados como subúrbio, arredor, periferia.
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Os bairros são gente, dizia eu. Diz a Fernanda. São essas pessoas que falam neste livro. É dessas pessoas que a autora fala. É sobre elas que ela escreve. Mas não há só isso. Há momentos de grande beleza narrativa. Como a descrição de abertura do capítulo sobre Vila Franca de Xira. De grande sensibilidade. Mas, ao mesmo tempo, sem se deixar tentar pela veia poética que pode esbater o real, FC teve o sentido da precisão e da impressão. (Pág. 129).
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Leiam essas páginas.
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Dizia-se, há poucas décadas, que havia dois países, dois Portugal, o do litoral e o do interior. Eram os famosos dualismos da sociedade portuguesa de que falavam os sociólogos, tanto portugueses, como Adérito Sedas Nunes, quanto estrangeiros.
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Hoje não é assim. Os bairros da periferia de Lisboa parecem-se com os do Porto, de Setúbal ou de Évora. Os bairros sociais de todo o país são parecidos. Os condomínios fechados de todo o país, com mais ou menos campo e natureza, mais ou menos SPA, parecem-se todos.
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O que há então de diferente? Há mais dualismos dentro das áreas metropolitanas do que entre estas e o interior.
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Os grandes problemas sociais, as desigualdades, a pobreza, a doença, o desenraizamento, a marginalidade, estão hoje nas áreas metropolitanas.
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Os cidadãos de todo o país têm os mesmos direitos e o mesmo estatuto. Há diferenças de rendimento e de acesso a certos bens. Mas os serviços estatutários são os mesmos.
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Há vida na periferia. Há vida no subúrbio, para além da miséria ou da pobreza.
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Há vida ali, apesar do que pode parecer. Ou do que se diz nos jornais e nos livros académicos. Há vida ali, apesar da aparência, que Fernanda descreve de maneira única e comovedora, apesar de enxuta, sem tentativas de fazer drama. (Pág. 11).
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Subúrbio ou periferia: sinónimos de pobreza, miséria, desemprego, marginalidade, crime, vida sem lei, local inacessível às forças da ordem, desordem urbanística, fealdade, ausência de equipamentos sociais, crianças sozinhas na rua, pais ausentes durante o dia, prédios esquálidos, edifícios degradados, ruas porcas, espaço público descuidado, locais onde não se vai...
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Chega a esquecer-se que há lá gente. Famílias inteiras, milhares de pessoas. Centenas de milhares de pessoas. Gente como nós. Apesar de lhe chamarem frequentemente deserto, vive lá mais gente do que nos centros das cidades. Estes, aliás, estão talvez hoje mais desertos, depois das 18 horas e aos fins-de-semana, do que muitos arredores, muito subúrbio.
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Nunca FC resvala na complacência. Ela poderia ter sido muito politicamente correcta e afirmar que ali, no fundo, no fundo, se vive melhor do que na cidade, isto é, nos centros da cidade ou nas suas avenidas. Não é. Este livro não é uma fábula sobre a felicidade da vida suburbana, é apenas o relato da vida suburbana, que tem, à sua maneira, modos de viver a felicidade e a infelicidade.
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Há por vezes a tentação de afirmar que as comunidades periféricas, as comunidades pobres, para não falar das comunidades de minorias étnicas, exibem uma espécie de felicidade ou de bem-estar superior à vida urbana corrente. Há quem torne idílica a vida nesses locais. Mas a Fernanda Câncio não se deixa enganar. O que ela relata, com a sua ideia de normalidade, é a de uma vida difícil, com infelicidade ou mal-estar, mas cujos protagonistas tentam moldar e organizar para uma sobrevivência humanamente aceitável.
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Muitos subúrbios esquálidos de há vinte ou trinta anos são hoje, após a chegada da civilização, vilas e cidades como todas as outras. Talvez não sejam belas de ver e boas de viver. Mas são como as outras. Um parágrafo de FC sobre a Brandoa... (pág. 27).
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FC não esquece a história destas cidades sem nome. O modo como começaram nas décadas de sessenta ou setenta ou mais tarde. E revela como a clandestinidade não é bem clandestinidade. Não é, na maioria dos casos, auto construção. Há projectos. Houve projectos. Houve arquitectos e empreiteiros. Em muitos casos, são clandestinos, mas pagam impostos. São ilegais, mas têm água e electricidade.
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Grande mérito do livro: a autora não tem políticas alternativas, nem formula soluções. Nunca diz “Há que... fazer isto ou aquilo... É só fazer... Há que...”. Ela parece saber que o que há a fazer deve resultar da acção de muita gente, a começar pelas pessoas elas próprias e pelas autarquias. E que o que se deve fazer pode ser muito diferente de bairro para bairro, de cidade para cidade, de situação para situação.
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Nem sequer o lugar-comum mais frequente da política social, a integração. “Isto de integrar não é fácil”, diz ela a pág. 67. Não é, de facto. Nem sequer de definir. Entre a integração e o multiculturalismo. É um dos grandes dilemas da sociedade e da política. Que fazer? Deixar cada grupo étnico e cultural ter a sua vida, os seus códigos de conduto, as suas leis, os seus deuses, as suas línguas, os seus costumes? Ou integrar, fazer com que os estrangeiros, os de fora, assimilem, respeitem, cultivem e pratiquem os valores e os costumes?
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Os bairros públicos que foram feitos para lutar contra a injustiça e acabaram por gerar mais injustiça! (Pág. 62).
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Este livro terá sido escrito em 2003 ou 2004. Foi inicialmente publicado, em 2005, por uma entidade pública, a Comissão de Coordenação Regional de Lisboa. Aparece agora, felizmente para nós, em livraria. A sua actualidade é total. Os problemas da vida nas periferias são hoje ainda mais urgentes do que há cinco anos. As questões envolvendo os bairros sociais ainda mais. Seria bom que as entidades públicas continuassem a proporcionar a realização de estudos deste tipo, independentes, inteligentes, não condescendentes e com um elevado sentido do humano. Mais ainda: seria bom que as entidades públicas os lessem!
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Obrigado Fernanda.
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Lisboa 2008 FNAC, Vasco da Gama, Novembro de 2008

1 comentário:

noty_gurl disse...

Sou apenas uma estudante de Comunicação. No entanto a leitura de palavras sábias, diferentes, ousadas.. interessa-me.
Adorei ler muitos dos seus textos.

Obrigada pelo bom momento passado.