domingo, 31 de março de 2019

Grande Angular - Questões de Família

democracia portuguesa vive mal com as famílias. Herdou as cunhas do antigamente, os empenhos, o favor, uma mãozinha, o jeito e o empurrãozinho… Com a democracia, estes hábitos foram modernizados e, por acréscimo, reorganizados, isto é, passaram a ter uma componente partidária essencial. Com a crença, por muitos cultivada, de que “quem ganha as eleições, tem direito a nomeações”! Há mesmo quem chame a isso “ética republicana”!
Na história moderna portuguesa, do fim da Monarquia à democracia, passando pela primeira República e pelo Estado Novo, vivemos agora certamente o ponto mais alto de promiscuidade familiar e partidária, de envolvimento de laços familiares na política, de entrosamento de parentesco com os órgãos de soberania e a alta Administração Pública.
O governo de António Costa representa talvez o mais denso caso de cruzamentos familiares no governo e nos órgãos de soberania. Que se saiba, o Primeiro-ministro não cometeu, para realizar tal façanha, nenhuma ilegalidade. Mas tem de ouvir o que se pensa dele e desse facto. Não pode por isso considerar que lhe querem mal. Como não pode simplesmente dizer que os outros fizeram pior!
Há, aliás, precedentes extraordinários. Na China, Mao Tse tung e sua mulher. Os irmãos Castro em Cuba. Os irmãos Kennedy nos Estados Unidos. Donaldd Trump com mulher, filha e genro na Casa Branca. Juan Perón e suas mulheres na Argentina. Kadhafi e filhos na Líbia. Em França, François Hollande e mulheres. António Costa tem esse direito, nada impede nas leis portuguesas de nomear familiares, casais e parentes. Tem é de ouvir o que dele se diz e dele se pensa. 
E não se pensa muito bem. O mal-estar é enorme. Toda a gente se sente incomodada. Mesmo os que beneficiam. Entre estes, uns tantos reagem à bruta, isto é, defendem-se, atacam os outros, agridem e ameaçam, o que apenas revela não estarem de consciência tranquila, nem terem argumentos. Outros ficam envergonhados, julgavam que não se daria conta e esperavam que não se visse ou não soubesse.
Costa e os dirigentes do PS já cometeram dois erros gravíssimos! Primeiro, disseram que “os outros também”, isto é, reconheceram que era mal feito, mas que o mal dos outros justificava o seu. Segundo, tentaram compensar as suas nomeações de parentesco com a passagem, promovida por outros governos, de ministros para as empresas privadas. Que dizer, mais uma vez, tentaram desculpar o seu mal com o mal dos outros, isto é, simplesmente, reconheceram o seu mal!
Verdade é que se confirmou que quase todos os anteriores governos e quase todos os partidos, na oportunidade, fizeram algo de parecido. Sem a mesma densidade e de grau diferente. Mas fizeram-no. Vários contributos para este debate recordaram casos idênticos em quase todos os governos. O problema é que de facto nunca se tinha assistido a esta quantidade. Nem a este grau de importância. Houve um tempo em que era hábito as mulheres dos ministros e dos deputados serem chefes de gabinete e adjuntas de outros ministros e deputados. Desde sempre, é também um hábito de alguns eurodeputados contratarem para seus assessores, consultores e assistentes os filhos, as mulheres, os maridos e outros parentes. Agora, no coração da política, no Conselho de Ministros e nos Grupos Parlamentares, é prática corrente. É moda e é tendência.
Quase todos os partidos, portanto. Uns mais do que outros, pois claro, até porque há razões sociais para este fenómeno. Talvez o PS mais do que os outros, com certeza. E talvez o PCP menos do que os outros. Mas, com o PCP, as coisas são diferentes. Na verdade, este partido condena o enriquecimento individual, o que quer dizer que não tolera quem ganhe com a política. Por outro lado, não admite a ideia de que há outras formas de exercício do poder e de avanço na carreira política que não sejam as decisões do comité central e da comissão de quadros. Verdade é que, pelas más razões, o PCP escreve direito. Ainda bem.
Voltemos aos partidos burgueses e aparentados. Todos aceitam os laços familiares, desde que sejam os seus. Todos condenam os vínculos de parentesco, desde que sejam os dos outros. É um pouco como futebol. O principal critério da legalidade e da moralidade é a cor da camisola. Na política, é o nome do partido.
Não se pense que se trata sobretudo de enriquecimento e de dinheiro, de nepotismo e de corrupção. Tudo isso é verdade, em doses e proporções variáveis. Mas o verdadeiro problema é o da confiança política. Um ministro, um Primeiro-ministro e um secretário de Estado têm evidentemente muito mais confiança na mulher, no marido, nos filhos, nos cunhados e nas primas do que em gente estranha. Esse é o ponto. As questões essenciais são as da confiança e da dependência. Não bastam o cartão do partido e os empregos comuns. Não é suficiente a passagem em conjunto pelos governos, pelos parlamentos, pelas empresas públicas, pelas administrações e pelas câmaras: é necessário acrescentar mais uma condição de confiança e uma garantia de dependência. As certidões de casamento e de nascimento, os projectos de vida e os testamentos ajudam muito. São problemas de confiança e de poder, não de mera máfia ou corrupção.
Entre os argumentos que mais surpreendem alguns são particularmente viciosos: “Não somos só nós, eles também”! Ou ainda, por parte de comentadores e jornalistas complacentes, “não são só estes, há dez anos também era assim!”. A ideia de que o nepotismo e a corrupção de uns justificam e desculpam os de outros é sinistra a todos os títulos. Mas tem um efeito salvador: trata-se da maior admissão de culpa que se possa imaginar! Quando um socialista ou um bloquista vem dizer, e tantos foram, que o PSD e o CDS “também fizeram”, estão a prestar um serviço à democracia. Porque se denunciam e admitem a sua própria culpa. Assim revelam mais casos e ajudam à transparência.
Não há soluções fáceis para estes problemas. A opinião pública e a liberdade podem ajudar. A instrução e a cultura também. E as eleições, talvez. Mas as leis não servem para nada. Proibir a parentela na política e no governo? Proibir o quê? De nomear parentes? Para que funções? Até que grau? Não há proibições imagináveis. Mas mete dó. Ver a política dos rebanhos e dos bandos, das tribos e dos gangues, das castas e das claques, imiscuir-se na política democrática faz quase desesperar da condição de português do século XXI. Era bem melhor quando as questões de família eram um ingrediente da grande Ópera!
Público, 31.3.2019

domingo, 24 de março de 2019

Grande Angular - Pela nossa saúde!

Por António Barreto
Por razões conhecidas, mas nem sempre claras, a saúde está em questão. As greves dos enfermeiros, com especial virulência por parte deles e uma áspera acidez na reacção do governo, agitam a opinião. Os protestos dos médicos também. A situação laboral na saúde pública está muito nervosa e perturbada. As crises da ADSE e dos hospitais privados sacudiram o recato e atemorizaram muita gente, sobretudo os funcionários públicos. Os ministérios da Saúde e das Finanças perderam a capacidade de administrar os custos e a despesa dos sistemas de saúde e são cúmplices do desperdício e da especulação. As dívidas da saúde continuam descontroladas. As sempre actuais parcerias público privadas continuam a dar que falar. As dificuldades de recrutamento de pessoal médico na “periferia” ou no “interior” continuam vigorosas. A falta de pessoal de enfermagem é endémica, especialmente depois da redução de horas de trabalho para os funcionários públicos, sem compensação de recrutamento. A emigração de enfermeiros para o estrangeiro é assunto inquietante. A transferência de médicos do sector público para o privado é tema de actualidade e de preocupação. Alguns sectores de cuidados, especialmente dos paliativos e dos continuados, dão claros sinais de insuficiência e de falta de capacidade. Uma hipotética nova lei de bases do Sistema Nacional de Saúde está em preparação e já provoca dissensões dentro dos partidos, designadamente no PS, que deveria estar politicamente mais bem preparado neste tema. As filas de espera para consulta, exame e cirurgia no Serviço Nacional de Saúde persistem ou aumentam em certos sectores. Aumenta o número de doentes deitados em macas nos corredores dos hospitais. Os pobres e os desfavorecidos continuam a ser tratados com desconforto e indiferença em muitos hospitais e centros de saúde.
Olhando para as tendências de médio prazo, deparamos facilmente com números e indicadores que não traduzem esta aparente colecção de crises. Os médicos por habitante aumentam de modo persistente. Os habitantes por médico são cada vez menos. Nas comparações europeias, essenciais para se perceber melhor um país, Portugal não se sai nada mal. Está entre os cinco primeiros em médicos por habitante. Entre os quatro melhores em habitantes por médico. Quanto aos gastos com a saúde, em percentagem do PIB, Portugal situa-se a meio da tabela europeia. E nos gastos por habitante, quase a meio. Nos últimos dois a três anos, segundo os dados do governo, foram contratados mais 1.363 médicos de família e especialistas e mais 3.413 enfermeiros. O sinal mais preocupante é o que diz respeito aos enfermeiros. O aumento, desde há dez ou vinte anos, é evidente, mas muito lento, quando relacionado com o número de doentes e de médicos. Na Europa, Portugal figura entre os quatro piores. 
Portugal tem menos camas hospitalares por habitante do que a maioria dos países europeus, o que não é necessariamente um mal. Também tem um tempo médio de internamento abaixo da média da OCDE, o que não é um mal absoluto, depende das circunstâncias. No SNS, desde 2000, as urgências estão em diminuição acentuada, o que é bom. As consultas continuam elevadas e em acréscimo. Os médicos estão sempre em aumento e quase todos os anos. Os enfermeiros também, embora com menos regularidade. As consultas por 1000 habitantes têm aumentado sempre. As urgências e os internamentos têm diminuído, o que pode ser um bom sinal. A despesa do SNS por habitante aumentou bastante até 2005, ficou instável e irregular desde então, baixou significativamente em 2011 a 2013, recuperou ligeiramente desde então.
Entre as causas da crise actual, situa-se evidentemente o reduzido financiamento desde 2011 e a muito insuficiente recuperação desde 2015. Mas não chega. Há fenómenos políticos, humanos, organizativos e outros.
saúde foi o sector que mais brilhou durante décadas. Superou todos os outros em eficiência e qualidade. Portou-se melhor do que a educação, a justiça, a segurança social, a cultura, os transportes e a habitação. A razão essencial deve-se à natureza do sector. A ciência e a técnica comandam. A ideologia está pouco presente. A informação circula e podem fazer-se comparações com o mundo inteiro. Há menos opiniões e menos intrigas. Na saúde, reina a ciência. Em todos os outros sectores, reinam a política e a ideologia. Uma aspirina é uma aspirina em qualquer parte do mundo. Uma apendicite é uma apendicite, sem que a política, a religião ou a cultura tenham uma ideia diferente. As modas pedagógicas, a qualidade do urbanismo, a idade da reforma ou o segredo de justiça prestam-se à polémica partidária e à opinião avulsa.
Além disso, que já não é pouco, os mais de vinte governos constitucionais respeitaram quase todos um princípio essencial: aos médicos, aos enfermeiros, aos técnicos e aos cientistas compete um papel crucial na definição das políticas, na orientação das actividades e na gestão dos recursos. Assim se conseguiu, sem intrusão ideológica, aumentar a vacinação, diminuir a mortalidade infantil e reduzir as doenças contagiosas além de muitos outros êxitos.
que temos agora é miserável e contraria esta tradição do primado da ciência e da subalternidade da política. O anterior governo entendeu que era mais fácil cortar na saúde, dado que é o sector que mais gasta (eventualmente que mais desperdiça…). Para esse governo, os cortes foram o substituto de reformas e de eficiência. O actual não sentiu necessidade de aumentar consideravelmente os recursos, nem promover as reformas necessárias. A política intervém agora fortemente. O Bloco de Esquerda e o Partido Comunista entendem que é chegado o momento de liquidar a medicina privada e os hospitais particulares, velho sonho desses partidos. Ambos e parte do PS pensam que é a boa altura para acabar com a ADSE e nivelar tudo por baixo, em nome da igualdade. O PSD e o CDS pugnam pela medicina privada e não se importam com a promiscuidade funcional. O PS, o PSD e o CDS não têm coragem de pôr termo à acumulação de funções no sector público com o sector privado. Os três continuam a apreciar excessivamente as parcerias público privadas, fonte de amigos, de negócios e de adiamento de despesa. Os enfermeiros e os médicos não se sentem considerados com justiça diante dos benefícios atribuídos a outros grupos profissionais, os professores em particular.
Era bom não esquecer que as dificuldades actuais na saúde se devem sobretudo à ingerência política e ideológica.
Público, 24.3.2019

quarta-feira, 20 de março de 2019

Grande Angular - A construção do nada

Nos tempos modernos, a construção do Estado é a primeira realidade deste tipo: organização deliberada de um aparelho institucional capaz de enquadrar populações e culturas, dinastias ou comunidades.
Sítios houve em que se construiu o império. Os condimentos e os métodos eram simples. Uma ideia, uma doutrina, objectivos e valores. O monarca ou o Estado central e os seus exércitos eram os obreiros da construção. O método era sobretudo o da força. Os valores eram os da grandeza dos que mandavam.
Já houve tempos em que se construía a democracia. Ou a República. Foram processos morosos, duraram séculos, com dificuldades, avanços e recuos. Havia princípios, valores, doutrinas e objectivos. Nem sempre claros, raras vezes bem definidos, muitas vezes difusos e geralmente próprios de elites políticas. Mas a construção avançava. E os povos, identificando-se com os ideais, iam aderindo. E sabia-se ao que se vinha. Os protagonistas eram os povos. Os métodos incluíam a democracia, os parlamentos e o voto. Os exemplos, bem diferentes uns dos outros, podem ser os da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos da América e da França.
Depois, começou a construir-se o socialismo. A sociedade sem classes. O comunismo. A força dos valores era enorme, a ponto de permitir que se recrutassem, para a luta, milhares e milhões de pessoas. Fizeram-se revoluções. Na mente dos povos, estava mais o melhoramento das condições de vida, mas nos espíritos dos militantes, as ideias, os sonhos e os objectivos estavam bem presentes. Da democracia avançada passar-se-ia à construção do socialismo, terminada esta seguir-se-ia a construção do comunismo, este sim objectivo último e definitivo, a sociedade sem classes. O agente desta construção era o partido da vanguarda, em nome da classe proletária. O método era o da ditadura do proletariado. Os melhores exemplos são os da União Soviética e da China.
Hoje, constrói-se nada! Isto é, a Europa! A Europa é uma abstracção. Depois de umas décadas em que teve sentido e significado, desde a paz à defesa da liberdade e da democracia ao desenvolvimento, tem cada vez menos doutrina e ideia. E muito menos identificação popular. Hoje, a Europa faz-se porque se faz. Continua porque é. Para seu êxito, a Europa necessita de varrer a história e a geografia. Hoje tenta-se apagar a ideia de que a democracia tem uma geografia, as liberdades individuais têm uma história. Os meus direitos, o meu voto, a minha liberdade e a minha parte na decisão colectiva exercem-se numa comunidade, num local, numa área com limites e história. Podem ser fronteiras físicas, culturais ou lendárias. Mas só há direitos se houver geografia. Até porque quero saber onde vou protestar, onde vou exigir que respeitem os meus direitos, onde vou reclamar que a minha liberdade seja protegida. Se não há identidade nem geografia, a quem me dirijo? Ao mundo? Às Nações Unidas? Às Igrejas universais?
Construir a Europa, tal como se está fazendo, significa construir nada, construir uma abstracção de gestão e regulamentos, uma terra de ninguém, um não país e uma não sociedade. Sem geografia e sem identidade, as sociedades e os regimes políticos caminham para o totalitarismo burocrático e despótico, onde todos poderão ser iguais, mas ninguém tem personalidade. Onde ninguém é responsável, porque a responsabilidade exige nome.

Aideia Europa (isto é, uma das ideias Europa) é ainda uma das hipóteses mais interessantes do planeta. Mas, como todas as grandes ideias, é susceptível de degradação e perversão. A actual União, na sua forma presente, desde Maastricht e de Nice, com o acrescento do Tratado Constitucional e da Estratégia de Lisboa, corresponde a esse aviltamento.
A criação de uma entidade não democrática faz parte dessa corrupção política. A União não é democrática por impossibilidade. Não é. Não pode ser. Nem deve ser. Democráticos são os Estados, as sociedades e os Parlamentos. Assim como as instituições nacionais, regionais e locais. Fingir que a União é democrática, com aquele patético Parlamento e estas eleições, ou é inútil, ou é prejudicial, pois corrói as instituições nacionais democráticas e cria uma ideia falsa, um biombo de ilusões.
Da União sem comunidade nem cidadãos poderá resultar uma Europa despótica, feita de andróides maravilhosamente iguais. Ou então, terá como consequência a reacção de populismos irracionais e nacionalistas. Ambos serão capazes de demolir a União e destruir a liberdade.
Democráticos, na Europa, podem ser os Estados e os Parlamentos nacionais. O Parlamento Europeu serviu sobretudo para extinguir os Parlamentos nacionais e outras instituições. Ora, a democracia exige identidade e reconhecimento. Exige geografia e comunidade. De modo a que eu seja capaz de fazer valer os meus direitos como homem concreto, não apenas como ser humano abstracto.
Se a União continua o seu caminho, com o que sabemos hoje, os destinos poderão ser dois ou três. Primeiro: avivar a pulsão nacional, excitar todos os populismos identitários e despertar os reflexos condicionados nacionalistas. Poderá ser um fim com ruptura e desordem. Segundo: chegar a um beco sem saída, provocar a sua lenta destruição e estimular os sucessivos abandonos, o que significa o definhamento. Um término tristonho, o fim do prazo de validade. Terceiro: obrigar a repensar e exigir a refundação. Esta terceira hipótese poderá salvar a Europa, estimular a economia e dar novo sentido à democracia. Mas é sabido que são enormes as dificuldades em repensar, reformar e reorganizar o que quer que seja. Em geral, os dilemas fatais têm mais sorte: ou tudo ou nada, ou continuar ou morrer! Ora, morte é mesmo o grande perigo diante da União. 
Repensar significaria dar nova vida às instituições nacionais, a começar pelos parlamentos. Implicaria retirar à União grande número das suas competências furtivamente transferidas nos últimos anos para entidades longínquas, a fazer pensar nos conselhos e nas comissões das utopias de ficção científica, a começar pelo Senado Galáctico do “Star Wars”. Exigiria afastar do horizonte constitucional europeu qualquer ideia de federação, de super Estado, de super governo ou de Estados Unidos da Europa. Obrigaria a trazer para os Estados nacionais as suas competências sociais, económicas, políticas, judiciais e culturais, privilegiando todos os caminhos da coordenação voluntária e da articulação de políticas entre Estados. Forçaria a Europa a adoptar regras de comportamento que consagrassem a flexibilidade, a diversidade cultural e a subsidiariedade, isto é, o princípio de que tudo deve ser decidido ao mais baixo nível possível, ou seja, mais próximo das instituições locais. 
Público, 17.3.2019

quarta-feira, 13 de março de 2019

Grande Angular - Uma Europa longe demais

Há décadas, a Europa era, para uns, sonho de paz e grande projecto em construção. A paz perpétua estava ali, ao virar do século. Democratas, cristãos sociais, liberais e socialistas empenhavam-se no seu desenvolvimento. Para outros, era a “Europa das burocracias”, a mando das multinacionais. Para outros ainda, era a “Europa dos monopólios” e do “grande capital”. Mas os Gaullistas queriam a “Europa das Nações”. E alguns grupos de esquerda propunham a “Europa dos trabalhadores”, enquanto os comunistas defendiam o internacionalismo.
O que se seguiu, depois da segunda guerra, foi uma das mais interessantes páginas da história, no capítulo das relações internacionais. O continente mais massacrado durante um milénio encontrava meio século de paz. Os países responsáveis pela morte de dezenas de milhões de pessoas em duas guerras criaram um modo de vida baseado na cooperação. Tudo isto, com a ajuda decisiva da NATO, do alto patrocínio militar dos Estados Unidos e da Guerra-fria.
O Mercado Comum passou a Comunidade e esta a União, ficando quase a coincidir com a Europa continental. Criava-se o Euro e o Espaço Schengen, além de outras formas de cooperação. O clube inicial de seis países atingiu o número de 28 e vai passar brevemente a 27, graças à saída da Grã-Bretanha, uma das mais estúpidas decisões políticas contemporâneas.
Durante sessenta anos, a Europa mostrou uma folha de serviços invulgar de paz e desenvolvimento social. Mas é uma história de êxito que está a acabar mal. Já não faz frente ao comunismo, porque não há comunismo. Já não é uma União a lutar pelo primeiro lugar na economia, na coesão social e na ciência. Foi ultrapassada ou distanciada pelos Estados Unidos. Está em vias de ser ultrapassada pela China. Já nem sequer deixa a Rússia a milhas atrás de si. Porto seguro de tantos exilados, durante décadas, a Europa estremece hoje com os imigrantes e os refugiados ilegais.
A história de Portugal europeu é igualmente um êxito. Em 1974, a Europa era um atalho para a democracia e o desenvolvimento. Era o melhor futuro que se imaginava. A adesão portuguesa foi um dos assuntos menos controversos da história do país. Foram cometidos erros e aceitaram-se dogmas de integração, mas a verdade é que estes anos de Europa foram globalmente felizes.
Hoje, para os Portugueses, a Europa é o que é, o que está e o que não se nota. A abstenção eleitoral em Portugal, nas eleições de 2014, foi de 66%. O contexto não é muito diferente: em 28 países, há apenas oito em que participação eleitoral é superior a metade do eleitorado. Em vinte, a abstenção é superior a 50%. Certo é que os Portugueses, que se declaram favoráveis à Europa em mais de dois terços, não votam nas eleições europeias.
Que aconteceu à Europa? Por que se vota tão pouco? Por que motivos as pessoas não se interessam pelas eleições? Por que razão os resultados podem ser tão diferentes das eleições nacionais?
Há muitas respostas. Os resultados das eleições europeias, no plano nacional, não têm consequências no plano europeu. Uma maioria de esquerda, em Portugal, não tem qualquer efeito, porque é anulada por uma maioria de direita, na Holanda. Ou vice-versa. Mesmo quando os resultados variam muito de país para país, os efeitos finais são nulos. O Parlamento é uma organização híbrida, com enormes poderes dentro da “Bolha Europeia”, sem capacidade de representação, sem intervenção nas comunidades nacionais e sem interlocução com os cidadãos. O Parlamento europeu é um embuste: criado para lutar contra o “défice democrático”, apenas legitima esse mesmo défice. Importantes são as eleições nacionais alemãs.
Oque pretende a Europa? A paz? Já conseguiu. Integrar todos? Está feito. Criar as bases para a democracia nos países europeus? Realizado. Neutralizar as tendências imperiais da Alemanha? Cumprido. Criar uma base estável de defesa com os Estados Unidos? Efectuado. Resistir ao comunismo soviético? Foi um êxito. Fundar novos sistemas de livre circulação de pessoas, de ideias, capitais e mercadorias? Executado. O que é mais confrangedor é que a Europa não tem nada para oferecer, a não ser o que é e o que está. Oferecer aos cidadãos o que já têm, paz, liberdade e livre circulação, não parece especialmente excitante. Mobilizar os eleitores para a democracia que têm há décadas também não é emocionante. Olha-se para a Europa e não se vê o que nos possa dar de novo. Mais do mesmo é receita para desastre ou abstenção. E dá o flanco aos seus inimigos.
Faz algum sentido “lutar contra a abstenção” e “encorajar a participação dos cidadãos”? Se sim, do que se duvida, como fazer para que os europeus se interessem pela Europa e pelas eleições? As respostas são conhecidas. Mais Europa. Mais parlamento europeu. Mais sessões de esclarecimento. Mais colóquios sobre as benfeitorias de Europa. Mais subsídios. Mais excursões a Bruxelas. Mais regiões. Mais votos obrigatórios. Multas para quem não vota. Nada disto serve absolutamente para nada, a não ser dar emprego às agências de comunicação.
A crise de cidadania e de participação política na Europa resulta da metamorfose dos cidadãos nacionais, uma certeza, em cidadãos europeus, uma abstracção. Como é efeito da transferência das soberanias nacionais, conhecidas, para a soberania europeia, inexistente. A crise política é consequência do definhamento dos parlamentos nacionais e da emergência de um parlamento artificial sem identidade.
Asoberania europeia não existe. Como não existem cidadãos europeus. Os cidadãos são nacionais. Que estes sejam europeus, muito bem. Mas que sejam cidadãos europeus, nem pensar. A cidadania exige e implica reconhecimento e identidade, pertença e justiça, cultura e tradição! Praticamente nada disso existe na Europa, a não ser dentro dos Estados e das nações. Para tudo o que é político e democrático, os cidadãos querem tratar com o seu país e a sua comunidade, não com a Europa. Para a justiça e a coesão, os cidadãos olham para os seus Estados, não para a Europa.
A União Europeia pode e deve respeitar a democracia, mas não é democrática. Faz tudo o que se imagina para diminuir a abstenção e aproximar os cidadãos. Mas é tarefa inútil. As liberdades, a cultura, a ciência e a protecção social são construções humanas e sociais, com história e geografia, não resultam da política europeia, nem de construções jurídicas ou de sistemas internacionais de equilíbrio.
Fizemos uma Europa longe demais. Recuar é difícil. Mudar de rumo ainda é mais difícil, mas necessário. Se assim não for, a alternativa, a liquidação, é desastrosa.
Público, 10.3.2019

domingo, 3 de março de 2019

Grande Angular - Regiões. Outra vez!

É um velho hábito, uma solução para grandes e difíceis indecisões. “Não sabes o que fazer? Regionaliza”! Há algumas semanas, uns ministros ainda fizeram um ensaio e anunciaram iniciativas de regionalização. Rapidamente embrulharam a matéria. Afinal, não seria regionalização, era mais descentralização. Recomeçaram os debates técnicos sobre o assunto, incluindo as diferenças conceptuais entre esses temas, a desconcentração e outras variantes. Depressa se percebeu que nada seria feito a breve prazo. Os motivos eram evidentes. O tema é polémico. É obrigatório realizar um referendo. Há parecenças entre partidos rivais, nomeadamente entre PS e PSD. Uma grande parte da população é contra. Dentro da aliança do governo há enormes diferenças de conceito e de conteúdo. Finalmente, é ano de eleições. A conclusão é clara: não haverá regionalização, não haverá referendo.
Mas as coisas não são assim tão simples. Autarcas, estruturas locais dos partidos, tecnocratas e alguns governantes não abandonam. Lentamente, vão descobrindo soluções para as suas fantasias. Graças à necessidade de “descentralizar” e “desconcentrar”, assim como de “agilizar” e “simplificar”, vão-se criando dispositivos aparentemente inocentes para fazer o que aprenderam com os livros dos fundadores da integração europeia: regionalizar furtivamente! Parece ser o que pretendem agora alguns dirigentes partidários e membros do governo. O momento é difícil. Há regionalistas na esquerda e na direita. O debate eleitoral sobre o tema agrada aos pequenos partidos, porque incomoda os grandes. Estes preferem adiar. Ou descentralizar à socapa. Ou desconcentrar, coisa que ninguém sabe bem o que é. Mas que pode, de repente, transformar-se em princípio de regionalização sem que ninguém tenha dado conta.
Averdade é que estas ideias de regionalização encobrem a vacuidade do pensamento político e são substituto de programas exigentes de modernização administrativa. Como é sabido, todos os partidos, com os grandes à cabeça, prometem a “Reforma do Estado”, com a qual a política ficaria mais próxima dos cidadãos, que assim veriam os seus direitos mais bem defendidos. Esta grande reforma aprofundaria a democracia, evitaria o despovoamento do interior, aumentaria a participação cívica e diminuiria as desigualdades. É tão rica em efeitos que quase não se percebe por que razão esta virtuosa reforma não foi já decretada e realizada. Certo é que todos os governos das últimas décadas falharam neste propósito.
É verdade que a reforma do Estado é essencial. Mas não necessariamente aquela que se limita a satisfazer necessidades do pessoal partidário local e reivindicações dos autarcas com dificuldades de acesso ao Governo. Importante é a descentralização do sistema educativo e a autonomia das escolas. Decisiva é a capacidade de regulação e administração das instituições locais como as “regiões demarcadas de vinhos”, cuja realidade nada tem a ver com as regiões administrativas. Indispensável é a clarificação das relações entre público e privado, nas escolas, nas universidades e nos hospitais. Importante é a limpeza das portas giratórias e da promiscuidade nas parcerias público privadas. Essencial é a reorganização das freguesias e dos concelhos, em particular a fusão e a diversificação de estatutos e funções. Crucial é a criação de um novo enquadramento financeiro e fiscal, garantindo a durabilidade dos compromissos de Estado. De capital importância é a revisão do sistema eleitoral com o objectivo de aumentar o poder e a identidade dos cidadãos individuais. Relevante é a clarificação das relações entre o Estado e a sociedade civil, com o reforço dos direitos e da autonomia desta última. Mas estas não são as reformas necessárias para os regionalistas.
Sabe-se que a destruição das identidades nacionais é um dos grandes programas actuais das tecnocracias, do grande capital e dos juristas esclarecidos, assim como de grupos de “reformistas” e “reformadores” que não se sentem à vontade com os quadros tradicionais da Europa. A Europa federal é o grande objectivo, o desígnio último, cumprido “furtivamente” durante décadas, mais às claras no presente. Esta é uma das hastes da tenaz antidemocrática. A outra haste é a da regionalização, que poderá mesmo ir até à criação de regiões multinacionais ou transfronteiriças. Esta é uma construção perigosa. A democracia tem uma geografia e uma história. Não há democracia sem comunidade, sem delimitação das instituições e dos poderes, sem conhecimento das responsabilidades, sem identificação dos titulares do poder, sem capacidade de nomear, censurar, demitir e substituir. Sem geografia e sem identidade, não há democracia. A cidadania exige comunidade, identidade e cidade. Os cidadãos europeus não existem, dificilmente existirão antes de séculos. A função essencial das eleições europeias é a de mascarar a definitiva ausência de democracia e a de disfarçar o embuste da cidadania europeia.
As identidades culturais, na história europeia, são sobretudo nacionais. Ou deixaram-se enquadrar pelas nações. Tal, aliás, como em grande parte dos países e Estados do mundo. O poder político nacional, por vezes com a colaboração de tradições religiosas, interpretou as identidades nacionais, nem sempre pelos bons motivos, mas o resultado foi o fortalecimento das nações e dos Estados como comunidades democráticas. 
Muitas foram as tentativas de destruição das identidades culturais. Tentaram os impérios, as grandes potências conquistadoras, o grande capital e o internacionalismo comunista. Todas foram travadas ou combatidas pela democracia e pela independência dos povos. As últimas tentativas em data são as da regionalização e da construção europeia, na versão que tem triunfado nos últimos anos. Assim a Europa (Comunidade e a União), com início promissor e de inspiração valiosa, derivou, derrapou e foi longe de mais. Tão longe que acabou por se pôr em risco, como é a situação em que vivemos. Tão longe e tão fora das capacidades de controlo e de participação que é bem possível que caminhe para a sua própria destruição. E de mais nada servirá dizer o que tanto se tem dito: “Crise na Europa? O que é preciso é mais Europa!”. E mais regiões!
A regionalização é a resposta errada. Trata-se de diversão burocrática e tecnocrática, na tentativa de encobrir as reais reformas difíceis e decisivas. A regionalização furtiva é ainda pior, pois pretende o mesmo, com menos clareza, sem referendo, sem participação popular.
Público, 3.3.2019