quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Grande Angular - Um país dividido

A “união nacional”, pelas conotações históricas que tem, é sempre má. Já a unidade nacional merece discussão. Quando esta se perfila no horizonte como resposta a perigo ameaçador ou como exigência diante de crise excepcional, uma relativa unidade, feita de convenção voluntária e contrato assumido, pode ser de grande utilidade e de real eficácia para lutar contra crises e ameaças.

O problema, muitas vezes, reside na definição de perigo e de ameaça, assim como de crise ou de excepção. Não é difícil perceber que as situações são mais claras do que as definições prévias. Invasão inimiga, catástrofe natural ou de origem humana, pandemia, acidente grave e inesperado ou crise mundial são suficientemente explícitos para se reconhecerem quando estão diante de nós, sem que haja necessariamente acordo formal prévio. É verdade que há sempre, felizmente, quem discorde, mesmo se está errado. Mas a percepção de uma grande crise é mais fácil do que se pensa.

A epidemia actual transformou-se rapidamente numa ameaça excepcional, reconhecida por quase toda a gente. Houve polémicas sobre a estratégia sanitária e controvérsias sobre os planos para cuidar dos efeitos sociais da doença. É verdade. Mas o clima prevalecente foi e tem sido o de unidade e o de uma relativa moderação de rivalidades. Apesar de quase toda a gente ter ideias definitivas sobre o assunto, da biologia à economia, da física às finanças, a verdade é que o litígio ácido e crispado tem sido evitado. Uma espécie de moratória do afrontamento foi aceite por partidos e instituições, por associações e comunidades. Não se pode dizer que a pandemia criou uma trégua política, mas estamos perto disso. O que não é particularmente negativo, dado que a unidade, temporária por definição, faz-se justamente para atacar problemas graves, crises e ameaças.

Ao contrário do que defendem os amantes das fracturas, a contenção política e social é muitas vezes um instrumento indispensável para resolver crises graves. Sobretudo quando resulta de esforço voluntário e conjunto levado a cabo por partidos políticos, instituições, associações, sindicatos, comunidades e outras formas de agremiação. São conhecidos, pelo menos na Europa, múltiplos casos de “pactos de paz social”, de “acordos nacionais”, de “coligações nacionais”, de “convenções” e de outras formas de criar uma unidade, geralmente temporária e com objectivo definido. Na Suíça, em Espanha, na Itália, na Alemanha e até em França viveram-se ou vivem-se situações destas que foram aliás de enorme utilidade para o desenvolvimento e para o funcionamento das instituições. Em Portugal, poucas experiências decorrem desta necessidade ou deste objectivo. Em certa medida, talvez a Constituição de 1976 represente um momento desses, de grande unidade entre forças livres e de colaboração voluntária. Outros esforços, como sejam o famigerado “bloco central” de 1983 e o “compromisso nacional” de 2011, não tiveram o mesmo impacto nem consequências equiparáveis. Deram um notável contributo para a resolução das crises, mas não tiveram a profundidade daquela primeira experiência.

O clima de relativa unidade que se vive agora é útil, mas insuficiente e não tem futuro. Trata-se, perante perigos ameaçadores, de uma espécie de convergência inescapável sem estratégia global nem metas definidas. Tem uma amplitude de objectivos extremamente reduzida e resulta da inevitabilidade mais do que de uma atitude voluntária. Não propõe um esforço comum, não projecta acções futuras nem programa políticas ulteriores.

Ora, Portugal necessita de um esclarecimento político essencial e de um esforço comum capazes de fundamentar coesão, decência e desenvolvimento para os próximos anos. Antes da pandemia, já se sabia que o país caminhava aceleradamente para um afrontamento. Como nunca nas últimas décadas, a divisão entre esquerda e direita desenha-se no horizonte com nitidez. Já não se trata da divisão entre democracia e não democracia, como foi o caso dos primeiros anos após o 25 de Abril: agora é cada vez mais entre esquerda e direita. Com uma singularidade: “esquerda” inclui as esquerdas não democráticas, enquanto “direita” inclui igualmente as direitas não democráticas. Sob este ponto de vista, a situação política nacional raramente esteve tão polarizada e tão radicalmente dividida como hoje. O que não é muito favorável ao desenvolvimento económico e social.

convergência de vários factores de crise é geralmente nociva. Até se inventou uma expressão interessante: a “tempestade perfeita”.  Não sabemos, ainda, se esta existe ou não, se está presente em Portugal ou não, mas sabemos que há muitos argumentos nesse sentido, a começar pela simultaneidade de causas externas e internas. O recuo das democracias nas Américas e na Europa é um mau sinal. A ascensão do nacionalismo autoritário na Europa e na Ásia é flagrante. A crise da defesa ocidental e europeia, em resultado da política americana e da agressividade russa, é real, já não é apenas uma hipótese. As dificuldades de relançamento económico da Europa e de reorganização da União são as maiores de sempre. As sequelas da crise pandémica são incomensuráveis e ainda hoje difíceis de enumerar.

Todas as razões externas e globais têm consequências em Portugal. A essas, acrescentamos evidentemente as nossas próprias. A divisão entre esquerdas e direitas, agora acrescentadas das respectivas extremas, é radical e dificilmente ultrapassável. A animosidade e a contradição entre sectores público e privado (na economia, na saúde, na educação…) atingem graus inéditos e nefastos. O elevadíssimo grau de corrupção e de promiscuidade financeira e política exige uma justiça pronta e eficaz que não temos. O agravamento da desigualdade social e da ineficiência dos serviços públicos, em resultado da pandemia, é visível e inquietante. A inclusão, no debate político, da questão racial, é uma novidade de efeitos imprevisíveis, mas seguramente ácidos. A retórica do antifascismo e do anticomunismo torna todas as soluções mais difíceis.

Qualquer esforço de desenvolvimento, de coesão e de paz social, exige unidade e convergência de esforços. Sem receios atávicos da “união nacional”. Seria tão bom e tão útil ao país que as principais forças políticas percebessem!

Público, 23.8.2020

 

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Grande Angular - A democracia tem medo

A democracia portuguesa não corre riscos excessivos. Mas os democratas têm medo. E, quando têm medo, ficam crispados e fecham-se. Tentaram mudar regras e limitar os seus debates. Felizmente que o Presidente da República deu duas lições aos deputados (ao governo e aos partidos) que não resistiam a diminuir a democracia.

 

Toda a gente sabe que os debates parlamentares são de má qualidade. É um lugar-comum sublinhar o facto. Já vem, aliás, desde o século XIX. Qualquer escritor que se prezasse tinha de dizer as últimas dos debates parlamentares, da falta de educação e de cultura dos deputados e dos seus estranhos hábitos.

 

A República fundou um Parlamento que era uma algazarra dominada por um ou dois partidos despóticos. O Estado Novo criou uma Assembleia Nacional de gente sem coluna, por vezes com sabedoria, mas sempre pronta a obedecer. Com excepção de uns raros momentos, aquela Câmara transformou-se numa imensa sala mortuária. Com a democracia, nasceu uma Assembleia da República onde se discutiu, escreveu uma Constituição e prepararam os alicerces para um Estado de direito. Com altos e baixos, o Parlamento foi vivendo. Mas o declínio anunciou-se cedo. O poder dos governos acentuou-se. A partidocracia instalou-se. Os cargos na Administração Pública e nas empresas privadas foram tendo mais interesse. Os vencimentos nas profissões liberais e nos grupos económicos revelaram uma tentadora disparidade. As máquinas partidárias impuseram a sua lei. Cada dia que passa um deputado é mais dependente. Com a perda de poder, o Parlamento sente-se ameaçado e fecha-se. O Governo acompanha-o.

 

Os debates parlamentares conheceram um declínio seguro. Houve algumas excepções, mas o seu teor vai-se degradando há algum tempo. A gritaria aumenta. O despropósito cresce. Os bons argumentos racionais e políticos minguam. A pose para a televisão consolida-se. O irrelevante afirma-se. Perante isto, os próprios grupos sentiram necessidade de reformar. Esperava-se que os deputados organizassem um plano de melhoramento dos debates: a frequência, a relevância temática, a duração das réplicas, a capacidade de intervir espontaneamente, a possibilidade de fazer intervenções independentes e a eliminação de grande parte da disciplina paralisante eram temas em que se pensava. Havia tanto a fazer! Tanto a reflectir! Que fizeram alguns grupos, designadamente o PS e o PSD? Reduziram os debates e fizeram dezenas de alterações de pormenor, geralmente com o sentido de manter o predomínio dos partidos sobre os deputados, dos grandes sobre os pequenos e do governo sobre todos. Reforçou-se a disciplina e a burocracia que condicionam a iniciativa individual e apurou-se a técnica dos pesos e medidas que limita a liberdade de cada deputado.

 

Foi assim que os deputados diminuíram os debates parlamentares sobre a Europa. Reduziram as possibilidades ou a obrigatoriedade de debater em plenário as petições dos cidadãos. Em colaboração com o governo, diminuíram para menos de metade o número de debates periódicos com a presença do Primeiro-ministro.

 

O Presidente da República vetou a primeira decisão sobre os debates europeus, assim como a segunda sobre as petições. Quanto aos debates com a presença do Primeiro-ministro, o Presidente não teve poderes para intervir. Mas merece nota o facto de ter sido o Presidente a impedir que Parlamento e Governo diminuam a já de si reduzida capacidade de debater.

 

Outros acontecimentos recentes puseram em causa a democracia, sobretudo o receio dos democratas. Estes têm medo do partido comunista que quer fazer uma festa em condições de privilégio quando as actividades colectivas culturais, religiosas, recreativas, associativas e outras estão praticamente interditas! Não é evidentemente a provocação deles que é uma ameaça, o que é perigoso é a reacção das instituições. Os comunistas sempre tiveram a certeza de merecer um estatuto especial na sociedade e um privilégio indiscutível. Nunca se imaginou que esse conceito fosse tão alargado até englobar regras sanitárias especiais! Nem que as autoridades cedessem.

 

Os deputados exibiram ainda medo das pessoas que querem dar nas vistas, como o deputado Ventura que deseja candidatar-se a Presidente da Republica, sem perder o mandato de deputado.

 

Outro facto relevante foi a declaração de Rui Rio sobre a eventual mudança do partido Chega e a hipótese de haver um acordo entre este partido e o PSD. Que o partido Chega se aproxime do PSD, é natural. Quem quer crescer a qualquer preço é capaz de tudo. Que o PSD lhe abra as suas portas, é surpreendente. E errado. Que o Chega tome iniciativas é lá com ele. Que o PSD ou qualquer outro partido democrático se aproxime dele é um problema e é connosco! O PSD merece ser politicamente castigado só porque o seu presidente se predispôs a tal cambalhota!

 

Finalmente, uns grupelhos racistas e xenófobos, uma ou duas dezenas de indivíduos, decidiram manifestar-se diante de partidos de esquerda e de associações anti-racistas. Além de se manifestar, ameaçaram pessoas e deputadas, atitudes raras entre nós, mas que merecem evidentemente atenção. Parecem provocação, mas vale a pena a democracia e a justiça estarem atentas. A liberdade e a integridade dos cidadãos são fronteiras de alarme.

 

A fragilidade e os perigos para a democracia não resultam directamente destas ameaças, estão antes, isso sim, nas respostas das instituições políticas e judiciais e do sistema democrático. Está errado protestar com excessiva veemência e com a proibição do que seja mera opinião. A justiça deve intervir perante acções e comportamentos, não diante de opiniões. É muito fácil perceber-se que a defesa da democracia pode rapidamente degenerar em redução da democracia. Os deputados devem defender a democracia através do seu desenvolvimento e do seu enriquecimento, não por intermédio do seu fechamento.

A democracia é o regime de todos, incluindo não democratas, revolucionários e antidemocratas. Defende-se com o reforço e o alargamento, não com a fortaleza. O antifascismo não acaba com o fascismo. Pelo menos não substitui o fascismo pela democracia. Tal como o anticomunismo não destrói o comunismo. Nem um nem outro fazem a liberdade. O que constrói a liberdade é a democracia. O que destrói o fascismo e o comunismo, substituindo-os pela liberdade, é a democracia.

Público, 16.8.2020

  

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Grande Angular - Furtivamente, neste quente Verão…

país receia a segunda vaga da pandemia, assim como os maus resultados de um abrandamento talvez precipitadamente decidido. As opiniões, justamente inquietas, dividem-se entre os que pensam que se foi longe de mais, sobretudo com o fecho de escolas, e os que julgam que não se fez tanto quanto deveria e que se desmobilizou prematuramente. Apesar do tom sabichão de tantos comentários e tantas vozes, ninguém sabe exactamente quais seriam as melhores soluções…

A população do país inteiro vive dias e semanas de aflição, sem rendimentos, com pouco trabalho, muito desemprego, sem turistas, com facturas para pagar, com filhos em casa sem ocupação, com avós em lares desprotegidos, com doentes sem consulta, sem cirurgias programadas, com reservas de viagem e de hotelaria perdidas e sem alimentos no frigorífico…

Grande parte do país vive com temor dos transportes públicos com muito calor e mais riscos de contágio, assim como dos restaurantes e das lojas de roupa, com regras drásticas, mas sem mercadoria nem clientes. Olha-se para os lares de idosos e as creches, os jardins públicos e os recintos desportivos, com o silencioso pavor envergonhado de quem não quer mostrar medo, mas que teme o desconhecido. Tudo o que parecia simples e seguro é hoje incerto…

Metade do país vive novamente uma intensa e perigosa temporada de incêndios, com cada vez mais equipamentos dispendiosos, cada vez mais operacionais em serviço, cada vez mais perigo a ameaçar casas e fazenda, cada vez mais florestas vítimas de pirómanos, descuidos e criminosos…

Uma boa parte do país sente que raramente se viveram tempos tão perigosos. As gerações mais novas sentem-se defraudadas nas suas expectativas. Os mais velhos resignam-se a verificar que os seus últimos anos de vida não lhes trouxeram a ambicionada tranquilidade, mas sim uma inesperada ansiedade. Todos têm dificuldade em prever o futuro imediato, raros sentem ter os meios necessários para as emergências que nos esperam. Todos olham para o governo, para as autoridades e para a União Europeia com a inquietação de quem espera tudo…

Foi neste quadro difícil e pesado que o governo tomou decisões sérias e graves sobre a Administração Pública, promulgadas pelo Presidente da República e sancionadas pelo Parlamento, que assim autorizaram o que os partidos cozinharam nos seus conciliábulos.

Foi neste Verão, difícil entre todos, que os dois maiores partidos decidiram acertar agulhas na questão das eleições para as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional, ditas CCDR, aprovando um sistema incongruente nos fundamentos, confuso nos objectivos, contraditório na legitimidade, mesquinho na inspiração e dissimulado nas intenções.

Já se conhecia o plano. O Governo queria evitar o necessário referendo e dar a impressão de que respeita a Constituição. Tinha a firme intenção de não colocar o Presidente da República, adversário da regionalização, em posição delicada. Procurou não hostilizar, sem necessariamente agradar, os dois partidos de esquerda de quem o governo depende. Desejou dar a impressão de que, apesar das enormes dificuldades do momento, o governo não perde a iniciativa. Tentou assim demonstrar alguma capacidade reformista. Preocupado com a falta de programas e tarefas para a administração local e os partidos regionais, o governo decidiu avançar com o seu estapafúrdio plano de realizar eleições indirectas, misturando as legitimidades nacionais, locais e corporativas e mantendo a mão pesada sobre os mecanismos de decisão. Nem sequer os seus mais competentes e experientes académicos e especialistas concordam: uns desejavam uma verdadeira regionalização, outros queriam uma autêntica descentralização, todos recusavam esta mistura explosiva e paralisante de legitimidades e de responsabilidades.

Na verdade, a intenção é clara. Não necessariamente a de criar empregos para os seus amigos. É verdade, mas não é o mais importante. Mas certamente a de procurar uma plataforma entre o PS e o PSD, que permita seja um acréscimo de autoridade do Estado Central sobre as regiões e as autarquias, ao mesmo tempo que uma aparência, bem ilusória, de que a descentralização está em curso.

Esta decisão, de absoluta infelicidade política, tem outra consequência: a de reforçar a dependência das Administração Pública dos partidos, dando segurança aos vínculos de vassalagem. E ainda outro efeito muito habilidoso, como agora é costume: o de criar bodes expiatórios para todas as temporadas e todos os riscos! Protecção civil? Prevenção florestal? Riscos do ambiente? Desastres de clima? Estratégia de desenvolvimento? Investimentos locais? Criação de emprego? Para tudo isso, temos agora o responsável perfeito, o culpado ideal: as regiões, as autarquias e a sociedade civil.

Este é o acto de maior covardia do Governo de António Costa. A confirmar a sua enorme habilidade em encontrar, longe ou perto de si, mas fora de si, responsáveis e culpados. Este é o gesto mais confuso e contraditório do Presidente da República, que sabe que está a colaborar com uma fantasia. Esta é a decisão mais errada dos partidos políticos que, acossados pelas crises, agem com o reflexo condicionado de se crispar e de reforçar a sua mão baixa sobre a Administração.

Andou mal o Presidente da República ao promulgar, sem antes exigir um exame à sua constitucionalidade, uma lei com a qual é quase certo que não está de acordo e de que vê os seus limites e as suas contradições. Não andaram bem as autoridades que aprovaram um sistema que não é carne nem peixe. Esteve mal o governo ao criar mais um dispositivo que encerrou a Administração Publica entre as mãos dos partidos. Não esteve bem o Parlamento ao permitir que o governo invente soluções artificiais para a Administração Pública e que promovem a rivalidade das legitimidades e o choque das representatividades. Andam muito mal António Costa e Rui Rio ao negociarem entre eles os futuros designados, a que chamarão eleitos pelas regiões e que mais não serão do que agentes dos chefes. Em Agosto, furtivamente, em dias quentes de calor, de incêndios e de vírus, comete-se erro sério. E inútil.

Público, 9.8.2020

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Grande Angular - Crime e Preconceito

É provável que o assassino de Bruno Candé tenha agido também com preconceitos racistas. Se assim for, é de esperar que o tema seja esclarecido, que todos possam debater o assunto e que, se as houver, seja possível retirar lições para ver o que se pode fazer a fim de diminuir este género de crime.

Tenhamos consciência de que o crime também pode resultar de uma rixa de bairro, na qual se poderão eventualmente detectar várias responsabilidades, mesmo se as do assassino são sempre mil vezes mais culposas do que as da vítima. Entre a briga de vizinhos e o preconceito racial, há uma gama de variedades possíveis que expliquem o que se passou.

Além disso, é necessário ter em consideração que o crime com conotações raciais não é o pior, nem excepcional. O assassinato da mulher pelo marido ou de mulheres por predadores sexuais não é menos grave com atenuantes possíveis. O assassinato de crianças pelos pais, parentes ou “tarados” também não é de menor relevo. O assassinato de idosos por sadismo ou cupidez não é mais brando do que qualquer outro acima referido. O assassinato de trabalhadores nos seus postos de trabalho ou de comerciantes nas suas lojas (como se tem visto, com alguma frequência, com portugueses residentes na Venezuela, no Brasil, na África do Sul ou em Moçambique) não pode ser considerado como crime maior só pelo facto de as vítimas serem nossos compatriotas, nem menor por se tratar de brancos em terras de cores.

Todos estes crimes são detestáveis e deveriam ser castigados com severidade, sem considerações de comiseração de contexto, segundo as quais há tolerância por causa do estatuto social, da educação e das condições de habitação. Estes crimes, com ou sem preconceito, com ou sem condições de contexto, devem ser julgados por si. Sem atenuantes.

Os crimes raciais, categoria em que o de Moscavide poderia incluir-se, não devem ser considerados mais odiosos do que os outros. Nem o contrário. Há países e sociedades nos quais matar alguém da minoria (negro, asiático, cigano, hispano, branco, índio…) merece pouca atenção. Períodos houve na história europeia e americana, por exemplo, em que a morte de um branco às mãos de um negro ou de um cigano era crime horrendo, mas o assassinato de um negro ou de um cigano por brancos era já crime de menor importância, a merecer a análise das circunstancias atenuantes. Hoje, vivemos a situação inversa.

É certamente uma das perversões causadas pelo preconceito, aquela que sugere que a condição social ou racial do criminoso, assim como a da vítima, definem graus de culpa variáveis. Os crimes com evidentes implicações racistas (foram vários nos últimos anos em Portugal) suscitaram justificadas emoções, o que é compreensível. Mas não se pode aceitar que esses crimes sejam piores do que os outros, os que não têm implicações raciais e têm razões económicas, sociais, sexuais e religiosas. Como não é aceitável que a identidade das vítimas ou dos criminosos só seja revelada segundo as conveniências.

O que se passou recentemente, no mundo inteiro, com o assassinato de George Floyd por um polícia americano, comoveu a opinião pública e os movimentos de protesto espalharam-se em poucos dias a dezenas de países. Foi certamente um dos momentos em que o contágio por solidariedade se fez mais rapidamente e a mais locais do mundo. Em certo sentido, quem se preocupa com a decência nas relações humanas sentiu com emoção esta espécie de “onda de solidariedade” que atravessou o planeta.

O problema é que a solidariedade é muitas vezes selectiva: a naturalidade, a raça e a crença da vítima e do perpetrador influenciam o julgamento, a solidariedade e as consequências judiciais. Na história recente, é sabido que, na Europa e nos Estados Unidos, os crimes cometidos pelas polícias foram primeiro objecto de condescendência, para serem agora considerados com especial ferocidade. Enquanto os crimes cometidos por africanos começaram por ser muito severamente condenados, para agora serem “compreendidos”. Também faz parte da história recente o tratamento diferenciado dos ricos e dos pobres perante crimes patrimoniais: os roubos de umas dezenas de euros ou dólares, castigados com anos de prisão, contrastam com os assaltos de milhões transformados em perdas ou erros justificados.

A solidariedade e a indignação selectivas são hoje moeda corrente, mas representam sempre um grau muito baixo da moral colectiva.

Em Portugal, vivemos dias particularmente sensíveis. Por razões justificadas, movimentos de minorias têm vindo a organizar a sua actividade na defesa de interesses e na afirmação de cidadania. Por razões de oportunismo, alguns movimentos e forças políticas entenderam explorar todas as situações em que possam enxertar a indignação e a solidariedade selectivas. Assim é que se tenta exacerbar a questão do racismo em Portugal, em polémica quase sempre destituída de razão. 

O problema tem sentido. Mas a polémica é inútil e artificial. Há racismo em Portugal? Com certeza. Há racistas em Portugal? Evidentemente. Portugal é um país racista? Não, nem faz sentido tal observação. Na legislação, nos tribunais, nos sistemas de saúde e educação, em nenhum dispositivo legal há conteúdos racistas e de segregação racial objectiva. Mais: a legislação e a Constituição proíbem as manifestações de racismo. São estas considerações que permitem dizer que “Portugal não é um país racista”, o que parece ferir as sensibilidades de alguns políticos, mas também que as designações de “racismo estrutural” e “racismo sistémico” são meros divertimentos semióticos de quem quer alimentar uma disciplina na sua faculdade.

O mundo contemporâneo tem de aprender a tratar do problema do racismo. É uma das suas grandes chagas. Racismos de todas as cores e com implicações sociais, culturais, politicas e económicas. Racismos em todos os continentes, entre etnias diferentes ou contra as minorias. Certos países são racistas, enquanto em outros há racismos, diferenças evidentes, mas que não interessam aos agitadores de ocasião. Em praticamente todos os países que adquiriram a independência depois da segunda guerra, surgiram, por vezes violentamente, fenómenos de racismo contra grupos locais, contra antigos colonos e contra vizinhos rivais. Nenhum continente está hoje livre de racismo. Um mundo mais decente é um mundo com menos racismo, mais integração e mais igualdade de oportunidades. E com menos pessoas apostadas em exacerbar os racismos por oportunismo político.

 Público, 2.8.2020