sábado, 26 de junho de 2021

Grande Angular - Livres e iguais

A mais temível ameaça actual contra a liberdade e a democracia é a desigualdade. Seja esta social, racial, cultural, política ou económica. A desigualdade crescente envenena de tal modo as relações sociais que a liberdade e a democracia se encontram sob ameaça. No passado, a pobreza estava escondida e a desigualdade disfarçada. Hoje, uma e outra são universalmente visíveis. Associada a outros factores de carácter político e cultural, a desigualdade é fonte de conflitos que põem em causa a solidez das instituições. Por isso, é o mais premente.

Esperava-se que a democracia poderia liquidar as desigualdades. Há décadas que essa luta prossegue, com notáveis vitórias da democracia. Na política, na escola, na economia, na saúde, no trabalho e na cultura, as vitórias da democracia são inegáveis. A criação de sistemas de saúde e a promoção da escola para todos deram um enorme contributo para a democracia. A solidez dos Estados de protecção social é talvez o mais seguro alicerce da democracia contemporânea.

Ainda há número excessivo de casos de pouca ou nenhuma liberdade e de demasiada desigualdade. Nas fábricas da China e da Índia, nos bairros urbanos de África e nos campos de refugiados do Próximo Oriente, não faltam sociedades sem liberdade, sem democracia e com enorme desigualdade. E mesmo em democracias não é raro encontrar fenómenos de grande desigualdade e fragilidade social. Mas é consolador verificar que, no mundo, justiça e igualdade têm uma correlação forte com democracia e liberdade.

Mas a desigualdade ameaça também a liberdade de modos imprevistos, os de certos tipos de luta contra a desigualdade. Como se viu em tantas experiências ditas comunistas, da União Soviética à China, da Albânia ao Camboja. Criar a igualdade à força só com enorme prejuízo da liberdade. O combate contra o racismo, nas suas modalidades radicais, degenera rapidamente em racismo. A luta contra a autoridade provoca frequentemente o nascimento de poderes autoritários. Sem mérito, a luta pela igualdade educativa pode provocar empobrecimento do conhecimento.

Ora, as políticas de promoção da igualdade, indispensáveis para consolidar a democracia e criar justiça social, devem ser aceites pela maioria dos contribuintes e dos eleitores. Caso contrário, estão condenadas. A política de combate à desigualdade não deve ser de tal modo concebida que se transforma ela própria em fonte de desigualdade e de injustiça. Com o objectivo de promover a igualdade, não se devem criar situações em que as minorias, os grupos vulneráveis, os segmentos mais fracos da população e os grupos mais frágeis acabem por se encontrar em situação privilegiada relativamente aos que não foram beneficiados por intervenções oficiais, mas que vivem do seu trabalho, dos seus rendimentos e dos seus esforços.

São nefastas as leis e as políticas destinadas a promover direitos de grupos especiais, a conceder privilégios que causem nova injustiça. Os direitos gerais devem ser promovidos de modo igual para todos. Os direitos são dos cidadãos, dos seres humanos, não de minorias ou de grupos, de velhos, de mulheres, de crianças, de doentes, de LGBTQ, de imigrantes, de negros, de ciganos, de transmontanos ou de ilhéus.

A promoção do imigrante, da mulher, do negro, do judeu, do trabalhador, do desempregado, do analfabeto, do recluso e do doente não deve fomentar a criação de novos grupos, mas sim aquilo a que se chama actualmente a inclusão. A inclusão deve aumentar a integração e não a construção de sociedades fragmentadas, em tabuleiros de xadrez ou em guetos.

É racista a lei que crie sistemas e dispositivos especiais para certos grupos com características ditas raciais particulares. É racista a política que crie e defenda privilégios, garantias e direitos especiais para qualquer grupo nacional. São sectárias e desiguais as leis e as políticas destinados a proteger direitos gerais a grupos especiais.

A última fantasia da União Europeia é a da aprovação de uma moção de apoio às pessoas ditas LBGTIQ+ e de condenação da legislação repressiva húngara. Muitos países assinaram. Portugal não assinou, mas disse que estava de acordo. Parece Bill Clinton, que fumou mas não engoliu. A verdade é que este texto, carregado de boas intenções, é mais um passo no mau caminho: o que gradualmente constrói uma nova ortodoxia, um mundo feito de fragmentos, de federações e de comunidades rivais.

A propensão demagógica para criar direitos e favorecer grupos tem levado a criar um Estado repleto de novos confrontos. Não se passa um dia sem que surjam novos direitos para novos beneficiários, aumentando ou insistindo na separação, em vez de integração. Direitos dos trabalhadores, das crianças, dos velhos, dos imigrantes, dos negros, dos ciganos, dos rurais, dos urbanos, dos residentes no interior, dos analfabetos, dos LBGTIQ, dos desempregados, dos estudantes e dos doentes são direitos sectários, desiguais, racistas e discriminatórios. Todos esses direitos e garantias podem simplesmente ser os direitos de todos, dos residentes, dos cidadãos ou simplesmente dos humanos. Caso contrário, transformam-se em privilégios. Que aliás são, entre nós, favorecidos pela Constituição, que consagra mais direitos parcelares e de grupos especiais do que se pode imaginar.

O importante é a desigualdade e a pobreza. Seja esta moral, educativa ou económica. Saúde? Educação? Alojamento? Alimentos? Rendimento? Não faltam preocupações para um governo. Mas não deveria ser especialmente para ciganos ou negros. Nem para gente do interior ou dos subúrbios. Se for, é racismo, privilégio ou desigualdade. Se for para todos, é mais fácil que a população aceite e o contribuinte pague. É mais fácil que as populações aceitem politicamente pois não são forçadas a ajudar grupos especiais.

Propinas especiais para negros? Para ciganos? Para asiáticos? Nem pensar. Será racismo, desigualdade e discriminação. E é provável que a maioria da população e dos contribuintes não esteja de acordo. Bolsas e subsídios, incluindo custos de propinas, para todos os que não têm? Todos os que precisam? Sim e é mesmo possível que grande número dos beneficiários venham a ser negros, ciganos e imigrantes. Mas não é por isso, por serem negros, ciganos e imigrantes que são apoiados, mas simplesmente porque são pobres, porque não têm recursos e porque merecem.

 Público, 26.6.2021 

sábado, 19 de junho de 2021

Grande Angular - Dois casos longe demais

Foram entregues dados pessoais de manifestantes a várias dezenas de Embaixadas, de esquerda e de direita, umas de países amigos, outras de países assim-assim. Esta variedade é suficiente para dizer que o Governo e a Câmara não tiveram um comportamento sectário. Mas também para revelar um condenável grau de subserviência perante os Estados estrangeiros, o que quer dizer que os direitos dos cidadãos são secundários.

Depois de um longo silêncio por parte do governo e de um crispado nervosismo do Presidente da Câmara de Lisboa, houve finalmente explicações. A extensa e notarial explicação de Fernando Medina não é convincente. Defende a irresponsabilidade. Apoia-se numa auditoria feita pela própria Câmara, não por entidade externa. E remete as responsabilidades para os serviços administrativos. É verdade que, em vez da tradicional negação, ele escolheu a via da condenação dos factos (“procedimento inadequado”). Considerou que a Câmara fez mal. Mas a afirmação repetida da sua inocência não é convincente. Ora, a sua responsabilidade é indiscutível: ou por acção deliberada e conhecimento; ou por desconhecimento e indiferença.

Sabemos agora que, nos últimos anos, as Embaixadas estrangeiras em Lisboa foram informadas da ocorrência de mais de 150 manifestações de carácter político, das quais 52 desde 2018. Essas manifestações dirigiram-se às Embaixadas, ou tiveram lugar noutros sítios, mas tinham países ou governos estrangeiros, como alvo. Além destas, realizaram-se mais umas centenas ou milhares de manifestações que motivaram comunicações semelhantes, mas não a Embaixadas.

Segundo o Presidente da Câmara de Lisboa, que mudou de atitude relativamente a estes factos, os dados pessoais eram transmitidos às Embaixadas, tal como ao Ministério da Administração Interna, à polícia, a instituições e empresas. Estes procedimentos foram habituais, durante perto de vinte anos. Segundo o Presidente da Câmara, os responsáveis políticos não sabiam o que se passava e o ex Presidente António Costa terá mesmo assinado um despacho alterando as regras. Durante dez a vinte anos, os responsáveis políticos não se interessaram pelo assunto, nem pela lista de destinatários. Nem sequer pelo cumprimento das instruções.

Segundo o Presidente da Câmara, estes procedimentos foram inadequados e devem ser imediatamente corrigidos. Para já, o responsável pela protecção de dados foi exonerado. E o Gabinete de Apoio ao Presidente foi transformado em Direcção de Serviços de Expediente. Assim é que culpa os funcionários, por desatenção e inconsciência e isenta os políticos de responsabilidades.

As declarações do Presidente da Câmara de Lisboa constituem facto notável e inédito na história política portuguesa. Têm excepcional valor, pois confirmam a delação e a denúncia. Além de desculpas, que já tinha pedido, o político reconheceu a ilegalidade e condenou os comportamentos. Em vez de negar, como outros fazem, reconheceu o carácter inadequado, para utilizar a sua expressão preferida. Menos notável e muito menos inédito é o facto de ter culpado os subordinados, que castigou. Não muito original é também o facto de se ter ilibado de qualquer responsabilidade política. 

Há duas hipóteses a considerar. Primeira: o Presidente da Câmara e os vereadores não sabiam o que se passava, pela simples razão que algumas questões de direitos dos cidadãos lhes eram indiferentes. Não sabiam, nunca souberam, não são culpados de delação deliberada, de traição ou negligência. Mas são culpados de indiferença perante os direitos dos cidadãos seus compatriotas.

Segunda hipótese, bem mais grave: o presidente da Câmara e os vereadores sabiam o que se passava, estavam informados das rotinas e consideravam normal que assim se procedesse, pela simples razão de que alguns direitos dos cidadãos lhes são indiferentes. As declarações do presidente da Câmara sobre estes factos não são esclarecedoras.

ausência do Governo deste processo é notável. Para o Primeiro-ministro, o assunto é meramente administrativo e camarário. Ele e os seus ministros da Justiça, da Administração Interna e dos Negócios Estrangeiros nada têm a ver com isto. Não têm responsabilidades, nem competências. Nada foi esclarecido. Nem se sabe quantas câmaras em Portugal fazem o mesmo.

Mas há outro problema. O da entrega de dados às polícias. Mesmo às polícias portuguesas, tal gesto, é condenável. Trata-se de cidadãos que se querem exprimir ou manifestar. Não se trata de criminosos, foragidos, terroristas ou procurados pelas polícias. A presença numa manifestação não é assunto de polícia. A entrega desses dados às polícias é tão condenável quanto a entrega às Embaixadas. Pela mesma razão: os nomes são entregues a essas entidades para que estas controlem, vigiem e exerçam poder sobre cidadãos.

O mais confrangedor, quase arrepiante, é a reacção do governo e do autarca perante as críticas e as objecções. Ficaram crispados e ofendidos. Mostraram-se despóticos e nem sempre verdadeiros. Acusaram os seus críticos de fazer política… de mentir… de oportunismo, epítetos que lhes servem a si próprios. Ridicularizaram os críticos e os que fizeram perguntas. Na verdade, reagiram com o nervosismo dos mentirosos e dos apanhados em flagrante.

Mas há também o caso dos “direitos na era digital” e das tentativas de monitorização das ideias, do pensamento e da opinião. A coincidência temporal dos dois acontecimentos, a delação e o controlo da expressão, é curiosa e irónica. Não há, evidentemente, uma relação factual e causal entre os assuntos. Mas há uma cultura comum. A do controlo da informação. A do controlo da expressão. A ideia de que se pode e deve invadir as áreas privadas ou pessoais dos cidadãos em defesa do Estado. E dos próprios cidadãos, segundo alguns mais atrevidos. 

Seja como rotina administrativa, seja como decisão política, é claro que a transacção de dados traduz uma ideia e uma cultura para as quais a privacidade, o recato e a confidência tão pouco valor e significado. Vigiar as “narrativas” e as comunicações dos cidadãos é tão vil e tão despótico quanto entregar dados pessoais às polícias e às embaixadas. Mesmo políticos que parecem cultivar o valor das liberdades, dos direitos e das garantias dos cidadãos, mesmo eles submetem tais valores à sua duração e ao seu interesse.

Público, 19.6.2021

 

 

sábado, 12 de junho de 2021

Grande Angular - Delação!

Em 2021, na Europa, continente dos direitos e das liberdades, terra de asilo e refúgio, em Portugal, Estado democrático há quase cinquenta anos, mais propriamente na capital, Lisboa, a Câmara Municipal tem gesto horrendo de delação e insídia.

É possível que o presidente da Câmara, Fernando Medina e o seu gabinete de apoio não tenham querido expressamente agradar ao governo russo e entregar os cidadãos que se manifestaram em Lisboa. É também possível que a Câmara de Lisboa não tenha desejado encantar os governos de Israel, da China e da Venezuela, fornecendo-lhes coordenadas de opositores. É finalmente provável que, dada a diversidade de governos em causa, a Câmara de Lisboa não esteja a seguir os caminhos da cumplicidade política. Muito bem. É sempre bom deixar a porta aberta a uma explicação inocente. Ma a verdade é que a Câmara de Lisboa praticou, durante anos, actos moralmente reprováveis e politicamente condenáveis.

O Presidente da Câmara pediu desculpas. Mas não respondeu a dúzias de perguntas. Não revelou responsabilidades, não esclareceu o comportamento da sua instituição. O Presidente da Câmara pediu perdão, mas defendeu-se mal e não foi convincente. Depois das desculpas de mau pagador, criticou os adversários políticos. Donzela ferida, tratou-os de oportunistas. Contra-atacou, na crença de que era essa a melhor defesa. Mas admitiu que as informações poderiam ser dadas a países democráticos.

O Governo, a quem se exige explicação pronta, parece estar ausente. Pretende que o problema se limite a Lisboa e seja uma questão municipal. Mas não pode escapar a várias exigências, como seja a de verificar quantos municípios fazem o mesmo. Assim como de responder a afirmações claras do embaixador russo, segundo as quais a sua embaixada recebe muitas informações deste tipo e que as outras embaixadas também.

Os silêncios e os adiamentos do Primeiro-ministro foram confrangedores. Assim como os dos Ministros dos Negócios Estrangeiros, da Administração Interna e da Justiça. Onde está a decisão de mandar efectuar inquérito urgente? Que outros organismos fornecem dados pessoais e políticos às embaixadas? E às polícias? Quantas câmaras municipais (são 308 no país inteiro) têm as mesmas rotinas? Quantas enviam dados pessoais e políticos às embaixadas? E aos serviços de informação?

Em tudo quanto se vê, ouve e lê sobre este assunto, há frequentemente um gosto amargo. Muita gente, autoridades, jornalistas, comentadores e académicos, sugere que há modos aceitáveis e denúncias justificadas. “Se é um país democrático…”, alvitra um. “Se for um país da União Europeia…”, sugere outro. “Se ainda fosse um país da NATO…”, aconselha ainda outro. 

Ou então, há quem aceite facilmente que nomes de pessoas possam ser enviados para a PSP, a GNR, o SIS e outras polícias. Nomes individuais? Com dados e coordenadas? Para as polícias? Enviados pela autarquia? A que título? Denúncia? Vigilância? Moralidade de costumes? Espionagem politica? Custa acreditar que os nossos contemporâneos, portugueses ou europeus, estejam assim tão insensíveis às questões de direitos fundamentais e da liberdade individual.

Parece que estão aceites normas condenáveis. Por exemplo, pode enviar-se informação pessoal e política a embaixadas de países democráticos, amigos e aliados! Tal é errado! Não se deve enviar informação deste tipo a nenhuma embaixada, amiga ou não. Desde que ao abrigo de tratado internacional e sem qualquer implicação política, as únicas informações pessoais que poderão ser objecto de transmissão cuidadosa e condicional são as que dizem respeito a criminosos procurados pela INTERPOL, assassinos, salteadores e traficantes de qualquer coisa.

Parece que se pode enviar informação pessoal e política a países democráticos que respeitem a Convenção dos Direitos Humanos. Falso! Não se pode nem deve enviar informação deste género a nenhum país, seja qual for o regime. Até porque seria necessário avaliar, caso a caso, a democracia de cada Estado. 

Há quem não veja inconveniente em que se possa enviar informação pessoal e política aos países da União Europeia com os quais existe já uma tradição de partilha de informação e de canal aberto entre as polícias. Errado! A informação pessoal e política não deve ser enviada a nenhum pais, seja ele da União Europeia, da NATO, da CPLP ou de qualquer outra associação internacional. Tanto faz que seja a Rússia ou a China, a Espanha ou a Itália! Isto não se faz, ponto final!

Pode uma câmara municipal, no quadro das actividades da liberdade de manifestação, enviar informação pessoal e política às polícias portuguesas, à PSP, à GNR, ao SEF e ao SIS. Errado! Isso também é próprio de Estado policial. A Câmara só deve saber onde se desenrolam as manifestações e disso, apenas disso, informar as polícias e os agentes de trânsito. Não tem de dar nomes de pessoas.

Dizem ainda que se pode enviar informação pessoal e política a empresas, instituições e organizações diante das quais se fazem manifestações. Errado! A Câmara pode informar sobre a ocorrência prevista, o local e a hora, mas nada deve dizer sobre as pessoas e as suas coordenadas!

O problema não é o de protecção de dados, como tanta gente diz. Não é um problema de segredo informático, nem de procedimento administrativo. O problema é político e fundamental. Uma Câmara não pode usar prerrogativas oficiais para obter dados pessoais e políticos a fim de os transmitir seja a quem for!

Medina garante que a delação foi um erro técnico administrativo de procedimentos. Não é verdade! Trata-se de cultura de poder! De Inquisição! De espionagem política. De denúncia e delação. Não é um caso de protocolo, nem um erro de rotinas, é uma questão de controlo da liberdade de expressão!

A ideia de que esta é uma “partilha de dados” é sinistra e faz pensar em relações comerciais, burocráticas e similares. Aqui não se trata de partilha do que quer que seja. Há entrega, delação e denúncia de pessoas cujas coordenadas podem facilitar a espionagem, a perseguição e a represália. Não estamos a falar de hábitos de consumo ou de preferências comerciais, dados que aliás nunca deveriam ser recolhidos sem autorização. Estamos a tratar de liberdades, de garantias constitucionais e de direitos fundamentais. E de instrumentos, aparentemente neutros, que podem servir eficazmente para a perseguição pessoal e política. Falamos de liberdade!

Público, 12.6.2021 

sábado, 5 de junho de 2021

Grande Angular - O Político e o Soldado

É uma das mais difíceis relações humanas e sociais que se conhecem: entre um político e um soldado. Ou entre a política e a defesa. Milhares de páginas foram já escritas sobre o tema. Que ainda é actual e surpreende.

São relações muito próximas, de autêntica cumplicidade, de indiscutível rivalidade e de permanente conflito. Um precisa do outro tanto que pode ser doentio. Por isso desconfiam um do outro. Mas sabem que em oposição não há futuro. Por isso, quase sempre, sobretudo em democracia, encontram vias de cooperação.

Não parece ser este o caso, actualmente, a propósito das alterações às leis da Defesa Nacional e de Bases de Organização das Forças Armadas. Órgãos de soberania e detentores do poder político comportam-se como se pudessem dispensar a cooperação das chefias militares ou como se bastasse ter a concordância de um muito pequeno leque de responsáveis. É inexplicável que o governo e os dois maiores partidos parlamentares estejam prontos para abrir conflitos entre a política e a defesa. É incompreensível que tal suceda sem motivos aparentes, sem necessidade ou urgência, sem uma história recente de dificuldades, sem a premência da correcção de erros e sem a evidência de melhoramentos.

Na discussão actual, não é apenas a disputa entre políticos e soldados, que está em causa. Na verdade, há militares prestigiados no campo dos políticos, como há políticos reputados no campo dos soldados. Mas é certo que o conflito coloca frente a frente o soldado e o político. O oficial e o governante. O que é pior. Com efeito, se estivéssemos apenas diante de um conflito de ideologia, a democracia acabaria por resolver os problemas. Mas não. Estamos diante de confronto de instituições, de autoridades, de legitimidades e de responsabilidades. O que é mais grave e exige mais cuidado no debate.

É estranho, tão estranho e significativo que, perante reais problemas de defesa, se estejam a gastar energias e a abrir feridas. Há bastantes anos que os governos têm marginalizado as Forças Armadas e a Defesa. Esta afirmação é incontroversa, mesmo se avaliada de modo diferente. Para uns, esta tendência é positiva, pode conduzir a um Estado sem militares, a uma despesa pública reorientada para obras sociais e a um abandono do envolvimento militar do país. Para outros, este é um caminho negativo, que prejudica a independência e a autonomia do país, que enfraquece a segurança e que põe em causa a cooperação com os aliados.

Esta divergência é antiga. Hoje, tem aumentado a força dos que gostariam de ver Portugal desmilitarizado (como dizem), sem despesas militares e sem empenho em alianças. Estas convicções não se fazem muito sentir na praça pública, não são tonitruantes, mas crescem. Na verdade, ao contrário das funções de polícia, as de defesa e segurança têm registado definhamento. Com a colaboração de vários partidos.

Sob a pressão de quase todos os grupos políticos, as Forças Armadas portuguesas têm sido votadas a uma evidente secundarização. Há vários anos que se assiste à diminuição de recursos. Que se nota a falta de renovação de equipamento. Que é preocupante a quebra de recrutamento e de efectivos. Que diminuem as perspectivas profissionais dos militares desmobilizados. E que está em curso uma miniaturização das Forças Armadas. Tudo isto num quadro de maior incerteza, até por causa do afastamento dos EUA e da crescente indeterminação da União Europeia quanto ao futuro da sua defesa colectiva e da NATO.

Raramente na história se assistiu a um diferendo tão aberto e um conflito tão público entre as autoridades políticas e as chefias das Forças Armadas. A maior parte dos chefes actuais e um elevadíssimo número de antigos chefes de Estado Maior, incluindo o antigo Presidente da República Ramalho Eanes, tomaram posições públicas, discordaram dos planos do governo, fizeram as suas propostas e estranharam o modo de trabalho imposto pelo Governo, que nem sequer deu a conhecer a tempo as suas sugestões. É verdade que já várias vezes, nas últimas décadas, se verificaram divergências entre autoridades políticas e chefias militares. Mas nunca essas atingiram uma tão elevada magnitude, nunca foram tão públicas e nunca as autoridades políticas revelaram um semelhante grau de crispação e uma tão clara falta de vontade de cooperação.

Os motivos apresentados pelo Governo são geralmente do domínio da abstracção. Coordenar, articular, operacionalizar e fazer como os outros são as palavras-chave. Mas não aparece argumentação política e histórica que nos diga que estas alterações surgem por força de necessidades reais, em resultado da análise de situações concretas e com o fim de corrigir erros. O Governo pretende aumentar a sua intervenção directa em assuntos militares.

Mais do que as opções de fundo, é o método que está em causa. E não é uma questão de lealdade e cortesia, a que aliás o governo faltou. É muito mais importante do que isso. O governo entende ser possível e ser seu direito reestruturar e reformar as Forças Armadas e a Defesa sem a colaboração concordante e empenhada dos dirigentes militares. Ora, tal não é possível sem a cooperação permanente dos chefes dos três ramos. Só uma estranha aliança entre o PS e o PSD concebe que seja possível reformar as Forças Armadas contra ou sem a vontade dos chefes militares.

Em todo este processo, os principais chefes militares nunca concordaram com as escolhas do governo. Conheceram as propostas tarde e a más horas, sem tempo de reflexão e sem quadro de colaboração. O governo achou muito mais importante e urgente obter o acordo do PSD antes de ter o dos chefes militares. Diante das reticências destes, o governo entendeu que não era com eles, mas sim com os deputados, que as discussões se deveriam desenrolar. A clivagem, de que o governo é responsável, está feita. Ainda não se conhece a posição do Comandante Supremo das Forças Armadas, o Presidente da República. Agora, só ele pode travar este erro flagrante.

A crença em que a Defesa Nacional é assunto exclusivamente político e que as Forças Armadas se devem comportar como mero sector interessado é sinistra. A hipótese de passar a considerar os chefes militares como meros consultores é nefasta. A ideia de que a política comanda a defesa é certa: a legitimidade das Forças Armadas, em democracia, vem disso mesmo, do povo e da democracia. Mas vem também da história, das instituições e da responsabilidade dos militares que é única e singular.

Público, 5.6.2021