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“BOA NOITE, ZÉ”. Este “Zé” também pode ser Manuel, Clara, António, Ana, Júlio, Judite, Rodrigo ou Alberta... É a maneira como os “enviados” ou “correspondentes” dos serviços de informação das televisões entram “em directo” nos boletins noticiosos. Dirigem-se directamente ao locutor de serviço e esforçam-se por dar à notícia um ar simultaneamente familiar, informal e tenso. Qualquer dos canais serve de exemplo. Começou por ser uma moda, acabou por se transformar num padrão. Os canais de televisão amam os directos. Dá mais proximidade. É mais instantâneo. É mais genuíno. Desastre ou festa, conferência de imprensa ou surto de meningite, tempestade ou atentado terrorista: desde que possível, o enviado ou correspondente faz um directo. Quando calha, há mesmo diálogo com o “pivot” do telejornal. Frequentemente, segue-se (ou antecede) “uma peça” previamente gravada, sobre o mesmo assunto, pelo mesmo enviado, não sendo aliás certo que haja diferenças ou evolução entre “a peça” e “o directo”. No meio das notícias, em “directo real” ou “directo gravado”, aí vem o correspondente no Líbano, em Timor Leste ou na praia da Luz... Chegam a fazer-se “directos” para que o correspondente, depois de repetir o “Boa noite Zé”, afirme que “ainda” não se sabe o que aconteceu...
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Os “directos” são, em geral, de má qualidade. Os melhores profissionais tentam fazer trabalho decente, mas a maioria traz o que tem ou lhe encomendam: emoções, sensação de ineditismo e a certeza de que “está em cima do acontecimento”. Mas, naturalmente, gaguejam, hesitam e exprimem-se mal. Pedem licença para interromper pessoas que estão a fazer o seu trabalho ou que fazem a sua vida e disparam perguntas. As respostas são, em maioria, irrelevantes, nada adiantam à notícia ou ao esclarecimento. Há alguns meses, quando a tensão ia alta com o caso da menina inglesa desaparecida, chegámos a ouvir uma “enviada” dizer, em directo pois claro, que nesse dia não tinha acontecido nada e que a “monotonia” só tinha sido quebrada por um grupo de “motards” que viera mostrar a sua solidariedade. Quase todos os dias vemos “directos” deste género: ainda não se sabem os resultados, as pessoas por quem se espera ainda não chegaram, o julgamento ainda não acabou ou o senhor que está a ser interrogado pela polícia ainda não saiu.
Muitos dos enviados tentam mostrar, pela transpiração, pelos trajes ou pelo ambiente em redor, que estão em situação escaldante: se forem ouvidos choros, gritos, tiros ou explosões, tanto melhor. Quando se trata de conferências de imprensa, em especial feitas por políticos, mas os gestores também começam a aprender, o “directo” marca as horas, as pessoas submetem-se aos ditames do “enviado” e da estação de televisão. Após algumas frases ditas pelo interessado, o “enviado” retoma o microfone e faz um resumo do que já se ouviu. Ouve-se este por cima do conferencista. Quem está na sala deve aliás ouvir os dois, quantas vezes o repórter mais alto do que o conferencista.
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Os “casos dramáticos” e as “tragédias humanas” são os preferidos. Suicídio, crime passional, acidente de automóvel, rapto de criança, assalto a banco ou desastre natural são momentos excelentes para os “directos”. Mas um caso de tifo numa aldeia, uma intoxicação alimentar, mesmo benigna, numa escola ou um incêndio de pneus velhos num pardieiro também vêm a jeito. Os boletins de notícias tentam começar sempre por aí. Só depois surgem as notícias de interesse geral, os factos políticos, o desporto e, eventualmente, as notícias internacionais. Durante o boletim, quando é possível, a anteceder ou suceder ao espaço publicitário, entram novos casos humanos, aliás, prévia e repetidamente anunciados com tons de sensação. Como os serviços noticiosos duram uma hora na RTP e mais ainda nos outros canais, é necessário encher, “meter chouriços” como se diz no meio, entrevistar espontâneos, ouvir o povo e pôr emoções no ar. Todos nos lembramos do desastre de Castelo de Paiva que foi o momento crucial de fundação do novo estilo, que já rondava pelas televisões, mas que ainda não tinha o estatuto de pérola profissional. Foi nessa altura que vimos “enviados” a tentar fazer chorar parentes das vítimas ou simples testemunhas e quase agredi-los de microfone em riste. Esta última semana em que todos os canais comemoraram (é o caso de dizer...) o primeiro aniversário do desaparecimento da criança da praia da Luz, uma coincidência pôs logo em agitação as redacções: uma menina de Valpaços teria desaparecido em Matosinhos. As “brigadas” do “directo” apresentaram-se logo ao serviço. Para sua infelicidade, a menina apareceu pouco tempo depois. Foi uma frustração!
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Os serviços de notícias dos três canais ditos “generalistas”, sem excepção, são cada vez mais divertimento e espectáculo e cada vez menos informação. Desapareceram os comentários inteligentes e informados. Foram-se os especialistas que podem ajudar a compreender. Acabou o recurso a documentação e arquivo que permita colocar os factos em contexto e percebê-los melhor. A explicação serena e fundamentada foi abolida. As notícias internacionais, quando há, foram resumidas a rumores e resumos incompreensíveis, a não ser que se trate de terrorismo, pedofilia ou grande desastre. As notícias deixaram de ter o tempo necessário de reflexão. Os jornalistas fazem cada vez menos a “edição” das “peças”, das imagens e das reportagens dos “enviados” e “metem os brutos”, isto é, põem no ar as sequências em bruto, tal como chegaram dos “enviados” ou das agências.
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O “directo” é o maior incentivo à preguiça que se conhece. Dispensa trabalho e reflexão. Não precisa de inteligência ou estudo. É o que existe de melhor como veículo de emoções, até de histerismo. É finalmente o factor de mutação da notícia em espectáculo. É a autorização para não pensar nem investigar. É a troca deliberada, feita pelos editores e pelos jornalistas, de reflexão, do estudo, da investigação e da edição, todo este trabalho que deveriam ser os pergaminhos do jornalismo, pela aparência do imediato, do espectáculo, da concorrência entre canais e do despacho. É o reino das emoções em directo, o contrário mesmo do que deveria ser o bom jornalismo. O “directo” não é a causa primeira, mas é o instrumento de degradação da televisão. É, sobretudo, a destruição da informação e da inteligência.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 4 Mai 08
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