É uma das mais difíceis relações humanas e sociais que se conhecem: entre um político e um soldado. Ou entre a política e a defesa. Milhares de páginas foram já escritas sobre o tema. Que ainda é actual e surpreende.
São relações muito próximas, de autêntica cumplicidade, de indiscutível rivalidade e de permanente conflito. Um precisa do outro tanto que pode ser doentio. Por isso desconfiam um do outro. Mas sabem que em oposição não há futuro. Por isso, quase sempre, sobretudo em democracia, encontram vias de cooperação.
Não parece ser este o caso, actualmente, a propósito das alterações às leis da Defesa Nacional e de Bases de Organização das Forças Armadas. Órgãos de soberania e detentores do poder político comportam-se como se pudessem dispensar a cooperação das chefias militares ou como se bastasse ter a concordância de um muito pequeno leque de responsáveis. É inexplicável que o governo e os dois maiores partidos parlamentares estejam prontos para abrir conflitos entre a política e a defesa. É incompreensível que tal suceda sem motivos aparentes, sem necessidade ou urgência, sem uma história recente de dificuldades, sem a premência da correcção de erros e sem a evidência de melhoramentos.
Na discussão actual, não é apenas a disputa entre políticos e soldados, que está em causa. Na verdade, há militares prestigiados no campo dos políticos, como há políticos reputados no campo dos soldados. Mas é certo que o conflito coloca frente a frente o soldado e o político. O oficial e o governante. O que é pior. Com efeito, se estivéssemos apenas diante de um conflito de ideologia, a democracia acabaria por resolver os problemas. Mas não. Estamos diante de confronto de instituições, de autoridades, de legitimidades e de responsabilidades. O que é mais grave e exige mais cuidado no debate.
É estranho, tão estranho e significativo que, perante reais problemas de defesa, se estejam a gastar energias e a abrir feridas. Há bastantes anos que os governos têm marginalizado as Forças Armadas e a Defesa. Esta afirmação é incontroversa, mesmo se avaliada de modo diferente. Para uns, esta tendência é positiva, pode conduzir a um Estado sem militares, a uma despesa pública reorientada para obras sociais e a um abandono do envolvimento militar do país. Para outros, este é um caminho negativo, que prejudica a independência e a autonomia do país, que enfraquece a segurança e que põe em causa a cooperação com os aliados.
Esta divergência é antiga. Hoje, tem aumentado a força dos que gostariam de ver Portugal desmilitarizado (como dizem), sem despesas militares e sem empenho em alianças. Estas convicções não se fazem muito sentir na praça pública, não são tonitruantes, mas crescem. Na verdade, ao contrário das funções de polícia, as de defesa e segurança têm registado definhamento. Com a colaboração de vários partidos.
Sob a pressão de quase todos os grupos políticos, as Forças Armadas portuguesas têm sido votadas a uma evidente secundarização. Há vários anos que se assiste à diminuição de recursos. Que se nota a falta de renovação de equipamento. Que é preocupante a quebra de recrutamento e de efectivos. Que diminuem as perspectivas profissionais dos militares desmobilizados. E que está em curso uma miniaturização das Forças Armadas. Tudo isto num quadro de maior incerteza, até por causa do afastamento dos EUA e da crescente indeterminação da União Europeia quanto ao futuro da sua defesa colectiva e da NATO.
Raramente na história se assistiu a um diferendo tão aberto e um conflito tão público entre as autoridades políticas e as chefias das Forças Armadas. A maior parte dos chefes actuais e um elevadíssimo número de antigos chefes de Estado Maior, incluindo o antigo Presidente da República Ramalho Eanes, tomaram posições públicas, discordaram dos planos do governo, fizeram as suas propostas e estranharam o modo de trabalho imposto pelo Governo, que nem sequer deu a conhecer a tempo as suas sugestões. É verdade que já várias vezes, nas últimas décadas, se verificaram divergências entre autoridades políticas e chefias militares. Mas nunca essas atingiram uma tão elevada magnitude, nunca foram tão públicas e nunca as autoridades políticas revelaram um semelhante grau de crispação e uma tão clara falta de vontade de cooperação.
Os motivos apresentados pelo Governo são geralmente do domínio da abstracção. Coordenar, articular, operacionalizar e fazer como os outros são as palavras-chave. Mas não aparece argumentação política e histórica que nos diga que estas alterações surgem por força de necessidades reais, em resultado da análise de situações concretas e com o fim de corrigir erros. O Governo pretende aumentar a sua intervenção directa em assuntos militares.
Mais do que as opções de fundo, é o método que está em causa. E não é uma questão de lealdade e cortesia, a que aliás o governo faltou. É muito mais importante do que isso. O governo entende ser possível e ser seu direito reestruturar e reformar as Forças Armadas e a Defesa sem a colaboração concordante e empenhada dos dirigentes militares. Ora, tal não é possível sem a cooperação permanente dos chefes dos três ramos. Só uma estranha aliança entre o PS e o PSD concebe que seja possível reformar as Forças Armadas contra ou sem a vontade dos chefes militares.
Em todo este processo, os principais chefes militares nunca concordaram com as escolhas do governo. Conheceram as propostas tarde e a más horas, sem tempo de reflexão e sem quadro de colaboração. O governo achou muito mais importante e urgente obter o acordo do PSD antes de ter o dos chefes militares. Diante das reticências destes, o governo entendeu que não era com eles, mas sim com os deputados, que as discussões se deveriam desenrolar. A clivagem, de que o governo é responsável, está feita. Ainda não se conhece a posição do Comandante Supremo das Forças Armadas, o Presidente da República. Agora, só ele pode travar este erro flagrante.
A crença em que a Defesa Nacional é assunto exclusivamente político e que as Forças Armadas se devem comportar como mero sector interessado é sinistra. A hipótese de passar a considerar os chefes militares como meros consultores é nefasta. A ideia de que a política comanda a defesa é certa: a legitimidade das Forças Armadas, em democracia, vem disso mesmo, do povo e da democracia. Mas vem também da história, das instituições e da responsabilidade dos militares que é única e singular.
Público, 5.6.2021
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