sábado, 27 de fevereiro de 2021

Grande Angular - Ainda as duas esquerdas

Por vezes, as grandes crises são propícias às transformações. A actual pandemia é disso um bom exemplo. Aliás, mesmo antes de esta última se ter revelado, já havia sinais de que se preparava uma reconfiguração da política portuguesa. Havia sinais inconfundíveis. O declínio assustador da direita democrática e da democracia cristã. A decadência do centro social-democrata. A frenética ascensão da extrema-direita e do Chega. O imobilismo comunista. A deriva da esquerda radical não comunista. O desenvolvimento das tendências e das “sensibilidades” socialistas. E a proliferação de pequenos partidos.

O protagonismo do Presidente da República acrescentou uma nota consistente e um peso específico próprio com o qual teremos de contar durante os próximos anos. Na sociedade em geral, no mundo sindical, nos meios católicos, nos ambientes maçónicos, nos círculos profissionais e no universo intelectual, surgem fenómenos inéditos que não desmentem a descrença política e sugerem novas afirmações políticas.

Por enquanto, em Portugal, a pandemia tem favorecido o que está estabelecido, o statu quo e o poder do dia. E tem beneficiado os socialistas. Não se sabe por quanto tempo. Por isso, com a necessidade de aprovar três novos orçamentos, com a aproximação das eleições autárquicas e já com as legislativas (antecipadas ou não) no horizonte, a urgência de revisão política é total. Tanto nas esquerdas como nas direitas.

Estranhamente ou não, a esquerda é actualmente a mais importante força de estabilidade e de conservação política. Se pudesse, tudo ficava como está. Aos outros, na oposição, nas margens e nas extremas, compete o mais difícil: reconquistar, reorganizar, renovar e consolidar. Mas a esquerda sabe que, mantendo-se imóvel, fica dependente e pode perder os trunfos actuais. Por isso vamos, quase inevitavelmente, assistir a grandes movimentos políticos e doutrinários no universo esquerdista. E aqui surge, uma vez mais, a necessidade de clarificar as semelhanças e as diferenças entre as duas esquerdas.

Há muitos anos, mais de um século, as divisões dentro das esquerdas são conhecidas. Martov e Kerenski, por um lado, Lenine e Trotski ou Estaline, por outro, representam boa parte dessas diferenças. Que atingiram estados elevados de violência, como é sabido: o assassinato de milhares de socialistas pelos bolchevistas constitui ainda hoje inesquecível marco.

Antes e depois deles, na Rússia e alhures, as discussões dentro das esquerdas nunca foram suaves. Karl Kautsky e Eduard Berenstein protagonizaram visões moderadas do socialismo. Tal como Ebert, na Alemanha, Leon Blum, em França, ou os trabalhistas ingleses Attlee, Bevin e Bevan. Enquanto os comunistas desses países se constituíram depositários do poder soviético e da tradição autoritária e despótica da esquerda.

Em todas as esquerdas europeias, passando pelas alemãs, as suecas, as italianas e as espanholas, encontramos fenómenos semelhantes: desde a segunda metade do século XIX e até há bem pouco tempo, as separações dentro das esquerdas foram sempre um capítulo fundamental, muitas vezes violento, da história política europeia. Por exemplo, os confrontos entre as duas esquerdas, em plena guerra civil espanhola, ficaram para a história. Mais perto de nós e sem o carácter sangrento de outras paragens, o confronto entre socialistas e comunistas, ou entre Soares e Cunhal, transformou-se no mais sério contributo dos portugueses para a história política das esquerdas na Europa.

A associação do PS às esquerdas radicais (PCP e BE), no Parlamento e no governo, já criou uma situação inédita que dura há quase seis anos. Na crise actual, já se percebeu que as coisas não ficarão como estão ou como têm sido. E o que está em causa é muito importante. Juntam-se finalmente as esquerdas democráticas e as não democráticas? Separam-se de vez? A esquerda democrática consegue atrair e digerir as esquerdas não democráticas? Ou estas últimas obtém a vitória histórica de mudar e dominar os socialistas democráticos?

Os socialistas têm o benefício das opiniões e dos votos. Por enquanto. Fortemente identificados com a Europa e a democracia (e a Aliança Atlântica), mostram vantagem. Mas a sua vulnerabilidade diante dos negócios, dos grandes grupos económicos, da corrupção e do jacobinismo abre-lhe um flanco mais fraco. Tal como a sua dificuldade em combater a desigualdade e em alicerçar uma aliança durável com o mundo do trabalho. Dependentes das outras esquerdas, os socialistas, para ganhar, podem ter de vender alma e doutrina.

Na sua melhor tradição, os socialistas opõem-se aos métodos revolucionários, ao terrorismo, à violência, à colectivização, à destruição da iniciativa privada, à opressão da Igreja, ao monopólio do Estado na educação e na saúde, à aniquilação das Forças Armadas e a formas de governo não democráticas e não parlamentares. Mas também sabem que nas esquerdas há muito fortes tendências exactamente contrárias, com especial inclinação para destruir o mercado livre e a iniciativa privada, com um estranho afecto por formas “populares” de governo, com a obsessão do monopólio do Estado e com uma absoluta aversão pelo investimento privado. Estão ainda conscientes de que as esquerdas radicais têm uma concepção elástica dos direitos fundamentais, sobretudo dos direitos cívicos e políticos; assim como têm convicções condescendentes sobre a guerra civil e a luta das classes, a violência e o terrorismo (se este for de esquerda, das minorias, de tudo quanto é anti-capitalista ou anti-americano…) contrárias às tradições socialistas. Como é sabido que nas esquerdas vegeta uma grande complacência, quando não admiração, por formas de governo muito especiais, como sejam as do despotismo tropical latino-americano, as das ditaduras militares africanas e asiáticas, as das burocracias parasitárias africanas e árabes, as dos movimentos radicais muçulmanos e as dos separatistas europeus violentos.

Quando, há seis anos, António Costa decretou “o fim do tabu”, isto é, dispôs-se a governar em aliança com as esquerdas radicais, iniciou-se uma nova e interessante fase na política nacional: a colaboração entre as duas esquerdas. Na Europa, com o desaparecimento dos partidos comunistas e aparentados, já não se falava disso. Mas, em Portugal, quase sempre atrasado, iniciou-se essa colaboração. Por necessidade, claro, mais do que por convicção. Mas, sem esclarecimento, trata-se de colaboração passageira. Sem objectivos. Sem horizonte. Quer isto dizer que a hora das escolhas está a chegar.

Público, 27.2.202 

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Grande Angular - Saudades da luta de classes

A pandemia e os seus efeitos, assim como os processos de combate, a organização dos serviços e a eficácia das medidas tomadas, ocupam os nossos dias, os jornais, as redes e o espaço público. É normal. Fala-se de mais e surgem multidões com uma competência médica e cientifica inesperada. Tanta gente tem tantas opiniões definitivas sobre estes assuntos! Mesmo nestas circunstâncias é razoável que o tema seja a principal preocupação de todos, pessoas, organizações e jornais. Ainda por cima, com a acumulação de incerteza, de ineficiência e de erros, é compreensível que quase não se discuta outra coisa.

Mesmo assim, vivemos tempos em que novas polémicas se instalam, desenvolvem e sobem de tom. Ou antes, velhos preconceitos e antigas irracionalidades renascem. Fascismo e antifascismo, racismo e anti-racismo, antigas rivalidades, estão de novo presentes. Mesmo estando hoje desadequados à sociedade portuguesa, absolutamente fora de tempo e questão, sendo indignos disfarces para outras lutas e infames pretextos para envenenar as relações sociais e políticas, estes dilemas ocupam o espaço que deveria ser de razão e liberdade. Há fascistas em Portugal? Certamente. De todas as condições. Há racistas em Portugal? Não há dúvidas. De todas as cores. Devem a democracia, a razão e a liberdade combater essas pessoas e esses valores? Seguramente e sem hesitação. Mas o que fazem os que se classificam como antifascistas e anti-racistas é tão nefasto à liberdade quanto os adversários. A peste não se combate com a cólera.

Quando as coisas correm mal, mesmo muito mal, o pior vem ao de cima. Os espectros que actualmente ameaçam a paz em Portugal, os vultos que rondam as ruas e os campos são as causas erradas. Não a pandemia, não a desigualdade, não a pobreza, não a incerteza económica e social, mas sim o fascismo e o antifascismo, o racismo e o anti-racismo.

Em tempos de crise, há quem culpe os estrangeiros. É sempre assim, há séculos. Doença ou greve, fuga de capital ou conspiração, terrorismo ou desordem, tudo vem com os estrangeiros. Porque eles tomam conta dos nossos empregos, casam com as nossas mulheres, ficam com os nossos homens, ocupam as nossas casas, trazem valores deles para as nossas escolas, não respeitam as nossas tradições nem as nossas leis. São estrangeiros e abusam da nossa hospitalidade. Aprenderam a viver à custa dos subsídios do Estado, não pagam impostos, só têm direitos, não querem ter deveres. Se não se sentem bem, deveriam ir-se embora. Para o seu país.

E depois há os que além de serem estrangeiros são negros, amarelos ou castanhos. Asiáticos ou ameríndios. Árabes ou chineses. Sem falar nos judeus e nos muçulmanos. São duplamente nocivos. Não respeitam as nossas tradições e querem impor as deles. Desprezam as nossas leis e querem forçar as suas regras. Com os seus deuses, as suas comidas, as suas famílias, as suas regras de casamento e educação, não fazem esforços para se integrar. Forjam casamentos contratados, vendem crianças e adolescentes, trocam pessoas por fortunas, tratam mal os animais, vivem fechados nas suas comunidades, só tratam dos seus e sujam o espaço público de todos e o nosso em particular. Oprimem os seus e não querem saber da democracia.

Somos nós os europeus verdadeiros, senhores de um passado, mestres da descoberta. Filhos e herdeiros de uma longa história, de uma velha tradição, não podemos deixar que nos destruam costumes, regras e crenças. Fomos generosos a ponto de deixar entrar estrangeiros, minorias, negros e árabes, mas eles não se querem integrar nem respeitar as nossas leis. Por isso temos de restaurar a nossa pátria, reconsiderar as nossas tradições e exigir respeito, sem o que terão de ir embora, até porque muitos vieram com mentira, não são refugiados, não são exilados e não são perseguidos. Uns procuram trabalho, outros nem sequer, entregam-se a actividades ilegais, a comércio ilícitos, conspurcam as ruas e as instituições. Não é verdade que somos todos iguais. Quem não está bem que se retire. Não sou racista. Até tenho amigos pretos.

É por isso que combatemos os “supremacistas” brancos. Nós, portugueses de outra etnia, imigrados, minoritários, africanos, estrangeiros, brancos solidários com as minorias e que denunciamos a superioridade dos brancos, dos antigos colonialistas, dos esclavagistas e dos nostálgicos do fascismo. São esses brancos que nos exploram, abusam das nossas mulheres, tentam vender-nos droga, não nos pagam a horas e quando pagam são salários de miséria. Não nos admitem nas suas escolas nem nos seus hospitais, não cuidam dos nossos velhos, pagam mal as pensões e quando as coisas não correm bem para eles, por causa deles, a primeira coisa que lhes ocorre é dizer-nos “vão-se embora”. Nem sequer percebem que muitos de nós, cada vez mais, nascemos aqui. Por isso, exigimos medidas contra os racistas, contra os que, no espaço público, alimentam o ódio contra os estrangeiros, querem restaurar as glórias do colonialismo, a força dos conquistadores, os direitos ilimitados dos brancos e dos poderosos sobre os trabalhadores. Exigimos que nos devolvam o património que nos roubaram durante séculos. E que a história seja expurgada do racismo e do colonialismo.

Estes confrontos envenenam a vida política portuguesa. Destroem a inteligência e o sentido de comunidade solidária. Estes episódios fazem-nos ter saudades da luta das classes! Dos tempos em que as lutas se desenrolavam à volta de questões políticas, económicas e sociais de grande importância e de relevo para a direcção de uma sociedade e para a afirmação de um poder! Dos debates em que estavam em causa o poder político, as relações entre o capital e o trabalho, a propriedade dos meios de produção e a repartição do produto e do rendimento. Dos combates em redor da organização do Estado, da defesa nacional, da paz e da guerra e da segurança colectiva. Saudades dos tempos em que se lutava por valores essenciais da política, do trabalho e do emprego, dos direitos dos trabalhadores e dos patrões, das obrigações e dos deveres de cada um e de todos! Saudades das lutas pelos serviços de saúde e de educação e pelos direitos e deveres dos idosos! Dos tempos em que a liberdade e a democracia estavam no centro das discussões e das lutas e não eram consideradas, como hoje, hábitos adquiridos e secundários ao lado da importância decisiva de símbolos, da memória e da culpa.

Público, 20.2.2021

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Grande Angular - As duas esquerdas

Não é inevitável, mas tudo leva a crer que, dentro de poucos meses, se abra o debate sobre as alianças políticas. Dado o afastamento dos governos de iniciativa presidencial e de unidade nacional, as hipóteses são conhecidas: esquerda contra direita? Bloco central?

Com o que sabemos hoje, não será exagerado prever que a decisão pertencerá sobretudo à esquerda, ao PS em particular. É verdade que a pandemia tem provocado uma enorme erosão do governo, mas também é certo que a direita não parece beneficiar dessa evolução. Cumprida ou não a legislatura até ao fim, a mais importante decisão será a que diz respeito às esquerdas: unidas ou separadas?

Esquerdas sempre as houve, duas ou mais. O que as define e divide é o essencial da política, como a liberdade e a democracia. Nas questões sociais (saúde, educação, segurança social, trabalho…) pode haver diversidade, mas não separação definitiva. É a política que as divide, não o social nem a economia, muito menos a cultura. São poucos os critérios decisivos. A democracia e o respeito pelas regras democráticas vêm à cabeça. Estas constituem os principais elementos definidores da democracia: igualdade de estatuto e de direitos entre cidadãos; direito de voto em eleições periódicas e regulares; quem ganha eleições governa e respeita quem perde; garantia de liberdade de expressão; e instituições livres. Isto é o fundamental. As variantes adjectivas, democracia “cultural”, “social” ou “económica”, por exemplo, são outras coisas. Em geral, fantasias.

O entendimento da liberdade individual é outro critério. Quando a liberdade e a dignidade da pessoa humana começam no indivíduo, estamos numa esquerda. Quando a liberdade individual está submetida à “liberdade colectiva”, quando os “direitos individuais” dependem dos “direitos colectivos” e quando é o “colectivo” que determina a amplitude do “individual”, estamos noutra esquerda. Uma e outra são incompatíveis, a não ser com enorme dose de oportunismo.

O papel da iniciativa privada pode ser mais um critério. A esquerda democrática ou a social-democracia respeitam e dão uma larga margem à iniciativa privada. A esquerda radical, comunista, socialista e revolucionária, não lhe confere qualquer papel, tolera-a a contragosto ou elimina-a. 

Há uma esquerda que pretende controlar a iniciativa privada. Os socialistas e os sociais-democratas andam por aí. O princípio é simples: o poder político tem o primado sobre o poder económico. Há outra esquerda que quer simplesmente acabar com a iniciativa privada, a não ser que seja pequena, pobre e obediente. Os famosos “pequenos e médios” (agricultores, camponeses, comerciantes, industriais…) formam essa iniciativa privada tolerada e dependente.

Há uma esquerda que aceita a economia de mercado, o capitalismo, a livre empresa, os empresários e a iniciativa privada, mas entende que toda esta realidade deve ser compensada, contida, regulada ou equilibrada pela política e pelo Estado Social. Enquanto há uma outra esquerda que tem como objectivo último a destruição do capitalismo, da iniciativa privada, das empresas, das classes proprietárias, da banca, dos seguros e dos serviços privados de saúde e educação.

 

Costuma referir-se outros critérios como a igualdade social e económica, o papel do Estado, a centralização do poder, a regionalização e outros. Mas não são realmente conceitos que identificam ou distinguem. Revelam simplesmente a variedade programática das tendências. Por exemplo, a esquerda democrática, em Portugal, já foi centralista e adversária da regionalização; agora ainda é centralista, mas já é favorável à regionalização. Quanto à esquerda comunista, sempre foi fortemente centralizadora, mas também, paradoxalmente, defensora da regionalização.

Outros critérios importantes são a nação e a identidade nacional. Constituem distinção importante entre esquerda e direita, mas não muito para as duas esquerdas. Conforme os tempos e as necessidades, há nacionalismo, patriotismo e internacionalismo numa ou noutra esquerda, ou nas duas. Ou em nenhuma. A União Soviética, por exemplo, era ferozmente nacionalista e proclamadamente internacionalista.

Novo critério ainda, o da religião. Os republicanos, os maçónicos e os jacobinos, que frequentam com assiduidade o socialismo e a social-democracia, não gostam em geral da religião, receiam-na, utilizam-na quando lhes convém, adulam-na quando precisam, hostilizam-na quase sempre. Já os comunistas, conservadores como são, respeitam a religião enquanto estão na oposição. Se um dia chegam ao poder, perseguem-na.

Interessante é perceber que o que distingue as duas esquerdas não é o que separa a esquerda da direita. Com efeito, o papel do Estado, por exemplo, pode ser defendido com ferocidade por correntes da esquerda, mas também da direita. Os fascismos, o nazismo e as ditaduras ibéricas eram favoráveis ao papel dominante do Estado, tal como a esquerda radical, sempre, e a esquerda moderada por vezes. A regionalização também não é carácter distintivo: tem os favores de várias correntes de direita e várias de esquerda.

O que separa realmente as duas esquerdas é a liberdade e a democracia. É verdade que ambas dão mais importância à igualdade do que à liberdade. Ambas preferem o Estado e o poder político às empresas e ao poder económico. E ambas privilegiam o Estado como fornecedor dos serviços de educação e saúde. Mas há diferenças fundamentais entre as duas esquerdas: a liberdade individual e a democracia.

O PS parece ter renunciado definitivamente à ambição maioritária. O que quer dizer que a sua política de alianças passou a ser a pedra de toque. Aliança com o centro e a direita social-democrata ou democrata-cristão. Ou aliança com a esquerda radical, não democrática e revolucionária. Esta parece ser a mais provável. O que tem o mérito de obrigar a uma discussão séria sobre os limites dessa aliança, o seu objecto e o seu horizonte. 

Como é sabido, o Estado democrático é, para os comunistas e talvez também para o Bloco, etapa ou fase de transição. O que vem a seguir, mais ou menos socialista, mais ou menos comunista, mais ou menos ditadura do proletariado, mais ou menos democracia avançada, é uma grande incógnita. Que precisa urgentemente de esclarecimento. Em tudo o que é essencial, os direitos individuais, o Estado, a democracia, a defesa nacional e a propriedade, a separação entre as duas esquerdas é total, o obstáculo é intransponível. A não ser que uma abdique a favor da outra.

Público, 13.2.2021

sábado, 6 de fevereiro de 2021

Grande Angular - Cuidado com as ambições!

Um boato corre o mundo: foi a pandemia que derrotou Donald Trump. A vida política é feita destas pequenas verdades e destes grandes boatos, assim como de rumores académicos, disfarçados de rara sabedoria. Inventados por gente esperta, são depois retomados nas redacções dos jornais e nos canais de televisão. Assim se chegou à certeza de que a pandemia tem potencialidades políticas inesperadas. Logo se começou a pensar que é preciso agir depressa para aproveitar o momento. De imediato se começaram a fazer cálculos para as mais insensatas aventuras, para o que políticos portugueses rapidamente se prepararam.

Está estabelecida a ideia de que “quanto pior melhor”. Se tudo correr mal nos hospitais e nos centros de saúde, perde o governo e ganha a oposição. Como de facto muito não está a correr bem, os políticos de oposição sentem que têm de estar atentos. Não só os actuais dirigentes, mas também os candidatos. As direcções partidárias do PS, do PSD, do CDS, do Bloco e até, imagine-se, do PCP são vítimas da pandemia.

Assim é que, dentro dos partidos, começou a temporada de luta e caça. Até no PS, que deveria estar mais empenhado em tratar do governo e do país, apareceram as primeiras “movimentações”. Nos outros partidos, vai haver luta pela liderança antes do Inverno. Na previsão de que, até lá, se confirme a perda de reputação de António Costa e do seu PS. Desde a votação do orçamento que se percebeu que a maioria estava desfeita. Bloco e PCP fazem contas à vida e percebem, com as presidenciais, que o seu futuro está periclitante. Foi quanto bastou para que a competição interna desse sinais de aquecimento. No PSD, que nunca deixou de estar em guerra consigo próprio, revelaram-se já ambições inesquecíveis.

A verdade é que o governo e as autoridades sanitárias não têm desempenhado as suas funções com eficácia. Antes pelo contrário. Mostraram hesitação, ignorância e medo. Revelaram prepotência e capricho. Deram provas de uma obscena inclinação para a propaganda política. Deixaram vir à tona do discurso toda a sua aversão à sociedade e à economia privadas. Ganharam terreno as alucinadas veleidades do PCP e do Bloco que sonham com a destruição pura e simples do mundo privado.

As autoridades enganaram-se com as máscaras, o plano de vacinas, a duração e as regras do confinamento, os comércios a fechar, o ensino à distância, o teletrabalho e a colaboração com os hospitais privados. Falharam nas previsões. Mesmo sabendo, como os socialistas dizem há anos, que o Serviço Nacional de Saúde estava com enormes faltas de pessoal, instalações e equipamento, não foram tomadas medidas suficientes, mal se soube o que aí vinha. Erraram para além do admissível numa área particularmente sensível, a do racionamento e das prioridades das vacinas.

Exageraram nas facilidades e no optimismo quando deviam ser firmes nas regras e nos costumes. Tentaram manipular as taxas e as estatísticas, como fazem os ditadores. Exageraram nas conferências de imprensa ou nas conversas de vão de escada, deram avalanches de pormenores técnicos, logo contrariados no dia seguinte, afogaram a opinião pública, confundiram os cidadãos com excesso de informações inúteis, ocultaram sistematicamente os números simples e reveladores em proveito das enxurradas de equações e taxas. Conduziram uma política de comunicação errada. Informação a mais. Pormenores técnicos a mais. Política a mais. Ideologia a mais. Auto-suficiência a mais. Foram meses que poderão servir, dentro de anos, nas escolas de comunicação, como exemplos da arte de errar e manipular.

Portugal já revelou os melhores resultados do mundo, está agora na fase dos piores resultados do mundo! A chegada de equipas médicas das Forças Armadas alemãs, com material e equipamento, foi festejada como uma vitória diplomática. Foi gesto único ou quase em toda a Europa. A recepção no aeroporto foi um triunfo. Só que o facto não foi apenas visto com reconhecimento. Levou toda a gente a concluir o inevitável: a situação é pior do que se pensava, está tudo mais grave do que se imaginava.

As mudanças de regras e de critérios relativamente às vacinas, a denotar demagogia e propaganda, constituíram os momentos mais confrangedores desta opereta. A elaboração das listas dos “vacináveis” é um monumento à incompetência. Mais de oitenta anos? Mais de 65? Mais de 50, mas com doenças? Que doenças? E os políticos? Os governantes e os deputados? E os profissionais de saúde? E os cuidadores? E os autarcas? E os habitantes dos lares? E os responsáveis das IPSS? 

Desorientação convida a sonhar e crise acelera as ambições. Que fazer? Convocar eleições? Dissolver o Parlamento? Demitir o Governo? Nomear um governo de iniciativa presidencial? Obrigar a um governo de unidade nacional com todos os partidos? Forçar um bloco central com o PS e o PSD? Exigir uma coligação formal com de toda a esquerda? Estamos no domínio da fantasia. Os especialistas em artes e manhas políticas sabem tanto ou mais do que os especialistas em máscaras cirúrgicas e em marcas de vacinas.

Reformar? Sim. Mudar um ministro? Com certeza. Demitir um director? Sem dúvida. Criar um serviço mais competente, menos político, menos partidário, mais isento e mais operacional? Sem hesitações.

Mudar o governo? Fazer novo orçamento? Repartir cargos pelos diferentes partidos? Distribuir os directores pelos partidos apoiantes? Voltar aos debates programáticos no Parlamento? Nem pensar nisso! Não há tempo, nem necessidade. Nem se compreenderia uma monumental perturbação política no meio da pandemia, da terceira ou quarta vaga. A não ser que se pretenda pura e simplesmente esquecer a democracia, congelar direitos e deveres, impor autoridade sem limites…

Faça-se o que tem de ser feito neste maldito ano. Mude-se um ou vários ministros. Secretários de Estado. Comissários e directores gerais. Alterem-se procedimentos. Acabe-se com o discurso ridiculamente propagandístico. Recorra-se cada vez mais aos profissionais e aos cientistas. E sobretudo vacine-se o país! Quando chegarmos a um equilíbrio sanitário, a um controlo eficaz e a uma relativa imunidade de grupo, nessa altura terão tempo para fazer eleições, recompor maiorias e governos, derrubar presidentes e secretários-gerais, ajustar contas, derrotar com seriedade os extremos, elaborar plataformas pré-eleitorais adequadas e conhecidas a sufragar pelo eleitorado… E sobretudo terão salvado vidas.

Público, 6.2.2021