segunda-feira, 23 de junho de 2008

Os inimigos da democracia

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TODA A GENTE SABE que os desejos, as intenções, os projectos e a realidade são coisas diferentes. E mutáveis. Por isso é difícil prever o que vai acontecer ao PSD se nos basearmos exclusivamente nas frases ditas por L. F. Menezes. Ou mesmo por qualquer outro participante neste enredo. O que podemos saber, analisando os factos, é que Menezes decidiu jogar as cartas todas e repetiu o que muitos dirigentes políticos, desde a antiguidade, fizeram: baralhou os cálculos dos adversários, surpreendeu-os e demitiu-se. Por cálculo? Desespero? Táctica? Desistência? É o que verá depois. Mas sabemos mais. Marcou eleição para cinco semanas depois. Garantiu e repetiu que não era candidato. Prometeu prosseguir, durante um mês, as iniciativas partidárias que tinha encomendado, sobretudo as visitas às bases. Desprezou uns candidatos perigosos de que não gosta especialmente (Marcelo Rebelo de Sousa e Aguiar Branco), não se referiu ao seu inimigo mais querido (Santana Lopes), desafiou os que considera mais perigosos (Manuela Ferreira Leite e António Borges), ignorou o que mais detesta (Rui Rio) e foi condescendente com o mais júnior e que ele pensa poder influenciar (Passos Coelho). E ameaçou: vai, em contacto com as bases, ficar atento ao que se passa e vigiar o que os outros fazem.
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UM MINUTO APÓS O ANÚNCIO das suas decisões, a especulação começou. Quer ou não voltar? Deseja ou não uma “vaga de fundo”? É um truque ou é sincero? Acontece que pode ser tudo, dissimulação e sinceridade. Como pode ser as duas coisas: quer ir-se embora e quer regressar. Além de que a verdade pode mudar com os dias. E a sinceridade com as horas. O que mais importa, se é que o problema importa realmente, é que os dados objectivos têm uma interpretação difícil de contestar. Menezes quer condicionar o futuro imediato do partido, seja com ele de novo a presidente, seja com ele a prosseguir na sua vocação primordial, a de “troublemaker”, disfarçado de provedor das bases.
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É PENA QUE ASSIM SEJA. O PSD é um dos pilares do Estado democrático português. Como tem sido o mais interessante partido existente depois de 1974. Faz a ponte entre o rural, o industrial e os serviços. Está tão bem enraizado na Administração Pública como na empresa privada e na sociedade civil. Navega facilmente entre a capital, a província e as regiões. Congrega, como nenhum outro, ricos, remediados e pobres. Acolhe catedráticos e analfabetos. Federou uma extraordinária colecção de notáveis, “barões”, caciques e chefes de claque. Conservador na doutrina, é capaz de grandes movimentos de inovação e de inconformismo. Já mostrou elevada competência no governo e muita habilidade na oposição. Ora, tudo isto se tem vindo a perder desde há três ou quatro anos. E agora a perda parece irremediável. Depois das próximas eleições, qualquer que seja o vencedor, este partido vai fatalmente romper com estas tradições e muita gente vai romper com ele ou ser forçada a isso. O PSD já teve poder, ideias atraentes, um programa necessário, uma aliança entre povo, classe média e elites, muita energia e alguma racionalidade. Com Barroso, Santana, Mendes e Menezes, o partido fez como as famílias fidalgas: desbaratou o capital. Não tem nada. A não ser saudades, sede e fome. De poder.
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MENEZES DERROTOU-SE A SI PRÓPRIO como quase ninguém conseguiu derrotar outrem. Sem apelo, sem remédio, sem misericórdia. E sobretudo sem saber o que estava a fazer. Mostrou que também nos partidos, não apenas nos governos e nos parlamentos, os seus dirigentes caem por si, muitas vezes nem precisam que alguém os derrube. Não mostrou competência. Fez-se de vítima. Acusou os seus correligionários de perseguição e cinismo, coisas que nunca lha faltaram quando era oposição dentro do partido. Deixou-se influenciar por aqueles assessores, vampiros por procuração, que pedem aos seus príncipes sangue e guerra, mas que são eles próprios incapazes de um gesto de carácter. Usou a demagogia sem contenção. Inventou e cultivou inimigos, pois julgou que era essa a força de um político. Não mostrou ter qualidades de líder ou de homem de Estado capaz de destroçar aquela que é a maior fonte de conspiração e de intriga do país, o PSD. Fez como os maus estudantes: espalhou-se ao comprido. E como eles reagiu: acusou os outros.
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É UMA VELHA TEORIA, tão velha quanto falsa: os inimigos da democracia (e da liberdade republicana, como alguns gostam de dizer) são os fascistas, os comunistas, várias espécies de extremistas, os fundamentalistas religiosos, os plutocratas, os monárquicos, às vezes os capitalistas, eventualmente os sindicatos e quase sempre os anarquistas. Por outras palavras, os inimigos da democracia são os que estão fora da democracia. Os que não participam directamente, os que não beneficiam do sistema e os que querem sobrepor os interesses próprios ao “bem comum” ou à sociedade aberta e plural. Portugal, durante as últimas décadas (e quem sabe se nas primeiras do século XX), é uma demonstração interessante da falsidade desta “tese”. Se excluirmos as tentativas de alguns militares e do PCP, nos anos da revolução de 1974 e 1975, quem ameaçou a democracia foram sempre os democratas. Por incurável demagogia. Por má gestão. Por incapacidade de decisão. Por adiamento de reformas e iniciativas. Por sobreposição dos interesses partidários e pessoais aos problemas do país. Por lutas intestinas inúteis e perniciosas. Por desmedida ambição de algumas pessoas. Por um grosseiro partidarismo. Por uma irreprimível vaidade de alguns dirigentes. Pela complacência perante a corrupção, a fraude, a irregularidade e o expediente. A derrota de Menezes, em si, é um facto menor da vida portuguesa. As perturbações do PSD já nem surpreendem. Mas o mal que estes episódios fazem à política nacional e à democracia é grave. Os partidos e a vida democrática devem estar, em Portugal, no mais baixo do apreço público. Descrença, desconfiança e desprezo são sentimentos que não faltam na população. Se quiserem encontrar os verdadeiros inimigos da democracia, não é preciso ir procurar muito longe: basta começar pelos partidos e pelos políticos democráticos.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 20 Abr 08