Podíamos ter um Abril tranquilo, politicamente calmo, pelo menos, já que a doença nos retirou paz e sossego. Mas não temos. As vésperas de Abril criaram um novo problema. O debate sobre os festejos da liberdade tem tanto de desprezível quanto de perigoso. Mas também revelador. Mostra uma espécie de Cartel que decide quem comemora o 25 de Abril e festeja o Dia da Liberdade. Na verdade, que espera traçar as fronteiras da democracia.
A ideia de que uns festejos nacionais e populares, oficiais ou espontâneos, solenes ou pindéricos, têm responsáveis, proprietários e supervisores só atrai mesmo pessoas estranhas ou com estranhas intenções. Dentro de dias, a polémica vai ficar esquecida. Dentro de anos, nem as crianças vão acreditar que esta existiu. Mas, para já, envenenou os dias. É possível que os militares de Abril tenham sido, uma vez mais, utilizados. Também não faz mal, aprendem. Verdade é que os supervisores do Cartel não desistem.
Não sendo grave de consequências, estas vésperas sublinharam um vício da política portuguesa. Criou-se uma cultura, se assim se pode dizer, da democracia como património. Em poucas palavras: a democracia tem os seus autores que usufruem de direitos especiais; a democracia também tem os seus eleitos, uns mais genuínos do que outros, conforme a sua proximidade aos autores; os eleitos da democracia têm poderes e direitos, nomeadamente privilégios. São esses privilégios que definem o conteúdo patrimonial na representação popular ou eleitoral. Em poucas palavras: quem ganha eleições tem o direito e a legitimidade para nomear os seus, pagar aos seus, autorizar quem escolhe, licenciar quem prefere, empregar quem quer, designar todos os cargos e recompensar os seus. Eventualmente, enriquecer.
Cada partido gostaria evidentemente que fossem só dele os eleitos. Mas aceita fazer coligações para melhor distribuir. Com inflexões à esquerda (a dita Geringonça) à direita (a AD e a Troika) e ao centro (o Bloco Central), o conteúdo patrimonial da democracia, a distribuição de despojos e a repartição de conquistas foram sobretudo obra dos dois maiores partidos (PS e PSD) que ora se coligaram explicitamente, ora se aliaram tacitamente, ora se sucederam. O alargamento da Função Pública a limites impensáveis, a criação de instituições que nem a imaginação se atreveria, o aumento de privilégios aos funcionários em detrimento dos trabalhadores dos sectores privados e a nomeação de grandes, pequenos e médios dirigentes da Administração foram essencialmente seus feitos. Os grandes negócios, as grandes obras públicas e as parcerias público privadas foram igualmente criações suas. Para já não falar de grandes licenciamentos e pequenas autorizações.
Foi tudo corrupção? Não, evidentemente. Há um universo de gestos, decisões e nomeações que, não sendo verdadeira corrupção, traduz bem este espírito da democracia patrimonial. Uma miríade de cunhas, influências e oportunidades alimenta e facilita as decisões. Parentes, amigos, companheiros e camaradas usam e beneficiam deste sistema tão arreigado em certos países e em Portugal também. Tudo em nome da República e da democracia.
Parece um manto diáfano, mas é um véu opaco, este a que se chama a “Ética republicana”. É um mito e um embuste que permitem que o nepotismo e o favoritismo surjam como gestos normais da democracia e casos naturais da República. Resume-se em poucas palavras. Sem Deus, dinastia, sangue ou sabre, o cidadão é soberano. O soberano faz a República. A República tem os seus eleitos. Estes têm o dever de servir a República. E o direito de se servir dela. Quem são esses eleitos especiais? Formalmente, os que ganham eleições. Historicamente, entre nós, os dois grandes partidos PS e PSD.
É com este princípio que tantas pessoas incham o peito de patriotismo democrático. O melhor valor da ética republicana é o que diz que o povo soberano escolhe o governo, não o dinheiro, não deus, não o soldado e não o nome de família. O povo manda através do voto e escolhe os seus representantes. Os representantes exercem os cargos de presidente, deputado, governante e autarca. Para governar em República é necessário conquistar o poder. Quem vence as eleições governa. Quem governa tem o direito a utilizar os comandos de poder que conquistou. Quem vence as eleições nomeia livremente amigos e escolhe os que lutaram por conquistar o poder. Quem conquista o poder, quem vence as eleições, quem ganha nas urnas tem o direito de demitir os seus rivais, distribuir os cargos e encargos, dividir os despojos, adquirir os bens da república, gerir os bens colectivos, apropriar-se de alguns desses bens como recompensa. É essencial incentivar os que sabem guiar-se pela ética republicana. Isto não é de esquerda nem de direita.
Não é verdade que só a direita é corrupta. Não. A esquerda também. Nem é verdade que só a esquerda é corrupta. Não. A direita também. E a melhor corrupção é a que consegue uma espécie de apólice de seguro de vida que é a convergência entre esquerda e direita.
É falso que a corrupção seja só da autoria dos políticos. Nem que só beneficie os políticos. A corrupção pode ser da autoria de muita gente e também beneficiar muita gente. Em todas as camadas sociais, profissionais e económicas. Mas podemos ter a certeza de que a corrupção beneficia poucos e prejudica muitos.
É errado pensar que a corrupção começa e acaba sempre em dinheiro, nos bolsos e nas contas offshore. Muito do que é essencial na corrupção inclui círculos de poder, autorizações, nomeações, concursos, parcerias, vantagens, privilégios, posição social, poder de decisão… Importância!
O Processo Marquês, mais os que o antecederam, teve um excepcional mérito já visível: revelou que a corrupção pode associar esquerda e direita, políticos e capitalistas, governantes e empresários, autarcas e gestores, economistas e advogados.
Há uma luta feroz em curso, que, a desenvolver-se, pode ser perigosa. É a que opõe dois campos antagónicos. De um lado, os que entendem que os políticos têm direitos especiais, que servem o povo e que devem como tal ser recompensados e respeitados. Do outro lado, os que pensam que os políticos são uns párias, vivem à custa dos outros e exercem o poder no seu exclusivo interesse. Estes dois campos estão bem presentes em Portugal, começam a dar sinais de vigor e envenenam o debate político. Evitá-los é urgente.
Público, 24.4.2021
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