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AS AMBIÇÕES DA UNIÃO EUROPEIA, proclamadas pelos seus dirigentes, são enormes. A famosa estratégia de Lisboa deu corpo a algumas delas. Apesar de ter falhado, está agora a ser ressuscitada. É, com o tratado constitucional e as afirmações destemperadas dos políticos europeus, um hino às aspirações ilimitadas. A Europa quer ser o continente da paz. O maior espaço económico do mundo. O conjunto de países mais inovador na ciência e na tecnologia. O que possui o melhor sistema de segurança social. O que alimenta o Estado de protecção mais humano do planeta. O que melhor recebe os imigrantes. O que trata com mais cuidado dos países pobres.
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A União quer ainda ser respeitada pelos outros quase 200 países que pululam nas Nações Unidas. Quer ser parceiro indispensável na resolução de todos os conflitos do mundo. Quer ser pelo menos igual, em poderio, aos Estados Unidos da América. Quer falar com uma só voz e ter um presidente estável. Quer ter os mais elevados índices de crescimento económico e as mais baixas taxas de desemprego. Quer estar na vanguarda dos países que respeitam o ambiente. A Europa pretende ser uma espécie de modelo: a democracia mais avançada, mas também a mais social.
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Mas a Europa não quer sofrer a concorrência “desleal” dos países asiáticos e africanos. Quer proteger os seus agricultores, sobretudo se falarem francês. Pensa em restaurar algumas formas de proteccionismo. Não quer gastar recursos com as Forças Armadas, nem criar uma defesa efectiva europeia. Quer que os Estados Unidos assegurem a nossa segurança, mas que o façam sob comando dos europeus. Para que tudo isto seja verdade, a Europa quer... mais Europa. Mais coesão, mais integração, mais federação, mais uniformidade, mais coordenação, mais eficácia, mais políticas únicas e menos forças centrífugas. O tratado constitucional é agora, dizem, o instrumento privilegiado para alcançar esses objectivos. É o meio indispensável à ambição. A diversidade europeia, que todos elogiam sem convicção, é vista como uma fragilidade. Reduzir esta variedade é o fim último deste tratado.
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A história do tratado constitucional é a história de uma fraude política. Alguns povos recusaram a Europa mais ou menos federal, assim como a Constituição. Fez-se um tratado praticamente igual, mais complexo, mais técnico, mais incompreensível. Com os objectivos explícitos de enganar a opinião; de aprovar furtivamente o que tinha sido recusado; e de evitar que houvesse novos referendos. Os argumentos dos defensores do tratado e opositores dos referendos são intelectualmente pobres, politicamente autoritários, tecnicamente medíocres e moralmente condenáveis. Dizem que “não vale a pena”; que “o parlamento é tão legítimo quanto o povo”; que “é muito complexo e técnico” e, por isso, “incompreensível para o eleitorado”; que “é igual ao anterior”; e também que “é diferente do anterior”.
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Não é só no método e no processo que este tratado é uma fraude. Também no seu conteúdo. Sob a aparência de um melhoramento, concretizado em competências marginais conferidas ao parlamento europeu, este tratado é um dos mais potentes recuos da democracia na Europa. O Parlamento europeu, pela sua natureza, estrutura e função, não é uma instituição favorável à democracia. Por outro lado, este tratado relega definitivamente os parlamentos nacionais para a arqueologia política e confere-lhes um estatuto tão relevante para a liberdade como o de uma qualquer direcção geral dos recursos hídricos.
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A experiência portuguesa dos referendos é lamentável. Todos os partidos começaram por ser seus adversários. Depois, gradualmente, todos passaram a ser favoráveis, mas sempre na dependência das circunstâncias. Um partido só é a favor do referendo se a sua realização permitir alcançar certos objectivos. Evitar um incómodo interno do partido, como por exemplo com o aborto e a regionalização. Recuperar de uma derrota parlamentar. Abrir uma cisão dentro do partido adversário. Obrigar o partido adversário a acompanhar, mesmo contra a vontade. Proporcionar uma espécie de plebiscito. Condicionar o Presidente da República. Ser uma boa cobertura para a covardia, isto é, permitir que um partido, um governo ou um líder não tome posição.
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Ninguém é favorável, por princípio, à realização de um referendo em momentos taxativos, como sejam as revisões constitucionais (nacional ou europeia) ou temas de excepcional importância. Ninguém é, por convicção, favorável a este mecanismo de democracia directa que pode, em determinadas situações, ser um complemento eficaz da democracia representativa. A cultura democrática em Portugal é medíocre, ínfima e oportunista. Nesta discussão, para Sócrates, Menezes, Portas e outros, as questões importantes são outras. Quem é o primeiro a tomar posição? Quem tem mais divisões internas, o PS ou o PSD? E se o governo disser que sim, mas o Presidente disser que não, o PS não ganha nos dois carrinhos? Se o PS e o PSD são ambos a favor da União, nenhum partido retira louros?
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Mesmo nestas circunstâncias, o referendo europeu seria, especialmente para os portugueses (únicos que sobre o tema nunca se exprimiram), mas para os europeus também, uma oportunidade única, talvez a última, de dar a voz aos povos. De legitimar ou corrigir os planos estabelecidos e as estratégias seguidas. De contrariar a cada vez mais profunda clivagem entre política e sociedade, entre governos e cidadãos. Sem legitimação (ou reprovação) pública e popular, a “construção” europeia aumentará o abismo que a separa das sociedades e dos cidadãos. As grandes crises, como aquela em que vive a Europa, demoram anos, décadas. São geralmente agravadas pelos remédios fáceis que lhes são administrados. Dentro de algum tempo, este tratado terá talvez o mesmo destino que a folha de papel de Chamberlain.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 18 de Novembro de 2007
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