sábado, 24 de abril de 2021

Grande Angular - O cartel de Abril

Podíamos ter um Abril tranquilo, politicamente calmo, pelo menos, já que a doença nos retirou paz e sossego. Mas não temos. As vésperas de Abril criaram um novo problema. O debate sobre os festejos da liberdade tem tanto de desprezível quanto de perigoso. Mas também revelador. Mostra uma espécie de Cartel que decide quem comemora o 25 de Abril e festeja o Dia da Liberdade. Na verdade, que espera traçar as fronteiras da democracia.

A ideia de que uns festejos nacionais e populares, oficiais ou espontâneos, solenes ou pindéricos, têm responsáveis, proprietários e supervisores só atrai mesmo pessoas estranhas ou com estranhas intenções. Dentro de dias, a polémica vai ficar esquecida. Dentro de anos, nem as crianças vão acreditar que esta existiu. Mas, para já, envenenou os dias. É possível que os militares de Abril tenham sido, uma vez mais, utilizados. Também não faz mal, aprendem. Verdade é que os supervisores do Cartel não desistem.

Não sendo grave de consequências, estas vésperas sublinharam um vício da política portuguesa. Criou-se uma cultura, se assim se pode dizer, da democracia como património. Em poucas palavras: a democracia tem os seus autores que usufruem de direitos especiais; a democracia também tem os seus eleitos, uns mais genuínos do que outros, conforme a sua proximidade aos autores; os eleitos da democracia têm poderes e direitos, nomeadamente privilégios. São esses privilégios que definem o conteúdo patrimonial na representação popular ou eleitoral. Em poucas palavras: quem ganha eleições tem o direito e a legitimidade para nomear os seus, pagar aos seus, autorizar quem escolhe, licenciar quem prefere, empregar quem quer, designar todos os cargos e recompensar os seus. Eventualmente, enriquecer.

Cada partido gostaria evidentemente que fossem só dele os eleitos. Mas aceita fazer coligações para melhor distribuir. Com inflexões à esquerda (a dita Geringonça) à direita (a AD e a Troika) e ao centro (o Bloco Central), o conteúdo patrimonial da democracia, a distribuição de despojos e a repartição de conquistas foram sobretudo obra dos dois maiores partidos (PS e PSD) que ora se coligaram explicitamente, ora se aliaram tacitamente, ora se sucederam. O alargamento da Função Pública a limites impensáveis, a criação de instituições que nem a imaginação se atreveria, o aumento de privilégios aos funcionários em detrimento dos trabalhadores dos sectores privados e a nomeação de grandes, pequenos e médios dirigentes da Administração foram essencialmente seus feitos. Os grandes negócios, as grandes obras públicas e as parcerias público privadas foram igualmente criações suas. Para já não falar de grandes licenciamentos e pequenas autorizações.

Foi tudo corrupção? Não, evidentemente. Há um universo de gestos, decisões e nomeações que, não sendo verdadeira corrupção, traduz bem este espírito da democracia patrimonial. Uma miríade de cunhas, influências e oportunidades alimenta e facilita as decisões. Parentes, amigos, companheiros e camaradas usam e beneficiam deste sistema tão arreigado em certos países e em Portugal também. Tudo em nome da República e da democracia.

Parece um manto diáfano, mas é um véu opaco, este a que se chama a “Ética republicana”. É um mito e um embuste que permitem que o nepotismo e o favoritismo surjam como gestos normais da democracia e casos naturais da República. Resume-se em poucas palavras. Sem Deus, dinastia, sangue ou sabre, o cidadão é soberano. O soberano faz a República. A República tem os seus eleitos. Estes têm o dever de servir a República. E o direito de se servir dela. Quem são esses eleitos especiais? Formalmente, os que ganham eleições. Historicamente, entre nós, os dois grandes partidos PS e PSD.

É com este princípio que tantas pessoas incham o peito de patriotismo democrático. O melhor valor da ética republicana é o que diz que o povo soberano escolhe o governo, não o dinheiro, não deus, não o soldado e não o nome de família. O povo manda através do voto e escolhe os seus representantes. Os representantes exercem os cargos de presidente, deputado, governante e autarca. Para governar em República é necessário conquistar o poder. Quem vence as eleições governa. Quem governa tem o direito a utilizar os comandos de poder que conquistou. Quem vence as eleições nomeia livremente amigos e escolhe os que lutaram por conquistar o poder. Quem conquista o poder, quem vence as eleições, quem ganha nas urnas tem o direito de demitir os seus rivais, distribuir os cargos e encargos, dividir os despojos, adquirir os bens da república, gerir os bens colectivos, apropriar-se de alguns desses bens como recompensa. É essencial incentivar os que sabem guiar-se pela ética republicana. Isto não é de esquerda nem de direita.

Não é verdade que só a direita é corrupta. Não. A esquerda também. Nem é verdade que só a esquerda é corrupta. Não. A direita também. E a melhor corrupção é a que consegue uma espécie de apólice de seguro de vida que é a convergência entre esquerda e direita.

É falso que a corrupção seja só da autoria dos políticos. Nem que só beneficie os políticos. A corrupção pode ser da autoria de muita gente e também beneficiar muita gente. Em todas as camadas sociais, profissionais e económicas. Mas podemos ter a certeza de que a corrupção beneficia poucos e prejudica muitos.

É errado pensar que a corrupção começa e acaba sempre em dinheiro, nos bolsos e nas contas offshore. Muito do que é essencial na corrupção inclui círculos de poder, autorizações, nomeações, concursos, parcerias, vantagens, privilégios, posição social, poder de decisão… Importância!

O Processo Marquês, mais os que o antecederam, teve um excepcional mérito já visível: revelou que a corrupção pode associar esquerda e direita, políticos e capitalistas, governantes e empresários, autarcas e gestores, economistas e advogados.

Há uma luta feroz em curso, que, a desenvolver-se, pode ser perigosa. É a que opõe dois campos antagónicos. De um lado, os que entendem que os políticos têm direitos especiais, que servem o povo e que devem como tal ser recompensados e respeitados. Do outro lado, os que pensam que os políticos são uns párias, vivem à custa dos outros e exercem o poder no seu exclusivo interesse. Estes dois campos estão bem presentes em Portugal, começam a dar sinais de vigor e envenenam o debate político. Evitá-los é urgente.

Público, 24.4.2021

sábado, 17 de abril de 2021

Grande Angular — Escombros

Este não é tempo de heróis. É obra de vilões. 

Foi uma sequência meticulosamente encenada. Coreografada ao mais ínfimo pormenor. A pandemia e a distância social imprimiam drama ao espectáculo. A timidez calculada do protagonista trouxe a personagem à beira da inocência. Vultos de togas negras davam o tom da morbidez necessária a uma espécie de Juízo Final. As máscaras disfarçavam os embuçados que pareciam membros de um coro clássico. No fim desta estranha liturgia, sobraram os escombros. De que não nos livraremos antes de muitos anos.

Que pensar daquela encenação inédita? Como se explica que o longo solilóquio tivesse deixado o país suspenso? Será possível que um monocórdico despacho instrutório tenha provocado uma crise no país, na sociedade e no sistema democrático? É possível, sim, porque aconteceu. E foi possível porque se tratou de uma das mais sérias crises da nossa vida colectiva desde 1975.

Nunca imaginei que fosse possível assistir, em directo, ao quase suicídio de uma instituição. O que se passou nesta última semana andou muito perto disso, de um gesto sacrificial ou de uma descida aos infernos. A Justiça portuguesa nunca conseguirá, antes de muitos anos, recuperar uma parcela do prestígio perdido, que já era pouco, mas parecia recuperar gradualmente. Este espectáculo indecoroso foi na verdade o último acto de um folhetim.

Não há memória, em Portugal ou na Europa, de uma cena deste género. É difícil imaginar o que pensam os procuradores, os magistrados, os juízes, os oficiais de justiça, os conselheiros e os desembargadores… Todos foram afectados por estes episódios. De muitos se esperava uma reacção. Até agora, tem sido diminuta.

A confiança no Ministério Público e na Procuradoria-geral da República, assim como no Tribunal de Instrução, está hoje evidentemente no mais baixo de sempre. Desprestígio contagiante: outras instituições judiciárias, incluindo tribunais de primeira instância, Relações e Supremos, sem esquecer os Conselhos Superiores, o Ministério da Justiça, o Tribunal Constitucional … Ninguém escapa, podem crer!

Não é raro que haja instituições em guerra. Ou grupos em choque, dentro das mesmas instituições. Com certeza que há opiniões diferentes entre magistrados e entre instituições. Mas na Justiça não deve haver controvérsia e rivalidade. A actividade judiciária não é a actividade parlamentar. O confronto adversário entre deputados e a controvérsia partidária não são aqui a regra. Nem sequer deveriam ter significado. O que se está a passar é isso mesmo: a transformação da actividade judiciária num confronto de que os cidadãos só têm a sofrer… É natural que haja diferenças entre magistrados, mas não é natural que sejam os cidadãos a pagar. Nem que a Justiça passe a reger-se pelas normas da actividade parlamentar. A justiça partidária é tão má quanto a justiça popular, a justiça da rua e a justiça do governo.

Nunca, como hoje, a desconfiança na justiça foi tão grande e tão pública. Toda a gente ficou com a certeza da fragilidade da acusação, de um relativo intento persecutório da instrução e da relativa incompetência do inquérito. Ficou nítido o desequilibrado, moroso e mal fundamentado processo do Ministério Público. Toda a gente ficou com enorme desconfiança do enviesamento do despacho instrutório, cujas debilidades e incongruências estão pelo menos ao mesmo nível que as do Ministério Público. É aterradora a hipótese, até agora não convincentemente desmentida, de manipulação dos sorteios de juízes, pelos vistos com tradição na Relação de Lisboa. Ficou-se mais uma vez com uma péssima impressão da justiça exibicionista e do despotismo de função. Seria bom que todos saibam: Rosário Teixeira, Carlos Alexandre e Ivo Rosa não ficam na fotografia melhor do que José Sócrates, Ricardo Salgado, Carlos Santos Silva e outros suspeitos.

Chocante, no caso presente, é o silêncio dos responsáveis, dos dirigentes políticos, dos protagonistas judiciais e de todos quanto desempenham funções de direcção, de orientação ou de associação. O silêncio do governo é o mais confrangedor. Nem sequer consegue exteriorizar uma preocupação, muito menos uma intenção. Não se aceita o silêncio do governo. Nem o dos socialistas, motivado pelo incómodo cúmplice de quem se envolveu nestes negócios e nestes processos. Os socialistas sabem que é muito fácil ser incluído nas culpas e na desconfiança. Eles sabem que é muito difícil afirmar que não estavam lá e que nada sabiam. Sócrates não estava sozinho. Nunca esteve.

Nestas questões de crises e de reformas políticas e institucionais, uma questão essencial é a da sua responsabilidade principal. Quem pode orientar, dirigir e cuidar de tais reformas? Que partido, que instituição, que poderes ou que grupos sociais podem definir objectivos e estratégias e são capazes de executar tais reformas? Em poucas palavras, quem lidera e quem é responsável?

O cepticismo, no caso da justiça, vê-se confirmado todos os dias. Discute-se, há anos, há décadas, a crise e a reforma da justiça. Os resultados têm sido magros, muito magros. Agora, estamos à beira de apenas ficar com escombros. E infelizmente não se vislumbra quem possa assegurar a liderança das reformas necessárias. Em todo este episódio, o silêncio tem sido medonho. Do Presidente da República, do Governo, do Primeiro-ministro, dos ministros, dos deputados, do Parlamento, dos partidos políticos, dos Conselhos Superiores das magistraturas, dos Supremos tribunais, das associações profissionais e da Academia…

Curioso é que os argumentos dos responsáveis pelo silêncio são o da não interferência nas questões da justiça e o da separação de poderes. Conhecem-se as expressões mais frequentes. “Não se deve interferir na justiça”. “A justiça deve seguir o seu curso”. “A justiça tem as suas regras que a população não percebe bem”. “Os políticos não se devem meter com a justiça”. “À política o que é da política, à justiça o que é da justiça”. É o que se diz. É o que fica bem dizer. É aquilo com que muitos se defendem. Mas é errado! É o argumento que utilizam os covardes. A justiça é o que há de mais importante. Como alguém disse, a minha liberdade depende da urna de voto e do tribunal. Sobre a justiça, todos devemos falar e pensar. Em casos concretos e em casos gerais. Se a política não se ocupa disto, ocupa-se de quê? Não há nada mais importante.

Público, 17.4.2021  

sábado, 10 de abril de 2021

Grande Angular - Justiça e violência

A justiça é um tema de permanente discussão. Ainda bem. Mesmo se por vezes temos um forte sentimento de impotência: fala-se, fala-se, fala-se e pouco se avança.

Nos últimos anos, a “questão da justiça” tem estado sempre ligada à corrupção. Quando se reclama melhor e mais justiça, é quase sempre com a corrupção em mente. Ou então pensa-se na morosidade, facto indesmentível, e na parcialidade, problema complexo.

Para além da crise de morosidade e da corrupção, há uma justiça que falta fazer. A justiça do crime de violência doméstica! A recente publicação do “Relatório anual de segurança interna” faz-nos recordar que em Portugal se cometem cerca de 300 000 crimes por ano. Um pouco mais de 800 por dia. Em comparações europeias, geralmente difíceis por causa dos conceitos e dos contextos, há casos em que Portugal está entre os mais violentos, outros a meio da tabela, outros ainda entre os mais pacíficos. Mas a violência doméstica tem muito especial incidência entre nós.

Segundo a tipologia oficial, os 23.000 casos de violência doméstica constituem o primeiro dos crimes, seguido de furto em automóvel, da burla informática e da ofensa à integridade física. São mais de 60 crimes de violência doméstica por dia! Crimes denunciados, sublinhe-se, que não incluem as pancadarias silenciadas, as agressões escondidas e os maus-tratos que todos os dias homens infligem às mulheres e com que adultos entendem educar filhos.

Em dez dos dezoito distritos do país, a violência doméstica é o primeiro crime denunciado. A pior violência é evidentemente o homicídio. São assassinadas, por ano, em Portugal, mais de 30 mulheres, em contexto de relações íntimas. Em quinze anos, são mais de 550 assassínios e mais de 600 tentativas. Sempre em contexto familiar.

Bater nas mulheres: é costume insuportável de muitos portugueses. Não é fácil encontrar estatísticas europeias. Também não interessa muito. O que temos é suficientemente mau. Quando se fala de violência doméstica, há várias especialidades. Conforme quem bate e quem apanha. Mas o principal caso é o dos homens e maridos que batem nas suas mulheres, namoradas e companheiras. Depois disso, pais que batem nos filhos ou nos velhos. Marginalmente, também se bate em homens, o que interessa muito os “voyeurs”, mas não tem significado estatístico. Homem que bate em homem, mulher que bate em mulher ou mulher que bate em homem: são casos residuais.

Tanto ou mais do que as causas do crime ou do que a protecção das vítimas, importa olhar para a justiça. Esta tem dado exemplos escabrosos de complacência com os homens violentos em casa, de benevolência com os agressores e de piedade para com os que batem nas mulheres. Há muitos magistrados preparados para desculpar os homens que perdem a cabeça. Como há até os que pensam que “elas estavam a pedi-las”… Ou os que acreditam que “bem lá no fundo, algumas gostam”… Entre nós, a justiça não está preparada para castigar os maridos ciumentos e os viciados na violência masculina. Grande parte da justiça portuguesa olha com condescendência e bom humor para os homens violentos.

Como se pode imaginar, o problema recusa simplicidades. As causas são muitas. As consequências também. As circunstâncias são variadas, os métodos e os procedimentos também. O que quer dizer que a luta contra a violência doméstica e em particular a violência masculina contra mulheres e crianças exige o concurso de disciplinas várias, de processos complexos e de aproximações sofisticadas.

Importa a educação, dirão uns. Educar desde o berço. Educar para a igualdade. Educar com doçura. Muito bem. Tudo isso é verdade. Quanto tempo demora? Até quando teremos que conviver com esta violência impune? Reformar as mentalidades, dirão outros. É a mais banal das orientações. Quando alguém não sabe o que pensar nem o que fazer, conclui que é necessário reformar as mentalidades. Sobretudo depois de estabelecer que se trata de “problema cultural”. Os autores de tais opiniões esquecem-se de dizer o que é exactamente a reforma de mentalidades, como se faz e, mais difícil ainda, quem são os reformadores que vão reformar as mentalidades dos outros!

Só se vê uma maneira com eventuais resultados visíveis a prazo: através da justiça. As leis vigentes são débeis. As políticas em vigor são tímidas. Os magistrados são frequentemente machistas. Os tribunais cultivam fantasias inadmissíveis. Sem esperar pela reforma de mentalidade e pela formação de um “homem novo”, é na justiça e com a justiça que se pode agir.

É verdade que se deve proteger as vítimas batidas, abrigar as mulheres violadas ou ameaçadas, recolher as crianças maltratadas, apoiar os velhos atemorizados… Tudo isso é verdade, mas o essencial é não deixar o criminoso à solta, não permitir que o violador se passeie pela cidade, não conceder facilidades de vida ao homicida, não tolerar o assassinato, não premiar o agressor…

Pode fazer-se muito. Já. Em primeiro lugar, aprovar leis positivas, duras, sem margens para interpretações e variações poéticas. Segundo, aplicar leis punitivas com prisão firme, sem os remorsos da “severidade excessiva” e sobretudo sem pena suspensa, mal endémico de grande parte da justiça portuguesa. Como é sabido, é frequentemente mais castigado o roubo de uma sande num supermercado do que uma carga de pancada na mulher ou um braço quebrado no avô. Terceiro, multas elevadas aos prevaricadores, muito sensíveis na carteira. Quarto, aplicar castigos duros relativamente à condição profissional. Não custaria nada ver que um assassino, violador ou agressor de mulheres e crianças fosse expulso da função pública, não tivesse acesso a empregos nas áreas públicas e não fosse admitido em instituições de educação ou formação. Quinto, exigir do Conselho Superior de Magistratura uma atitude mais activa, legalmente mais firme e moralmente mais aceitável relativamente aos magistrados que cultivam devaneios sobre o “macho latino”, o “ciúme masculino”, a “dignidade viril” e a “auto-estima ferida” que supostamente fariam parte da bagagem cultural dos homens portugueses. Ao Parlamento e ao Governo compete ainda declarar, nas suas competências de elaboração de politicas e de formulação de estratégias, que a luta contra a violência doméstica e a violação seja considerada prioritária.

Se há domínio em que a bondade é inútil, é bem este.

Público, 10.4.2021

sábado, 3 de abril de 2021

Grande Angular - A democracia a funcionar

 Acabou a paz. Mas não começou a guerra. Ressalvem-se as comparações, mas houve em tempos uma situação tão estranha que ficou para a história com designação apropriada: a “drôle de guerre” ou a “phoney war”. Depois de a Alemanha ter invadido a Polónia e de a Grã-bretanha e a França terem declarado guerra aos alemães, viveu-se um período estranho, durante uns meses, em que as potências estavam em guerra, mas nada acontecia. Esse período, entre Setembro de 1939 e Maio de 1940, ficou famoso na história e ganhou aquele epíteto. Terminou, como era de esperar, em desastre.

Entre nós, salvaguardadas as proporções, entre instituições soberanas, entrámos em período já sem paz, mas ainda sem guerra. Apesar de os partidos e o Presidente terem deliberadamente posto em causa os equilíbrios existentes, ainda há maneira de coexistir sem dramas excessivos. Mas podemos ter a certeza de que a paz acabou. Os órgãos de soberania estão em guerra, mas nada acontece por enquanto. O Presidente cessou funções de “seguro de vida”. E a previsível inconstitucionalidade da lei que promulgou nada vai facilitar. O entendimento tácito e parcial existente entre o Governo e o PSD dissolveu-se de uma vez para sempre. A solução de colaboração forçada, com tropelias, entre o governo e as esquerdas parece também chegada ao fim. Todos sabem que as próximas eleições, apesar de autárquicas, vão ditar os prazos de vida dos partidos. Ninguém quer ser apanhado em colaboração benevolente com o governo, situação desconfortável em período pré-eleitoral.

Todos sentiram que uma posição desprendida de interesses menores poderia ser prejudicial. São os males e as incertezas dos governos minoritários. Dos governos à bolina. E dos governos à deriva. Mas também são os males do semipresidencialismo. Os políticos fazem cada vez menos o que devem fazer e cada vez mais o que julgam necessário para não perder a face, ganhar uma vantagem, incomodar o adversário e enfraquecer o concorrente.

Esperava-se mais e melhor dos partidos e dos nossos representantes, em tão dramático período. Não se pretendia, com certeza, a unanimidade de políticas, nem a abdicação de pensamentos próprios. Mas esperava-se um sentido elevado das conveniências. Forçar leis no Parlamento faz sentido. Violar a Constituição e promulgar leis inconstitucionais não faz sentido.

Muitos dizem “é a democracia a funcionar”! Certo. O que não quer dizer que seja absolutamente um bem. A democracia a funcionar também pode dar para o torto. Muitas crises começam assim. Vivemos tempos absolutamente difíceis, cada dia traz mais uma complicação, seja sanitária ou financeira, económica ou política. Está criada uma situação de contradição, de afastamento e de desconforto, em todo o caso como tal percebida e sentida, o que faz com que vivamos momento difícil e crítico. Ora, esperava-se que a cooperação fosse mais intensa e mais resistente. Não é. Continua a ser a democracia a funcionar, mas a situação é má.

Deliberadamente, o Parlamento aprovou lei que contraria o governo, que colide com o orçamento e que viola a regra constitucional. O governo justamente reage. O Presidente da República, inesperadamente, promulga, apesar de, para atenuar as eventuais consequências, argumentar com especulação jurídica pouco rigorosa. O governo adequadamente recorre para o Tribunal Constitucional. Veremos o que se segue. Mas o clima está criado.

Da parte das esquerdas, foi o habitual. “Vá-se buscar o dinheiro onde ele está”, o método e a maneira não interessam. Há sempre dinheiro para as boas causas sociais, para o que se vai à dívida, maneira de imprimir moeda. Para as esquerdas, é à bruta ou à força, com ou sem Constituição, o que interessa é a causa social. Da parte do PSD, foi inesperado este exercício de pura demagogia vindo de um partido mais habituado a respeitar as formas. É estranho e inquietante que uma grande parte da esquerda e da direita parlamentar se tenha unido, à volta de um método demagógico e de um propósito claramente inconstitucional, para pôr em causa e incomodar o governo.

Há problemas com a acção do governo relativamente à pandemia e aos seus efeitos? Há. Enormes. Com hesitações, guinadas de orientação, má adequação de métodos e serviços, falta de clareza na informação, insuficiência de meios e compreensão medíocres das consequências nas escolas e nos hospitais, pelo menos. Para todos estes problemas há críticas e alternativas, práticas, políticas ou jurídicas. Tudo, menos violar a Constituição.

Logo saberemos o que vai dizer o Tribunal Constitucional. Mas é pouco provável que decida pela constitucionalidade da coisa. Se o fizer, mesmo invocando “estado de necessidade” ou “imprevisibilidade das despesas futuras”, prestará um mau serviço. E então é que não se poderá dizer que é “a democracia a funcionar”. Não. Nessa altura, será a demagogia e a incerteza errática da decisão política contra a certeza do direito.

Se o Tribunal Constitucional aceitar a lei dos apoios sociais, estará a legitimar a incerteza do direito, a avalizar o governo de assembleia e a legitimar a demagogia. Não haveria, depois disso, qualquer razão para impedir que o Parlamento alterasse à vontade os orçamentos, decidisse gastar o que lhe apetece, fizesse demagogia eleitoral e se entregasse voluptuosamente à irresponsabilidade. A tradição de seriedade e de responsabilidade, para já não dizer de rigor, permite pensar que o Tribunal não cairá nesta armadilha.

Houve dirigentes partidários que disseram simplesmente que era necessário porque havia “gente a viver com dificuldades”! Como se a constitucionalidade fosse uma questão de pobreza ou de riqueza. Uma líder partidária garantiu que era constitucional “porque há dinheiro!”. Ficámos a saber que, para esse partido, a constitucionalidade é uma questão de contabilidade. Vários dirigentes, à esquerda e à direita, disseram sem gaguejar que “já antes se tinha feito algo parecido”. Houve quem garantisse que era perfeitamente igual a um orçamento suplementar ou rectificativo. E outros dizerem que a Constituição não quer dizer bem “as despesas”, como diz, mas antes “a despesa” total. O facto de se pretender, agora, gastar primeiro, para depois, legalizar, por vida de leis retroactivas, não comoveu os que tentaram fazer o teste ácido. Se esta lei passar e for considerada constitucional, nunca mais a demagogia conhecerá um freio.

Público, 3.4.2021